O gestar para corpos transmasculinos

A falta de inclusão, o acesso à saúde e os desafios enfrentados no cotidiano por homens trans gestantes
por
Sophia Razel
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13/11/2022

Por Sophia Razel 

 

 

Bandeira trans. Foto: Reprodução

 


 

Para muitas pessoas, o tema gravidez está intrinsecamente ligado à feminilidade. Muitas vezes, cria-se uma experiência hiperfeminizada ao longo desse momento, mas se para muitas mulheres é difícil se identificar com essa atmosfera, como é a experiência para uma pessoa transgênero ou transmasculina gestante que precisa acessar esses mesmos ambientes, uma vez que os mesmos não foram pensados para atendê-las?

Ao engravidar, as chamadas normas sociais de gênero definem o “corpo grávido” como um papel da “mulher cisgênera e heterossexual”. Dessa forma, a assistência à saúde durante a gravidez não considera as subjetividades particulares dos indivíduos e não pensa na existência de corpos fora desse padrão. Até meados de 2019 a Organização Mundial da Saúde enquadrou a transexualidade na lista de doenças mentais, e tal categorização só foi revista na 11ª Classificação Internacional de Doenças (CID), a versão mais recente.  

A transexualidade não é uma doença. Ser ou não transexual diz respeito a identidade de gênero, ou seja, a forma como a pessoa se reconhece. Se assim quiser, uma pessoa trans pode realizar uma cirurgia de redesignação, por não se reconhecer no próprio corpo. No caso de um homem trans, isso pode ser feito através da retirada das mamas e de órgãos reprodutores, como ovário e útero, porém, a cirurgia não é uma regra, e vai depender de como cada pessoa se sente em relação aos órgãos com os quais nasceu. Ainda, outra medida possível é a realização do tratamento hormonal.

De acordo com o ginecologista e obstetra Marcelo Praxedes, especialista na saúde trans, o objetivo da hormonização é reduzir os níveis hormonais endógenos do próprio organismo do paciente, e introduzir caracteres sexuais secundários compatíveis com a identidade de gênero do indivíduo. No caso dos homens trans, utiliza-se a testosterona para induzir o desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários masculinos, como barba, a disposição da gordura no corpo e a alteração da voz. Segundo os critérios do Conselho Federal de Medicina, esse paciente deve estar em acompanhamento multidisciplinar, e é importante que esteja passando por todas as especialidades, fazendo um projeto terapêutico singular - isto é, um projeto terapêutico voltado especificamente para aquele paciente, para então estar apto à hormonização. 

 

Processo transexualizador pelo SUS

O processo de hormonização é garantido pelo Sistema Único de Saúde desde que o Processo Transexualizador foi instituído, em 2008, passando a permitir o acesso a procedimentos com hormonização, cirurgias de modificação corporal e genital, assim como acompanhamento multiprofissional. O programa foi redefinido e ampliado pela Portaria 2803/2013, passando a incorporar como usuários do processo transexualizador do SUS homens trans e as travestis, uma vez que, anteriormente, apenas mulheres trans eram amparadas por esse serviço.

De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), o cuidado com a população trans no sistema de saúde público é estruturado por dois componentes: a Atenção Básica e a Atenção Especializada. A Básica refere-se à rede responsável pelo primeiro contato com o sistema de saúde, pelas avaliações médicas e encaminhamentos para tratamentos e áreas médicas mais específicas e individualizadas.

Já a Especializada é dividida em duas modalidades: a ambulatorial (acompanhamento psicoterápico e hormonização) e a hospitalar (realização de cirurgias de modificação corporal e acompanhamento pré e pós-operatório). A idade mínima para procedimentos ambulatoriais é de dezoito anos, enquanto que para os hospitalares, ela aumenta para vinte e um. Os procedimentos mais procurados são a hormonização, seguidos de implantes de próteses mamárias e cirurgia genital em travestis e mulheres trans, assim como a mastecomia e histerectomia (cirurgia de retirada do seio e do útero) no caso dos homens trans. 

Segundo o Ministério da Saúde, os únicos hospitais que possuem permissão para realizar cirurgias de transgenitalização no Brasil pelo SUS são o Hospital das Clínicas de Porto Alegre, o HC da Universidade Federal de Goiás, em Goiânia, o HC da Universidade Federal de Pernambuco, em Recife, o HC da Universidade de São Paulo e o Hospital Universitário Pedro Ernesto, no Rio de Janeiro.

 

Gravidez transmasculina 

A gestação envolve transformações psíquicas, mentais, físicas e sociais, que se estabelecem desde a concepção até o parto, e, no caso de uma gravidez em um corpo transmasculino, isso não é diferente. Como qualquer outra pessoa com útero, homens trans - que mantiveram o órgão reprodutor - podem ter filhos naturalmente.

