Os tradicionais comércios de bairro resistem na ZN

Da construção de memórias ao sustento das famílias, as vendinhas tradicionais guardam a história das décadas passadas.
por
Luísa Ayres
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18/11/2024

Por Luísa Ayres

Uma porta de metal dá acesso a um portal para outra década. Tempos em que o doce favorito das crianças eram as marias moles coloridas e a bebida de praxe era a itubaína de saquinho para se tomar com canudo. As bolinhas e cigarrinhos de chocolate que se dava em toda festa infantil como lembracinha aos convidados ou aqueles mini chicletinhos que quando se começa a mascar não se pode mais parar. Penduradas, pipas e raias, com estampas geométricas, cores em tons neon ou a bandeira do time do coração, ao gosto do cliente. 

A doceria da Tia Norma tem um balcão comprido e repleto de gostosuras. Em um bairro periférico como o Jardim Brasil, onde os meninos e meninas ainda se juntam para brincar nas ruas, algumas tradições se mantém vivas. Nem mesmo no Natal, é possível falar não. As mãozinhas tocam a campainha, batem palma e chamam pelo nome dela. "Ô tia, me vê 3 caixinhas de biribinha". No verão, o gelinho daqueles artificiais é o que faz a alegria para todas as idades. Adultos, pais, mães e filhos se sentam na calçada ou encostam na esquininha para se refrescar com os 2 ou 3 reais que sobram na carteira. 

É difícil achar aquele que não se encante com os antigos baleiros deixados à mostra, daqueles que se gira, gira e mesmo assim não consegue decidir qual bala escolher. No meio da vendinha, sacos gigantes de salgadinhos que são pesados numa daquelas balanças de metal típicas da década de 70.

                                   

                                                                                  Reprodução: própria

Normalmente, são Tia Norma, Neide ou Wanderlei quem tomam conta do comércio. Todos moram no mesmo quintal e cuidam com carinho da vendinha montada ali mesmo na frente, ao lado da garagem. Ali, enquanto cuidam de seus netos e sobrinhos, que se deliciam, brincam e degustam os doces, se recordam também de suas próprias infâncias. Afinal, a doceria é uma herança de família, descrita por Norma como uma relíquia deixada por seu pai. Algo muito mais precioso do que qualquer outra fortuna que pudesse ser deixada. 

Não é à toa que ao longo de toda sua vida, sempre teve certeza que a sua história se mistura à da vizinhança. A tubaína vendida bem gelada no saquinho, citada no começo desse texto, faz o gosto de todos. Norma reafirma que essa é justamente a alegria de manter vivo o negócio: ver que a história é passada de geração para geração. É uma forma de preservar antigas amizades e ter a oportunidade de fazer novas. Talvez essa seja também uma forma de se agarrar aos bons tempos da infância. 

Sempre recebendo visitas, até os já crescidos gostam de dar uma pausa em um dia corrido para visitar a família Oliveira. Um beijo na bisa e boas risadas nunca faltam. E apesar de seu jeito durão, quem conhece Tia Norma se vislumbra com sua personalidade única e acolhedora. Com sua sandália alta sempre nos pés, o dia a dia é agitado. Norma é uma cozinheira de mão cheia. Cuida da casa, da mãe, ajuda as irmãs, passa, lava e abastece a venda. Sempre que preciso, pega as chaves do carro e dirige até a Vila Sabrina, uma região também movimentada pelo comércio, mas de grandes lojas, boutiques populares, papelarias e atacados. É de lá que saem as gostosuras que mais tarde chegarão aos balcões de sua casa. Nessas jornadas, o Celta estacionado atrás dos portões, é seu companheiro. Aliás, por mais que a casa esteja sempre cheia, Tia Norma sabe muito bem se virar sozinha. E gosta de viver ao seu próprio jeito.

Em meio aos grandes mercados, redes de conveniência 24hrs e grandes lojas, a doceria têm resistido. Talvez o segredo seja continuar investindo nos velhos hábitos e costumes. Talvez seja o amor. De qualquer forma, a dificuldade passou a ser cada vez maior. Norma conta em tom de tristeza que vê o número de clientes caindo ano após ano. É o contraste entre o novo e o velho. O passado e o presente, cada vez mais competitivo e agressivo ao futuro. Logo na rua da frente, é possível enxergar. 

Ela explica que à medida em que novos postos de venda são inaugurados, com preços mais competitivos e maior alcance de público, menos pessoas lembram do gostinho da doceria. 

Mesmo assim, tratar do negócio como um momento de lazer em sua rotina, recompensa tudo. A tia garante que trabalhar na doceria é quase como uma espécie de terapia, seja pelas lembranças de seu pai, seja pelos momentos de boas conversas, alegria e carinho que se pode desfrutar. 

Sem "kit kat" ou "nutella", quem entra na doceria da família sabe bem o que vai encontrar. Gostinho de saudade a cada mordida. Cheirinho de recordação. Certamente, ali a vida é doce. Um lugarzinho em que o tempo presente passa depressa com os papos jogados fora e o tempo passado certamente se conserva no coração de cada um. 

Para Jó, sobrinho da Tia, o lugar também traz boas recordações. Desde pequeno, ele conta que adorava ajudar, sair para comprar os doces e que, ainda hoje, se delicia com o salgadinho de palito sabor queijo. Dessa forma, também podia sentir que colaborava para o sustento da família.

Vindo de uma infância muito pobre, sempre soube o valor do negócio para os seus. E, esperançoso, ainda acredita que os comércios familiares de bairro no Brasil, ainda que enfrentem mais desafios, seguem sendo meios acessíveis aos jovens e crianças que, assim como ele, habitam a periferia da maior metrópole da América Latina. 


 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

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Economia e Negócios

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