O coração de São Paulo abriga também a exclusão social

Onde os verdadeiros paulistanos vivem… Ou, sobrevivem.
por
Ian Valente
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21/10/2024

Por Ian Valente

O coração da metrópole pulsa em um ritmo caótico. Buzinas ecoam entre as construções altas, o ronco dos motores mistura-se às vozes que se dissipam no vento. As sombras alongadas dos prédios projetam-se sobre as calçadas, onde os passos apressados contrastam com a presença silenciosa e, muitas vezes, invisível, dos moradores de rua. Caminhando pela Praça da Sé, o cenário revela uma cidade de extremos. A grandiosa Catedral, com suas torres neogóticas que rasgam o céu, parece proteger em sua sombra um contraste doloroso: pessoas amontoadas sob marquises, cobertores espalhados e barracas improvisadas. É um cenário que fala de resistência e sobrevivência, uma luta diária que o restante da cidade parece preferir não ver.

Nessa invisibilidade social está o rosto de Marcos Ferreira. Aos 45 anos, seu corpo já carrega as marcas de uma década vivendo nas ruas. Sua barraca, montada em frente à Catedral, é o lugar onde come, dorme e sobrevive exposto ao frio e à indiferença. Suas mãos, envelhecidas pelo tempo, e seus olhos cansados contam uma história que ele, com voz quase apagada, diz que ali virou seu lar. Marcos não demonstra amargura, mas sim uma aceitação triste de sua realidade. A perda de emprego anos atrás foi o início de uma espiral que o arrastou para a calçada, de onde não conseguiu escapar. Ao redor de Marcos o Centro de São Paulo passa por mudanças visíveis. A área, que tem atraído investimentos e novos empreendimentos, parece cada vez menos acolhedora para quem não faz parte da engrenagem do progresso. A gentrificação, que transforma prédios antigos em hotéis e centros comerciais modernos, empurra os mais vulneráveis ainda mais para as margens da sociedade, onde são vistos como um problema a ser resolvido – ou simplesmente ignorado.

Mesmo nos pontos mais movimentados, como a Rua 25 de Março, onde o comércio pulsa forte, a desigualdade é evidente. Lá, organizações como o Banco de Alimentos tentam aliviar o impacto da fome que aflige os moradores de rua e tantas outras pessoas em situação de vulnerabilidade. Fundada em 1998 pela economista Luciana Chinaglia Quintão, a ONG busca reduzir o desperdício de alimentos, recolhendo produtos que perderam o valor de mercado, mas ainda são próprios para consumo. Todos os dias, essas doações alimentam milhares de pessoas em São Paulo, oferecendo não só comida, mas uma chance de dignidade em meio à pobreza extrema.

Reprodução G1
Reprodução G1 / ONG Banco de Alimentos.

Entre os comerciantes do Centro, as opiniões são divididas. Alguns veem os moradores de rua como uma ameaça ao comércio e ao turismo, mas João Batista, nordestino e dono de uma pequena mercearia há mais de vinte anos, enxerga o problema com outros olhos. Ele se lembra dos dias em que o movimento em sua loja era constante, quando o número de sem-teto era menor. Hoje, o cenário é diferente, e João vê com tristeza a ferida aberta da pobreza crescendo à sua volta.

João já presenciou diversas tentativas da prefeitura de "limpar" a área, principalmente quando grandes eventos estão por vir. Mas, para ele, essas ações são meramente cosméticas. As autoridades, diz ele, estão mais preocupadas em manter a aparência do que em resolver o problema. Ele reconhece que alguns de seus vizinhos comerciantes se sentem ameaçados pela presença dos sem-teto, mas João, com o tempo, desenvolveu uma compreensão mais profunda. Ele conhece alguns dos moradores de rua pelo nome, já ouviu suas histórias. Ele acha que São Paulo os empurrou para isso, refletindo a situação com uma mistura de empatia e resignação.Ele sabe que não tem uma solução para o problema, mas está convencido de que varrer os sem-teto para fora da vista não resolve nada. A desigualdade está profundamente enraizada na estrutura da cidade. João lamenta que muitos escolham ignorar essa realidade, preferindo culpar os mais vulneráveis pela situação em que se encontram.

Conforme o sol vai se pondo sobre o Centro de São Paulo, a presença dos moradores de rua continua a fazer parte de um cenário paradoxal. Enquanto o desenvolvimento urbano avança, muitos ficam para trás, evidenciando as profundas desigualdades que persistem. O desafio que São Paulo enfrenta não é apenas de reurbanizar suas áreas centrais, mas de integrar as populações vulneráveis a esse processo, oferecendo oportunidades de recomeço e dignidade. O futuro de São Paulo dependerá da sua capacidade de lidar com a exclusão social e de criar soluções que abracem todos os seus habitantes, independentemente de onde eles vivam — ou de como eles sejam vistos.
 

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