Desde que os videogames começaram a se tornar mais presentes na vida das pessoas, eles sempre foram vistos como artigos de luxo. E, de fato, não é um dispositivo considerado necessário para uma infância - além de ter se tornado um artefato caro, era visto também como distração para outros aspectos mais essenciais.
Mas essa elitização se estendeu até demais – e prejudicando a atuação profissional, especialmente de atletas de jogos eletrônicos.
No Brasil, por exemplo, demorou quase uma década para que surgisse um cenário de esportes eletrônicos que chegasse até os jovens da periferia de maneira ampla – e este é o Free Fire, battle royale da Garena. Desde o início da febre do jogo mobile, cada vez mais usuários foram conhecendo o que é o cenário competitivo de um jogo.
Afinal, um jogo para smartphones é, automaticamente, mais acessível para se profissionalizar do que jogos com foco na comunidade dos computadores. Em todo o território brasileiro, existem mais de 79,3% indivíduos que possuem celulares próprios com internet. Neste cenário, um jogo que não é muito pesado se torna mais acessível do que jogos que exigem computadores ou consoles.
Os jogadores que desejam virar profissionais no Free Fire, por exemplo, não necessitam de equipamentos profissionais como mouses, teclados e grandes monitores que melhoram a performance no jogo – seu próprio celular basta. Um grande exemplo da inclusão que o Free Fire proporciona é a existência da nova "Copa das Favelas", movimento que só existe neste cenário competitivo no Brasil.
Programado para novembro, o evento é patrocinado pelas empresas Perifacon, Black Rocket e Matiz Gestão Criativa, e irá reunir 12 times de favelas brasileiras. As equipes serão sorteadas entre 100 inscritas, e a vencedora receberá um prêmio de 4 mil reais.
Uma alternativa similar, porém com foco educacional, é o complexo AfroGames do Rio de Janeiro. Considerada uma escola de eSports, a instalação conta com salas de computadores e tem como objetivo formar atletas da periferia. Ricardo Chantilly, responsável pelo projeto, disse que a educação é o ponto principal. "“Para se dedicar a uma carreira, é preciso ter estabilidade de internet e financeira para investir em bons equipamentos, além de tempo para treino. Os adolescentes da periferia não tem tanto tempo quanto os jovens de classe média para isso”, disse Chantilly em entrevista para a revista Exame.
O projeto já conta com times de Fortnite, League of Legends e, futuramente, também estarão ensinando jovens a entrar no mundo do Free Fire. É o projeto mais audacioso do gênero até o momento, que promete inserir cada vez mais pessoas de baixa renda no cenário competitivo brasileiro.
Para chegar ao nível de organizações já financeiramente estabelecidas, como paiN Gaming e INTZ, ainda há um caminho a trilhar. Quando os jogadores já começam sua carreira instalados em gaming houses – que são as casas que combinam moradia e treinamento para os jovens atletas -, os profissionais já são apresentados à equipamentos melhores e mais qualificados.
Mas, para formar as equipes, os times têm o costume de procurar jovens que ainda não receberam uma oportunidade – como o Flamengo, que formou seu primeiro time de Free Fire com jovens da periferia do Rio de Janeiro.
Ainda que o cenário seja novo, ele já expandiu mais as raízes do esporte eletrônico no Brasil do que o League of Legends, se formos falar demograficamente. O cenário de LoL é, prioritariamente, centralizado em São Paulo, o que dificulta a entrada de jovens de outros estados – ainda mais aqueles que não possuem condições de mudança total. Portanto, além da dificuldade para entrar no cenário, novos atletas também se deparam com as disparidades sociais encontradas entre residentes da capital e de outros lugares.
Com o Free Fire, a mudança vem lentamente – além do fato de que a Garena é a primeira empresa responsável por um torneio oficial de eSports a colocar mais de uma mulher em um campeonato, o jogo também levou os esportes eletrônicos para a favela. O time do Flamengo, por exemplo, anunciou neste ano a compra de um elenco formado totalmente por adolescentes da periferia.
Em outras regiões, a situação não é muito divergente. Dois anos atrás, a ESPN realizou uma pesquisa nos Estados Unidos sobre a falta de indivíduos negros envolvidos com eSports no local. Lá, enquanto quase 50% dos consumidores são brancos, apenas cerca de 20% são negros e/ou hispânicos. No League of Legends europeu, todas as grandes personalidades internacionais também são brancas - assim como no Counter-Strike e outras modalidades.
Iniciativas como Wakanda Streamers (no Brasil) e Black Girl Gamers (nos Estados Unidos) chegaram ao cenário para tentar reverter essas porcentagens, mesmo que inicialmente na área de geração de conteúdo.
Para os próximos anos e com o crescimento do Free Fire, novos ídolos surgirão e podemos esperar uma grande mudança no competitivo brasileiro. A ascensão de nomes como Nobru, o Neymar da nova geração, apresenta uma nova possibilidade para jovens e adolescentes que desejam seguir a carreira e mudar de vida com os "joguinhos".
Portanto, a discussão e movimentaçãosobre diversidade social, desde então, tem sido crescente nos cenários de todo o mundo – e resta ver como os próximos torneios oficiais irão melhorar a questão da (falta) de diversidade em seus palcos. A movimentação, porém, vai além dos atletas. O competitivo de Free Fire também tem sido exemplo para os elencos de narradores e comentaristas, por priorizar profissionais negros e mulheres, o que se vê pouco em destaque.
No Campeonato Brasileiro de League of Legends, por exemplo, vemos apenas uma mulher em meio aos homens comentaristas. Por ser o campeonato de eSports de maior audiência no país, uma mudança é de caráter urgente para que possa se refletir nos demais campos do cenário competitivo.
A popularização do esporte eletrônico já não comporta mais seu nicho inicial, e hoje deve se readequar com urgência para dar espaço a grandes vozes que ainda estão escondidas e/ou buscando maior espaço em um meio que nunca foi receptivo para elas.