O balé tem nuances e uma delas é Márcia Dailyn

Primeira bailarina trans do Theatro Municipal de São Paulo, Márcia Dailyn transformou o balé em um território de presença e emancipação
por
Giovanna Montanhan
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04/11/2025

Por Giovanna Montanhan

 

O som começava baixo. As sapatilhas tocavam o assoalho em cadência precisa: plié, relevé, arabesque. O corpo seguia o compasso, como se obedecesse a um idioma ancestral. No centro do palco, sob o foco que rasgava a penumbra, estava ela — Márcia Dailyn. O gesto exato, o olhar concentrado, a presença inteira. Não dançava apenas: devolvia à dança o que a técnica tentou abolir — o peso, a carne, o desejo. Durante séculos, o balé cultivou um ideal de feminilidade suspensa, moldada na leveza e na docilidade. Era uma pedagogia da contenção: o corpo da mulher treinado para desaparecer sob a aparência da graça. Cada movimento ensinava a não pesar, a não ocupar, a ser etérea. No vocabulário clássico, a bailarina era um arquétipo — e o feminino, um papel. Márcia, em contrapartida, ocupou esse mesmo palco e o converteu em contradição.

No Theatro Municipal de São Paulo, espaço que representa o cânone, Márcia dançava o corpo real, aquele que o balé tentou negar. Sua presença expunha uma fissura na tradição: mostrava que leveza não é ausência de peso, mas a coragem de sustentá-lo. Antes da ribalta, havia o interior. Jales, pequena cidade do noroeste paulista, foi o primeiro cenário de sua formação sensível. A mãe, professora de ginástica, dividia o salão com Leila, docente de balé. Ela, ainda um menino, antes da transição, ficava ali após a escola, observando as sapatilhas que riscavam o chão encerado, o som do piano, o rigor das filas. Aquelas imagens se gravaram nela como uma partitura. 

Certo dia, Leila e sua mãe organizaram um pequeno festival inspirado em Grease, o musical americano sobre juventude e insubordinação. Márcia interpretou John Travolta. A jaqueta emprestada, o cabelo engomado, o frio da estreia — tudo nela era descoberta. A dança, então, deixou de ser contemplação e tornou-se destino. Então, vieram as aulas, o teatro aos treze anos, as primeiras experiências de palco. A arte deixou de ser curiosidade e passou a ser idioma. Quando soube da audição para a Escola de Dança do Theatro Municipal, compreendeu que era o passo inevitável. Passou no teste e partiu. Disse à mãe que voltaria em breve, mas jamais retornou. São Paulo, com sua vastidão, a reinventou. A metrópole foi, ao mesmo tempo, aprendizado e provação. O balé, com sua disciplina quase litúrgica, pedia submissão e neutralidade. O corpo de Márcia, ao contrário, era insistência.

Estudava de dia, trabalhava à noite, lutava para existir. O palco, o ensaio e a sobrevivência se confundiam. E, nesse entrelaçamento, descobriu que a dança não era apenas expressão, mas abrigo — e, sobretudo, resistência. Ser mulher trans no Brasil é habitar um território de incerteza. No balé, essa condição se agrava: o corpo dissidente desafia o molde idealizado, questiona a pureza estética, revela o que a tradição quis silenciar. Em cada sala de ensaio, em cada movimento, havia confronto. Sua presença interrogava o cânone e, ao mesmo tempo, o expandia.

Márcia costuma dizer que a dança a salvou do medo. Talvez por isso tenha se entregado a ela com uma devoção quase espiritual. Seus gestos reuniam precisão e ternura, e cada passo condensava a experiência de quem aprendeu a existir contra o que esperavam dela. A transição, como toda transformação profunda, foi lenta. O nome Márcio, escolhido pela mãe, nunca lhe pertenceu. As amigas começaram a chamá-la de Márcia, e o som desse nome tornou-se refúgio. Anos depois, numa manhã de domingo, a mãe lhe disse, com doçura, que achava belo chamá-la assim. Abraçaram-se. A palavra virou pertencimento. A oficialização só veio em 2013, após meses de espera. Na Receita Federal, aguardou por um dia inteiro até que o novo nome fosse reconhecido. Ao sair com o documento nas mãos, percebeu que a identidade, enfim, coincidia com o corpo.

