O NASCIMENTO DE UMA RELIGIÃO BRASILEIRA

A história de uma religião que já nasceu através do preconceito e da
resistência
por
Larissa Pereira José
|
14/04/2023

Caminhando pela calçada, já é possível ouvir as batidas do atabaque e o doce som do canto dos pontos “ele vem lá de Aruanda, ele vem...”, ao adentrar o espaço, o cheiro do incenso invade as narinas trazendo uma sensação de paz e leveza. Após as saudações aos orixás e aos guias, é hora de retirar os sapatos e tomar o passe. O passe é o momento em que o Umbandista tem a oportunidade de conversar e aprender com os guias. Durante a sessão, o Umbandista é “lido” pelo guia e benzido. Também é possível receber dicas de banhos, orações e simpatias que devem ser feitos para que o praticante atinja seus objetivos. Tais objetivos podem ir desde a cura de alguma doença até a busca por uma vida mais feliz ou calma. A Umbanda é uma religião majoritariamente brasileira, pois foi criada em Niterói por volta de 1908 a partir da junção de elementos africanos e indígenas ao espiritismo kardecista, que é de origem europeia. Neste sentido, dizemos que é uma religião brasileira não somente por ter sido fundada no Brasil, mas por reunir os três principais grupos étnicos que formaram o povo brasileiro. De forma mais específica, a Umbanda foi fundada por um jovem de classe média chamado Zélio de Morais. Aos 17 anos, Zélio estava se preparando para seguir carreira militar quando foi acometido de uma paralisia corporal. Como os médicos não conseguiram encontrar a origem do problema, Zélio foi levado a um centro espírita kardecista. De acordo com relatos da época, Zélio manifestou espíritos de ancestraisafricanos, conhecidos na Umbanda como “pretos-velhos” e também espíritos indígenas, os chamados “caboclos”. O presidente da mesa kardecista então declarou que tais entidades se tratavam de espíritos atrasados e pediu para que se retirassem da sessão. Foi quando Zélio incorporou uma entidade chamada “Caboclo das Sete Encruzilhadas”. O Caboclo da Sete Encruzilhadas se manifestou em defesa dos pretosvelhos e dos caboclos que haviam sido ofendidos e declarou que se esses espíritos não eram aceitos naquele lugar, uma nova religião seria criada no dia seguinte, na casa de Zélio. Essa nova religião se denominaria Umbanda e seria aberta a todos, seu conceito principal seria a caridade. A atitude dos kardecistas era reflexo do racismo da época, que não deixou de permear o espiritismo de Allan Kardec. Nesta perspectiva, existiriam espíritos evoluídos e outros pouco evoluídos. Estes últimos seriam os espíritos de negros e indígenas. A partir desse momento, Zélio e o Caboclo das Sete Encruzilhadas se tornaram uma só voz. Zélio afirmava que a entidade se tratava de um padre jesuíta italiano, chamado Gabriel Malagrida (1989-1761). Gabriel era um missionário que esteve no Brasil catequizando indígenas e, posteriormente, foi acusado de bruxaria e heresia. Gabriel foi morto em Lisboa, na famosa fogueira da inquisição. Essa declaração de Zélio é muito criticada nos dias de hoje, já que a catequização dos índios não fora pacifica e nem opcional. Zélio afirmava que em sua última existência física, Deus havia dado a Gabriel, “o privilégio de nascer como caboclo brasileiro” como forma de compreender seus erros em outras vidas. Apesar da história relatada acima ser contada e difundida entre os meios umbandistas há décadas, ela é encarada como um mito fundacional por parte da academia. Por outro lado, ela não teria surgido em uma data ou local específico, mas teria sido o resultado dos desenvolvimentos sociais e políticos ocorridos ao longo das décadas de 20 e 30 do século 20. Esta é a opinião do Professor Bruno Faria Rohde que escreveu em um artigo publicado em 2009. Nas décadas de 40 e 50, a Umbanda no Brasil organizou-se em federações e congregações, até como uma forma de se protegerem de perseguições policiais. Neste processo pode ser observado que os umbandistas se dividiram em dois grupos: um que buscava desafricanizar a religião, buscando assim aceitação diante da sociedade maior, e outro grupo que procurou resgatar a parte africana da Umbanda, trazendo, por exemplo, os Orixás. Este último grupo era liderado por Tatá Tancredo da Silva Pinto, que tinha um bom trânsito entre as autoridades oficiais e foi inclusive agraciado com o título de cidadão carioca, e na década de 50 criou a Congregação Espírita Umbandista do Brasil para lutar contra a discriminação racial dentro da religião e valoriza ainda suas raízes africanas. Logo, entre idas e vindas, a história da Umbanda no Brasil é um reflexo também da formação da ideia de nação brasileira. Existem tensões e lugares de diálogo, e neste movimento, a nova religião precisou negociar com uma sociedade racista que via com desprezo qualquer manifestação de africanidade. Isto é tão verdade que os atabaques eram proibidos nos antigos cultos de umbanda e, no seu lugar, eram utilizados instrumentos de corda como o cavaquinho. E assim, após tantos anos, a Umbanda se configura como uma religião espírita bem diversificada, já que através das suas “linhas” ela consegue abrigar um grande espectro de entidades espirituais que extrapolam aquelas de origem africana e indígena. Prova disso é a chamada “linha do oriente”, composta pelos espíritos que não se enquadram dentro dos grupos africano, europeu e indígena. Na próxima matéria dessa série, veremos um pouco sobre os Orixás e suas histórias. Eles estão presentes tanto no Candomblé quanto na Umbanda, mas são parte de um conceito pertencente ao povo iorubá, um dos povos que mais influenciou o que conhecemos hoje como cultura afro-brasileira.

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