O Radfem e seu papel de exclusão das mulheres trans dentro no feminismo contemporâneo

Mulheres trans vivem uma luta constante contra o preconceito do Feminismo Radical, o Radfem.
por
Luiza Nascimento
|
30/03/2021

Quando falamos sobre feminismo, a imagem que vem à mente é um grupo de mulheres unidas, lutando contra o patriarcado e defendendo umas às outras com unhas e dentes. Essa imagem, no entanto, está longe de ser a realidade vivida pelo movimento, que ao longo das décadas se dividiu.

Mulheres trans lutam para ingressar nas pautas feministas.
Mulheres trans lutam para ingressar nas pautas feministas. | Foto: Reprodução.

Essa necessidade de separação surge das divergências de luta e da visão que cada mulher possui do movimento feminista e de seu papel na sociedade. Grupos como o feminismo liberal, feminismo negro e o feminismo radical (o popular Radfem), buscam o mesmo objetivo, porém, com meios diferentes. 

 

Mas para aqueles que acreditam que os fins justificam os meios, essa noção pode estar abalando a luta feminista. Com essa divisão, surge a marginalização das vertentes dentro do feminismo e a homogeneização da luta. O movimento se torna exclusivo para aquelas que atendem as expectativas de cada vertente. 

 

Um dos grupos mais afetados por essa exclusão é o de mulheres trans, que lutam para serem reconhecidas como mulheres e detentoras de pautas feministas.  

O Radfem e o Movimento Trans

O Radfem surge por meio de obras de autoras como Shulamith Firestone (A dialética do Sexo), Kate Millet (Política Sexual) e Simone de Beauvoir (O segundo sexo). Elas abordam qual seria a origem do patriarcado e do machismo enraizado na sociedade, afirmando que essa busca é necessária para a mudança do comportamento social e político, analisando questões como elementos históricos e sociopolíticos, contrapondo-se às explicações e abordagens deterministas, como por exemplo o fator biológico. 

 

Essa vertente que se popularizou na década de 70, contudo, possui suas próprias derivações. Com o advento da internet, a comunicação de movimentos sociais ganhou força e atraiu novas pessoas para esses grupos. O Radfem se tornou um movimento dentro da internet com seu próprio pensamento. 

 

O grupo aborda atualmente a questão biológica como um fator determinante na construção da imagem do feminino. Elas defendem que não há subjetividade em ser mulher e que o preconceito surge a partir do gênero associado ao nascimento. O movimento afirma que suas ideias se baseiam na teoria clássica do feminismo radical, utilizando autoras como Robin Morgan, Julie Bindel, entre outras, como exemplo. 

 

A transfobia se tornou um dos sintomas do Radfem atual, que divulga por meio das redes sociais o pensamento que pessoas trans não possuem uma identidade verdadeira. 

 

Segundo elas, essas mulheres não podem se considerar parte do gênero feminino, pois em sua nascença são homens. Há, aquelas que acreditem que a mulher trans é uma reação da sociedade patriarcal à luta feminista, que pretende desestabilizar suas pautas com sua participação. Homens trans, por sua vez, podem ser associados a mulheres que não aceitaram seu papel como oprimidas e transformaram-se nas opressoras. 

 

Para Djamila Ribeiro, no entanto, as performantes do Radfem, atualmente, não compreendem o que foi escrito pelas primeiras autoras. Para a filósofa, houve uma distorção de suas ideias, o que resultou em um movimento transfóbico. 

O preconceito na prática 

Para compreender, na prática, como a transfobia por parte do movimento Radfem impede ou atrapalha mulheres trans de participarem das pautas feministas, foram entrevistadas Nicolly e Pâmela, duas mulheres trans que se relacionam com o feminismo de maneiras distintas. 

 

Nicolly iniciou sua transição aos 18 anos, após sair do colégio. Segundo ela, a partir do momento que começou a tomar seus hormônios adquiriu liberdade. Para ela, entretanto, se assumir como uma mulher foi algo difícil, pois ao longo de sua vida sofreu preconceito em todos os lugares que adentrou, seja para trabalhar ou em seu convívio. Mas alerta para o preconceito que sofreu quando era apenas um jovem garoto gay, sendo algo explícito e mais agressivo. 

Segundo Nicolly, ela compreendeu seu papel como mulher na sociedade quando começou a fazer programa, em suas palavras “fazer programas como trans foi a maneira que conheci a vida”. Quando o assunto feminismo foi abordado, ela afirmou que pautas feministas nunca fizeram parte de sua vida, pois durante sua transição e sua vida como mulheres, essas questões jamais se aproximaram de sua realidade.  

 

O feminismo é algo distante para ela, porém, algo que a sociedade trata a todo o momento. De acordo com o que disse: “tudo é feminismo hoje em dia, mas isso nunca me afetou como mulher trans”.  

Nicolly é uma mulher trans que não se sente parte do feminismo devido a distância entre sua realidade e a de mulheres cis.
Nicolly é uma mulher trans que não se sente parte do feminismo devido a distância entre sua realidade e a de mulheres cis. | Foto: Reprodução/Instagram.