No ano seguinte, em 2014, dançou na abertura da Copa do Mundo. O país inteiro assistia, sem saber que aquela mulher girando no centro do estádio traduzia uma travessia. Desde então, cada apresentação passou a carregar o mesmo sentido: o de fazer existir o que antes era invisível. Em 2025, ela completa vinte e oito anos de carreira — quase três décadas consagradas à arte que lhe deu voz, fôlego e permanência. Nesse percurso, foi eleita, por três anos consecutivos, pela Secretaria de Cultura, a melhor bailarina de São Paulo — distinção que consagra não apenas o virtuosismo, mas a constância de quem jamais abandonou o movimento, mesmo quando o palco parecia distante.

As mulheres sempre foram seu norte. A mãe, a avó e a irmã lhe ofereceram o amor sem condicionamento. Ao longo da vida, inspirou-se em mulheres que desafiaram o previsível — Janaina Torres, Elke Maravilha e Elza Soares —, figuras que, em suas singularidades, expandiram o sentido de ser mulher e ajudaram-na a reconhecer-se na própria diferença. Ela se orgulha do corpo que construiu — não como adorno, mas como consequência. Tudo ali tem intenção: as marcas, as curvas, as escolhas. Cada transformação foi também uma forma de defesa.

O corpo, em Márcia, não é disfarce, é tradução — o meio pelo qual ela insiste em existir num País que ainda estranha sua presença. Ser uma mulher trans no Brasil é caminhar entre o fascínio e a rejeição: olhares que aplaudem de longe, mas hesitam de perto. A sociedade cobra leveza, mas recusa o peso que ela carrega. Ainda assim, ela segue inteira, ocupando um espaço que tantas vezes lhe foi negado.

No palco, a presença de Márcia se transforma em voz. A bailarina que já havia sido retirada de ensaios por preconceito agora dança sob a mesma luz que um dia lhe foi negada. O gesto que antes provocava incômodo tornou-se leitura; o que chamavam de diferença hoje é apenas realidade. O balé, depois dela, perdeu parte da rigidez que o mantinha intocado — e, por isso mesmo, se tornou mais vivo.

A cortina desce, mas nada se encerra. Márcia Dailyn fez do Theatro Municipal um espelho do Brasil: belo, desigual, e ainda relutante em reconhecer quem rompe as suas margens. Sua trajetória não se sustenta na ideia de superação, mas na persistência. Habitar a pele de uma mulher trans é viver em tensão constante — entre o aplauso e o julgamento, entre a visibilidade e o risco. É dançar onde o corpo nunca foi previsto.

O balé nasceu com o intuito de performar um determinado código de obediência, feito para disciplinar o corpo e domesticar o gesto. Em Márcia, esse mesmo código se desarma. Sua coreografia vai além do individual: representa as que ainda não podem ocupar o palco, mas que seguem ensaiando na invisibilidade.

Sempre que a música recomeça, ela volta a ser a menina de Jales — a que esperava a mãe terminar a aula e via, nas sapatilhas das outras, o contorno de um sonho. Hoje, é ela quem ocupa o centro. E, enquanto dança, o balé — essa arte que, por séculos, definiu o feminino — aprende, pouco a pouco, a reconhecê-lo em toda a sua pluralidade. É nesse instante, quando o corpo sustenta o que a história não soube nomear, que se revelam as nuances do balé, segundo Márcia Dailyn.


 

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Márcia Dailyn posa para foto no Theatro Municipal de São Paulo - Acervo pessoal




 

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