O aborto pode pender mais para a vida do que para a morte

Entrevista com uma mãe elucida questões cruciais sobre maternidade e religião, mostrando que a questão do aborto pende mais para a vida do que para a morte
por
Patrícia Mamede e Iris Martins
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07/11/2023

Por Patrícia Mamede e Íris Martins

 

Viviane Pereira Martins de Santana, mãe de três crianças, diz que uma mulher que defende o aborto, mesmo não tendo feito um, é uma mulher que abre mão de muita coisa que aprendeu ao longo da vida e afirma desconhecer um tabu maior que este. Falar sobre maternidade, em geral, ainda é um assunto muito romantizado e que exige coragem para uma mulher sustentar em sua fala o amor e o desconforto.

A questão do aborto, na verdade, está muito mais próxima da vida do que da morte. A realidade das mulheres brasileiras, nesses casos, é algo extremamente precário, quando mães são obrigadas, muitas vezes, a terem filhos sem ter a possibilidade de dar uma vida digna para eles.

A realidade que se vê nas ruas são mães trocando as fraldas de seus filhos em estações de metrô, pedindo comida com sua criança no colo nos semáforos, com a dor de saber que agora, além de sua própria miséria, será obrigada a conviver com a dor de ver a miséria se concretizar bem à sua frente, vendo a morte crescer em sua mais pura forma de vida: em seu filho. Ela completa dizendo que quase sempre acaba pagando mais caro ainda quando entrega o filho pro traficante ou pro coveiro, ''Para ter filho no Brasil, é preciso ter grana'', e os números confessam uma realidade aparentemente invisível.

Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde, aproximadamente 55 milhões de casos de aborto ocorreram entre 2010 e 2014 no mundo, sendo 45% deles considerados inseguros. Ou seja, legalizados ou não, essas operações continuarão ocorrendo e muitas vezes, ocasionando mortes de mulheres pelo mundo todo. A invisibilidade em relação ao aborto é explicita: não deixará de acontecer, portanto deve ser feita às escondidas. Aquelas que têm dinheiro realizam o procedimento sem punição. As que não tem condições de cometerem seu pecado em segredo, são punidas.

Há uma palavra na língua alemã que se chama kitsch. Esta palavra significa um ideal estético que busca negar absolutamente tudo aquilo que a existência humana carrega de inaceitável. As coisas que não se pode aceitar são negadas, ou enfeitadas, ou jamais mencionadas. Kitsch é a visão da criança, ou pelo menos, a visão que é passada para a criança do que é, ou o que se pensa que deveria ser o mundo.

Mas esta tentativa de negar o feio, ou os palavrões, é apenas uma tentativa de frear o inevitável, pois a criança crescerá e ouvirá e falará palavrões. A criança crescerá e verá e será, hora ou outra, também o feio da vida; o adulto. Porque o Kitsch pode camuflar, esconder, tornar sutil, ou prolongar o ruim, o sujo e o abominável, mas jamais poderá cessá-lo.

A ginecologista Ligia Santos, que também é colunista na Papo de Mãe da UOL, conta sobre o aborto ser assunto sobre saúde pública. A doutora afirma justamente que os níveis de mortalidade variam de acordo com a cor de pele e consequentemente classe social dessas mulheres: pretas e pardas terão mais consequências ao realizarem o procedimento. Ela ressalta que esse assunto deve ser tratado como de saúde pública considerando que não só o a questão do acesso aos métodos reprodutivos que existem são muito desiguais no país, mas o acesso ao aborto, às orientações e ao cuidado. Se é algo equânime que mulheres de renda mais alta tendem a ter essa segurança, é injusto e é inconstitucional que as mulheres de renda mais baixa não tenham esse acesso, já que saúde é um direito de todos e um dever do Estado brasileiro, completa.

 

Fotografia: Helena Maluf

A questão do aborto nunca foi sobre se se ele deve acontecer ou não: ele já acontece, a questão deve se voltar para o que o Estado vai fazer para garantir que essas mulheres não morram, e esta é a questão da vida. A primeira vida que está em jogo é a dessas mulheres, e depois, a vida de seu filho que pode ser que não passe de poucos anos devido às condições desumanas que será submetido. Se a questão é abolir o aborto, criminaliza-lo não será – não é – eficiente. A política mais eficaz para abolir o aborto é através da educação.

