País vive uma cultura do assédio perpetuada por gerações

Números indicam que impunidade instigam novos casos de assédio sexual.
por
Cristiane Gabriel
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21/10/2024

Por Cristiane Gabriel

No dia 15 de fevereiro, Larissa Duarte, uma nutricionista de 29 anos, saiu de sua clínica em Fortaleza, como fazia todas as tardes, para almoçar. Era um dia normal, ensolarado, e o fluxo de pessoas no prédio comercial do bairro nobre era o de sempre. Larissa entrou no elevador, sem suspeitar que, naquele curto trajeto entre os andares, algo inesperado e perturbador iria acontecer. 

Estava distraída, olhando o celular enquanto esperava as portas se abrirem no térreo. Ao seu lado, um homem, aparentemente inofensivo, aguardava em silêncio. No momento em que as portas finalmente começaram a abrir, Larissa deu o primeiro passo para sair do elevador. Foi aí que o inesperado aconteceu: o homem, rápido e discreto, estendeu a mão e tocou suas partes íntimas. Larissa ficou paralisada por alguns segundos, sem acreditar no que acabara de acontecer. As câmeras de segurança do prédio registraram toda a cena. O homem, depois do ato, saiu do elevador como se nada tivesse acontecido, deixando Larissa sozinha com o choque e a indignação. 

Ela sentiu uma mistura de repulsa e impotência. A primeira reação foi de incredulidade, mas logo essa sensação deu lugar à raiva. Naquele momento, Larissa soube que não podia deixar passar. Denunciou o caso à Polícia e, em poucos dias, o vídeo da câmera de segurança circulou nas redes sociais e nos jornais locais, tornando-se notícia nacional. O caso rapidamente se tornou um símbolo de algo muito maior: a realidade diária de muitas mulheres que, como Larissa, enfrentam o assédio de maneiras que vão do sutil ao descarado.

A história de Larissa não era um fato isolado, e ela sabia disso. Para muitas mulheres brasileiras, é uma constante.  O assédio contra mulheres no Brasil reflete uma realidade alarmante de violência de gênero. É uma das formas mais comuns de violência sofrida, tanto em espaços públicos quanto privados, e abrange uma variedade de comportamentos, desde comentários inapropriados até toques indesejados. Em 2023, o número de registros de assédio e perseguição, como o “stalking”, cresceu significativamente. Esse aumento é indicativo de um ambiente cultural onde o machismo e a desigualdade de gênero ainda são prevalentes, gerando riscos à segurança e à dignidade das mulheres.

Esse contexto de violência sexual também está ligado a outras formas de agressão, como feminicídios e violência doméstica. Em muitos casos pode ser um precursor de outras violências, tornando a proteção e o combate com ações fundamentais na prevenção de crimes mais graves. Iniciativas como campanhas de conscientização, reforço de leis punitivas, e a criação de ambientes

Outro aspecto importante é a subnotificação de casos, já que muitas mulheres não denunciam por medo, vergonha ou falta de confiança nas autoridades. Políticas públicas mais acessíveis e o fortalecimento de redes de apoio são essenciais para mudar esse quadro. No Brasil, os casos de assédio, embora frequentemente denunciados, têm uma taxa de resolução ainda preocupante. Segundo a Controladoria-Geral da União (CGU), em 2023 foram registradas mais de 4.000 denúncias de assédio no governo federal. Destas, cerca de 3.001 foram respondidas, enquanto 764 foram arquivadas e 397 seguem em análise. Embora o tempo médio de resposta seja de 16 dias, muitos casos ainda não chegam a uma solução definitiva, e a subnotificação e o medo de retaliação ainda dificultam a plena apuração dos casos.

Além disso, uma pesquisa realizada pela KPMG em 2023 indicou que apenas 3% das vítimas de assédio sexual denunciam seus casos formalmente às autoridades, o que revela um grande número de ocorrências que não entram nas estatísticas oficiais. Essa baixa taxa de denúncia e resolução está relacionada à falta de canais seguros para a denúncia e ao medo das consequências .

Uma jovem de 23 anos, que preferiu não se identificar, compartilhou sua experiência de viver sob a sombra do assédio todos os dias. Não é apenas nas ruas que ele acontece. O transporte público é outro espaço onde as mulheres constantemente lidam com situações de invasão e desrespeito. Nos metrôs, nos ônibus, os relatos de assédio são quase rotineiros. Outra mulher, que também optou por manter o anonimato, relatou suas próprias experiências como se em qualquer espaço, até mesmo os públicos os homens se sentem confortáveis e impunes o suficiente para invadir o espaço de uma mulher e fazer comentários inapropriados. Esses relatos, que se acumulam todos os dias em diferentes partes do País, refletem uma realidade que vai muito além de ações individuais. Há um sentimento generalizado de impunidade, de que certos homens se sentem à vontade para invadir o espaço e o corpo das mulheres, sem pensar duas vezes. Para muitas, sair de casa é um ato de coragem, pois sabem que, em algum momento, podem se tornar vítimas de olhares, toques indesejados ou comentários que as fazem sentir pequenas e vulneráveis. 

A história de Larissa Duarte não é apenas sobre um incidente em um elevador. É sobre o que esse episódio representa em um contexto mais amplo. O Brasil, como muitas outras nações, carrega consigo uma longa história de machismo. Apesar dos avanços em termos de direitos femininos, a objetificação das mulheres e a cultura do assédio permanecem enraizadas na sociedade. O caso de Larissa reacendeu um debate que, para muitas, nunca deixou de ser urgente: a luta pela liberdade e segurança das mulheres. A questão é sobre como uma sociedade pode avançar em direção à igualdade de gênero quando tantas mulheres ainda se sentem inseguras em suas rotinas diárias. Ou sobre como pode haver liberdade verdadeira quando o corpo feminino é constantemente invadido, seja com palavras, gestos ou ações invasivas. Embora Larissa tenha conseguido denunciar seu agressor, muitas mulheres não têm a mesma sorte. Muitas vezes, o medo de não serem levadas a sério ou de serem julgadas as impede de falar.

Casos de assédio, abuso e até estupro muitas vezes são ignorados ou relativizados, criando uma sensação de impunidade que só fortalece os agressores. Recentemente, figuras públicas como os jogadores de futebol Robinho e Daniel Alves foram condenados por crimes sexuais, o que trouxe ainda mais atenção para o tema. No entanto, mesmo com as condenações, parte da sociedade e da mídia tentou minimizar ou relativizar as ações desses homens, mostrando como o pacto de silêncio e proteção entre os homens ainda é forte. Esse "pacto masculino" se manifesta de várias formas, desde a defesa pública de agressores até o silêncio cúmplice em ambientes de trabalho ou círculos sociais. Em muitos casos, a "lealdade" entre homens supera a responsabilidade de confrontar comportamentos inapropriados, perpetuando uma cultura de machismo e violência.

Romper com esse pacto exige mudanças profundas, não apenas nas leis, mas também na maneira como a sociedade encara o gênero e as relações de poder. Não se trata apenas de punir agressores, mas de criar uma cultura de respeito, onde o corpo e o espaço das mulheres sejam valorizados e protegidos. Sua denúncia e a repercussão do caso lembram que, apesar dos avanços, o caminho para um Brasil mais igualitário e seguro para as mulheres ainda é longo.

A cada nova história, o debate se amplia, trazendo à luz a necessidade urgente de mudanças culturais e institucionais para que as mulheres, um dia, possam caminhar pelas ruas, entrar em elevadores ou pegar o transporte público sem medo, livres da opressão e do assédio que ainda marcam suas vidas diariamente.


 

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