Contudo, faz-se necessário, durante este período, o acompanhamento regular junto às equipes de saúde, uma vez que médicos orientam que se  interrompa o tratamento hormonal para que o corpo se prepare para gerar. Sobre essa pausa, o doutor Praxedes comenta que de fato, o uso da testosterona para os homens trans precisa ser interrompido. Geralmente em torno de três a seis meses o indivíduo volta a menstruar. A fertilidade é presente e pode estar um pouco diminuída. Não se sabe ao certo quanto ela diminui, mas sabe-se que ainda sim ela é mantida, podendo assim haver uma gravidez natural ou inseminação artificial com reprodução assistida. Além das consultas de rotina do pré natal, também é necessário o acompanhamento endocrinológico e urológico (caso tenha feito a cirurgia de redesignação). A realização de exames periódicos para verificar as questões de sangue, rim e fígado se fizer o uso da testosterona também é aconselhada. 

Algumas mudanças do corpo são compatíveis as de mulheres cis, como um aumento do tamanho das mamas (caso não tenha feito a cirurgia de mastectomia), náuses, vômito, dores de cabeça e alterações no intestino. A princípio, é uma gravidez de risco habitual, que não tem a necessidade de fazer acompanhamento de alto risco, apenas se essa pessoa desenvolver algum outro tipo de patologia.  Já a respeito da amamentação, é preciso se utilizar de outras possibilidades de alimentação infantil para filhos de homens transexuais que não optarem pela amamentação, como o uso do uso dos bancos de leite ou fórmulas lácteas, sendo responsabilidade dos profissionais comunicarem, durante a assistência pré natal, a respeito das diferentes opções.

Sobre o tempo para a volta do uso de hormônios após a gestação, o ginecologista acrescenta que isso ainda não está muito claro na literatura e que irá depender também se o homem vai querer amamentar ou não, caso ainda tenha as mamas. Enquanto estiver amamentando não é permitido utilizar a testosterona, mas assim que parar, o uso volta a ser liberado e  se estenderá para o resto da vida. 

Para o analista de banco de dados Eduardo Chieregatti, 31, a escolha de ter filhos já era pensada conjuntamente com a esposa há algum tempo. Juntos há quase seis anos, o desejo de se tornarem pais sempre foi discutido, mesmo que os dois ainda não tivessem definido qual seria o método, já que o casal também cogitava a adoção.  

Embora a gestação não tenha sido planejada, o casal recebeu a notícia de forma muito positiva, mas apesar da alegria, ele - um homem trans - conta que teve alguns receios: “bateu bastante insegura pra mim no sentido de como seria lidar com a sociedade como um todo, porque somos poucos os homens trans que já engravidaram no Brasil, é um debate muito recente, ainda é muito ínfima [a quantidade de] reportagens e as notícias sobre homens trans grávidos, então eu tinha muito medo de como seria minha leitura social e como as pessoas iriam me ler socialmente… Se eu de fato iria ser lido como um homem grávido, um homem barrigudo ou se iam me ler como mulher… era uma incógnita”.   

Além do ponto de vista das relações sociais, outro medo presente durante sua gestação foi a preocupação com o vírus da Covid. Eduardo engravidou durante a pandemia e relata que isso limitou o período tão maravilhoso que é a gestação, como ele mesmo descreve.

O desejo era estar perto da família e amigos, fazer um chá de bebê e dividir com mais pessoas a felicidade que estava sentindo, mas afirma ter sido um pouco difícil fazer isso. “Eu converso muito com um grupo de gestantes e puérperas que eu faço parte e tiveram a mesma doula que eu, e é muito louco porque a pandemia emendou na gestação, que emendou no puerpério (período pós parto). É muito difícil entender onde começa um e termina o outro, se é que acaba, né (…) Na gestação fui muito rigoroso comigo mesmo nesse sentido. Eu tinha muito medo de pegar covid e eu acabei pegando, muito provavelmente com a minha esposa indo no mercado… Não aconteceu nada, graças a Deus, mas eu fiquei bastante ressabiado (...)  O que mais sinto é esse vazio de não ter dividido a minha gravidez”.        

 

A acolhida de corpos transmasculinos nos espaços de saúde

Ao pensar a respeito do atendimento de saúde das pessoas LGBTQIAP+, dados revelam como ainda há um medo dessa parcela da população de acessar serviços que são garantidos por direito, mas que muitas vezes não estão preparados para lidar com uma pluralidade de corpos. 

Em 2020 o Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos realizou um Mapeamento de Homens Trans/Transmasculinos/Transmasculines no Brasil. O estudo mostrou que mais da metade dos entrevistados (59,9%) fazem exames regulares e check-ups de saúde, e 55,5% disseram fazer acompanhamento com profissionais de psicologia. Entretanto, sobre saúde ginecológica, a maioria (47,6%) disse não frequentar profissionais da área, enquanto 19,5% afirmaram frequentar, dependendo da discrição médica;19,1% frequentam uma vez ao ano e 7,7% vão a cada seis meses. 