A jovem paulistana sente a segregação entre mulheres cis e trans, seja dentro do movimento feminista ou na sociedade em que vive. Ela afirma que emprego para mulheres cis é algo fácil, assim como suas relações, enquanto pessoas trans, em geral, sofrem para serem reconhecidas. A maneira que encontra para que uma mudança dentro do feminismo ocorra é que surja o feminismo trans, assim como o feminismo negro, o intuito é abordar as pautas de gênero direcionando-as para mulheres. Em sua visão, não apenas o Radfem, mas todo o movimento, exclui mulheres trans de suas decisões, deslegitimando suas mudanças e necessidades. 

 

Se para Nicolly o feminismo é algo distante, para Pâmela é uma pauta que está presente desde sua adolescência. Sua transição começou quando tinha apenas 15 anos de idade e, de acordo com ela, foi algo turbulento e complicado. 

 

Sua família resistiu a ideia desde o princípio, porém Pâmela estava decidida a se tornar quem nasceu para ser. 

 

Na escola, afirma que participou ativamente de seu grêmio estudantil e ingressou nas pautas feministas abordadas pelo grupo. Na época, já sabia ser uma mulher e não se escondia de seus colegas. Essa participação, entretanto, foi dificultada por figuras importantes de sua escola, como sua professora de Ciências Sociais e a Coordenadora da escola.  

 

Segundo Pâmela, as duas deslegitimavam sua participação por ser menino e reafirmavam a ideia de que mulheres são mulheres por determinação biológica. Ela relembra que ambas faziam parte do pequeno grupo Radfem que existia em sua região, porém, os ideais do movimento não eram de seu conhecimento. 

 

Foi apenas quando ficou mais velha e concluiu sua transição, que Pâmela compreendeu a necessidade de lutar contra um movimento de repressão e exclusão dentro do feminismo. Em suas palavras “o feminismo pertence a todas e a pauta de todas as mulheres que, em algum momento, sofreram com a opressão da sociedade por seu gênero, seja cis ou trans.” 

 

Ela ingressou na faculdade de Ciências Sociais aos 22 anos e iniciou um pequeno blog durante seu período de estudante. A jovem, no entanto, se viu forçada a excluir suas redes sociais e sua página após ataques frequentes na internet, associados a grupos feministas de dentro da universidade. A partir desse momento, começou a escrever para o pequeno jornal impresso pelo Movimento de Feministas Negras de seu campus.  

 

Pâmela diz que as feministas negras são as únicas que se aproximam da dor de uma mulher trans, pois reconhecem o sofrimento que é ser deslegitimado em seu campo político e social, de forma opressora e histórica.  

 

“Em um país onde negros são assassinados com frequência ao andarem por suas comunidades ou carregarem um guarda-chuva e mulheres trans são espancadas, violentadas e destinadas a prostituição, se unir por uma causa é a solução que mulheres negras e mulheres trans encontraram para ganharem força. Mulheres sozinhas não fazem verão, mas quando se unem provocam mudanças. É triste observar grupos que nos ignoram e excluem de pautas que nos interessam ou se quer ouvem nosso sofrimento, nos diminuindo a uma questão biológica. Sei que homens fazem coisas terríveis para essas mulheres e que o sofrimento pode gerar raiva e angústia, mas também sei que generalizar não é a solução, pois conheci feministas radicais que foram duríssimas comigo e me humilharam, mas outras que apresentaram a simples vontade de mudar o que vivemos.” 

 

Pâmela acredita que a solução não é o feminismo trans, mas sim, a unificação de ideias. Ela acredita que o feminismo deve expandir para dentro de comunidades, para o interior do País e da comunidade LGTQIA+, quebrando a homogeneização existente. 

Contraponto ao Radfem

Segundo Lola, do blog feminista Escreva Lola Escreva, o movimento feminista precisa dar um próximo passo quando o assunto são mulheres trans e o patriarcado. E acredita que o movimento necessita compreender o papel do machismo na vida de meninos e pessoas trans, pois assim como as mulheres são oprimidas e presas a um estigma social, homens também participam dessa opressão.  

 

Durante uma entrevista ao Universa, Uol, sobre a resistência de feministas aceitarem mulheres trans nas pautas, ela observa que um dos maiores problemas entre as Radfem e mulheres trans, é o uso de estereótipos femininos, construídos por uma sociedade machista, por parte das mulheres trans. A feminista aponta que o grupo de feministas radicais não compreende as razões que essas mulheres possuem para utilizar desses padrões. 

 

Lola afirma que utilizar batom, salto, maquiagem, e outras características que são sempre atribuídas por mulheres é uma maneira da mulher trans se afirmar como mulher. Segundo ela, uma mulher cis não necessita disso, pois quando abandona esse padrão é ainda mulher e seu gênero jamais é questionado, mas sim sua feminilidade. 

 

A feminista reafirma que o feminismo deve ser para todas, para que assim ele mude algo dentro dessa construção patriarcal e machista que vivemos. Abraçar mulheres trans, as suas pautas e afirmar seus direitos, exigindo sua segurança, é trazer uma nova face ao feminismo. 

 

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