Palhaços vivem entre o riso e a dor

A arte da palhaçaria permeia as mais distintas esferas da sociedade subvertendo regras e lógicas.
por
Julia da Justa Berkovitz
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23/09/2025

Por Julia Berkovitz

 

Fernando, um executivo de sucesso, trabalhava em uma multinacional francesa. Seguia um caminho de vida considerado tradicional, construindo sua carreira no mundo corporativo. Pelos olhos alheios, tudo ia bem, mas ele sentia em seu íntimo que algo não estava certo. Há 12 anos, ele foi diagnosticado com síndrome de burnout e, como tratamento, decidiu fazer um curso para se tornar palhaço. Ao se descobrir um artista do riso, Fernando começou seu trabalho como voluntário em hospitais. Lá, ao se deparar com tantas pessoas em sofrimento, ele questionou se os desafios que vivia em seu antigo emprego eram, de fato, problemas, e este foi apenas o pontapé inicial para uma ressignificação de vida. 

Desde o surgimento do palhaço na antiguidade, ele representa um contraponto social. Augusto, Bufão, Pierrot e Arlequim são alguns dos diversos palhaços quase míticos que existem na sociedade. Independente do estilo, estas figuras sempre flertam com o caráter subversivo da arte e compõem um imaginário coletivo. Fernando, sendo um comediante dentro de um hospital, não subverte a regra, mas a lógica. Objetos de um leito se tornam instrumentos de música, por exemplo, o médico é transformado em um sujeito engraçado, e assim por diante.

Palhaços de rua e de teatro subvertem as regras e confrontam a sociedade por meio do riso e da mímica. Por trás de cada palhaçada há uma crítica social cuidadosamente tecida. No vaivém de grandes metrópoles, como São Paulo, há palhaços que transformam o asfalto em um majestoso palco. Realizam truques, malabarismos e brincam com uma plateia deveras alheia e apática. A maioria dos motoristas apenas olha com indiferença àquele que se expõe, mas, se uma única pessoa realmente enxergar e rir, o palhaço sentirá que seu dever está cumprido.

Pode se considerar que a máscara do palhaço é a menor do mundo, já que em vez de esconder, ela escancara o que há de mais “ridículo” em cada um de nós. Para Fernando, a maquiagem e o nariz vermelho são elementos de proteção e de permissão, com eles tudo é possível e viável. Seu palhaço, Netôncio Bolota, nada mais é senão uma exacerbação de sua personalidade. Enquanto tirava o seu registro profissional de palhaço, ele compreendeu que Netôncio sempre esteve presente em si, desde quando fazia brincadeiras e piadas com seus amigos da escola.

Felicitologistas - Netôncio
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Os palhaços de hospitais são caracterizados como relacionais. Eles têm a menor plateia possível: o paciente. Todavia, sua própria expressão e existência naquele espaço taxado como “inadequado” para o riso, é uma válvula de escape não apenas para os enfermos, mas também para os profissionais que lidam com a dor diariamente. A arte da palhaçaria se torna um elemento terapêutico, como uma espécie de analgesia e fuga, mesmo que por poucos minutos, da realidade, do sofrimento e do medo. Desde 1991, a organização Doutores da Alegria transforma a vida de crianças em hospitais. Com mais de 2,5 milhões de pacientes atendidos, esses palhaços ressignificam o ambiente hospitalar, deixando os pequenos mais confortáveis neste lugar amedrontador. 

Mas, não são apenas eles que usam da arte para divertir crianças. Às vezes esquecidos ou menosprezados, os animadores de festas também trabalham com a gargalhada. Entretanto, essa figura tem um “prazo de idade”. Na infância, eles são muito bem-vindos e apreciados, sendo essenciais para a diversão mas, na vida adulta, não há animadores de festas. Talvez o riso seja tomado como menos importante ao crescer e, por isso, os palhaços de rua são tão ignorados. Mesmo enfrentando resistência e julgamento, a arte da palhaçaria segue viva, seja no concreto duro e cinza, nas paredes brancas dos hospitais, ou sob a tenda colorida do circo.

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