Ainda de acordo com a pesquisa, a respeito de atitudes transfóbicas em espaços de saúde apontou–se que 64,1% dos indivíduos não tiveram a identidade de gênero e os pronomes respeitados, 61,4% não tiveram o nome social respeitado, 35,7% foram desrespeitados e desrespeitades em espaços de saúde particulares, como hospitais e clínicas, e 30,7% tiveram dificuldades em realizar exames/consultas por planos de saúde em virtude da transfobia.

 Essa realidade também pode se mostrar similar durante acompanhamento gestacional. No que diz respeito aos cuidados de saúde reprodutiva, esses homens passam por um processo contínuo de apagamento nos espaços de saúde organizados por meio da lógica da cisheteronormatividade, em que gravidezes, partos e amamentação são tratados como eventos exclusivamente “femininos” de mulheres cisgêneras e heterossexuais. 

Diante de um despreparo na formação de profissionais de saúde para o atendimento de homens transexuais, vê-se a reprodução de uma prática profissional discriminatória, que não garante um atendimento de qualidade e respeita as subjetividades dos homens transexuais. Para o doutor Marcelo, o atendimento dos homens trans ainda não é tão acolhedor como gostaria. Ele aponta que as pessoas ainda não têm um entendimento do que é ser um homem trans e o que pode acontecer com esse corpo, e que por vezes, os próprios médicos têm medo de tratar ou não sabem conduzir o acompanhamento. Na sua visão, a preparação para lidar com questões de identidade de gênero deve ser introduzida desde o período da faculdade, fomentando a discussão e entendendo de fato o corpo trans. 

Apesar disso, experiências positivas durante a assistência à saúde também ocorrem. Eduardo, hoje pai da pequena Teresa, conta que no geral teve uma experiência positiva durante o processo da gravidez: “foi o melhor lugar que eu escolhi para ter minha filha (sistema público), foi muito acolhedor (...) Uma coisa muito boa a respeito dos espaços de saúde que acabei fazendo o pré natal e tudo foi que desde o momento que eu e minha esposa descobrimos a gestação, nós conversamos com algumas amigas, conhecidos e etc que tem conhecimento sobre a pauta de violência obstétrica, parto humanizado e movimento feminista como um todo, e aí nos indicaram um lugar que é referência aqui no Rio de Janeiro (...) e assim, o acolhimento foi simplessmente incrível, não teve nenhuma questão que me deixou desconfortável ou algo do tipo”. 

Apesar disso, ele compartilha que precisou fazer um apontamento na hora de trabalho do seu parto  “A única coisa que eu tive que pontuar lá, mas acho que infelizmente é um consenso entre as pessoas que não estão aprofundadas no debate da transexualidade e transgeneridade, é que elas acreditam que pessoas trans odeiam o seu corpo… Houve um momento que falaram para eu me reconectar com o meu sexo e aí eu expliquei que a minha forma de me expressar não vai contra o meu sexo biológico, muito pelo contrário”. E ainda acrescenta “Muitas pessoas falam sobre disforia de gênero e que possivelmente homens trans na gestação podem sentir disforia ou algo do tipo, e pra mim foi muito pelo contrário, eu senti muita euforia de estar tão bem e sentir o meu corpo tão potente naquele momento sendo integralmente quem eu sou”.  

Ao ser questionado sobre mudanças necessárias nos sistemas de saúde para uma melhor acolhida de homens trans grávidos, o analista de dados finaliza pontuando que para um avanço, o sistema deve reconhecer que homens trans podem gestar, além de fornecer meios para capacitar os profissionais de saúde.

cada vez mais homens trans tem celebrado seus corpos (...) a gente existe, a gente é real e não tem nada de contraditório em estarmos nesses espaços. A minha identidade não é contraditória (...), então fazer com que os profissionais entendam isso é um passo gigantesco para que se humanize e naturalize que outros homens trans também precisam estar nesses espaços”. 

 Ao engravidar, esses sujeitos desafiam as convenções de gênero que definem o corpo grávido com uma expressão e papéis atribuídos somente ao feminino, quebrando com a estrutura cisnormativa. Cada vez mais, ter filhos tem sido desejado entre homens transexuais e se configuram como necessárias para construir relações que rompem com a lógica tradicional “familiar”. Assegurar o direito à saúde para todos os indivíduos e corpos durante o planejamento reprodutivo, pré-natal, parto, nascimento e puerpério, é dar visibilidade a existência de pessoas trans. Repensar as práticas de saúde e se comprometer no combate à transfobia institucional é uma obrigação pública e evidencia a necessidade de um atendimento humano, igualitário e responsável que respeite às diferenças.  

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