A médica afirma que o acesso à informação é essencial. É crucial que mulheres tenham conhecimento de onde ir, quando ir e quais procedimentos realizar, até mesmo para que violências sejam evitadas dentro desses espaços. Ligia deixa claro que mulheres podem e devem denunciar maus tratos dentro de instituições. O momento em que uma mulher lida com este assunto, é um momento vulnerável, ela deve ser acolhida e bem atendida, afinal, é uma questão de vida ou morte, principalmente após o procedimento realizado de maneira clandestina.

Há muitas nuances que levam o debate do aborto à diferentes tipos de discussão, a pobreza é uma delas. Segundo o relatório "O poder de escolha", elaborado pelo Fundo de Populações das Nações Unidas (UNFPA) sobre direitos reprodutivos e a transição demográfica, divulgado no ano de 2018, a parcela mais rica da população, que corresponde a 20% dos brasileiros, apresentam a menor taxa de fecundidade, com índice médio de 0,77 filho por mulher. Já os 20% mais pobres aparecem como os que mais têm filhos, são 2,9 por mulher. Muitas vezes por falta de instrução, de acesso a meios contraceptivos e uma ausência de planejamento familiar, pessoas mais pobres acabam por perpetuar essa pobreza.

 

 

Fotografia: Helena Maluf

A questão da maternidade precisa ser vista com lentes menos românticas, é preciso entender a dimensão desta pauta e como ela afeta em nível social. Uma mãe que precisa trabalhar para dar o básico a seu filho, ou simplesmente alimentá-lo, precisa de uma rede de apoio. ‘’Rede de apoio é sorte; é luxo...’’, afirma Viviane. As pessoas tiram do grupo a responsabilidade coletiva pela criação das crianças e a joga exclusivamente no colo das mães. Ela elucida o cenário explicando que se a criança tem um pai decente, o pai e a mãe serão sua própria rede de apoio, mas isso é exceção. E a regra é: ou a mãe paga pela rede de apoio, babá, creche... ou a mãe conta com a imensa sorte de ter no seu círculo de convivências pessoas, em geral, mulheres, dispostas e com condições de ajudar. Ou a mãe aposta uma vaga na creche pública que muitas vezes é contramão de seu trabalho, e faz com que ela e a criança tenha que acordar 2h mais cedo e pegar umas 3 conduções a mais por dia. Outro cenário é que a mãe pode, também, não trabalhar, comprometendo seu futuro, suas escolhas, sua independência e muitas vezes condicionando-as a passar a vida presas em relacionamentos abusivos.

 

Escolhas

A possibilidade ao aborto dá à mulher a opção de analisar e escolher se um filho é compatível com a sua realidade de vida ou se tornará um problema à ela, à sociedade, e à própria criança. A análise é simples, mas a realidade é cruel: morar no Brasil, ganhar um salário mínimo, ter filhos, contar ou não com o pai, com a família, com a comunidade e com o amparo do Estado.

Viviane Santana diz que acompanhou dois abortos de perto, o de sua irmã, e o de uma colega de faculdade, ‘’Tive certeza de que as duas iriam morrer. Usaram a clássica combinação de colocar dois Cytotecs e tomar mais dois. Sangraram e choraram de dor por horas até verem seus embriões expelidos no vaso sanitário, sem poderem ir para o hospital’’.Em ambas as situações Viviane era muito nova e só a deixaram horrorizada, ‘’Se tivessem feito de uma forma segura num ambiente hospitalar com sedação, pouparia a todas as envolvidas, inclusive eu, de muitos traumas’’.

As políticas anti-aborto no Brasil necessitam de mais discussão. A ginecologista diz que não é somente sobre o feto, que é o que se discute basicamente, quando se fala de política anti-aborto, mas é preciso enxergar a mulher que está carregando esse feto, o bem-estar dessa vida e o apoio que ela necessita. É necessário discutir melhor a questão de gênero, e a questão do peso da maternidade para as mulheres, porque ser mãe na lógica de produção atual praticamente as tira do mercado de trabalho.

 

STF

Dia 22 de setembro, o Supremo Tribunal Federal começou a julgar a ação que tem por objetivo descriminalizar o aborto feito por mulheres de até 12 semanas de gestação. A votação foi suspensa e, apenas a ministra Rosa Weber, relatora da ação votou. Weber votou a favor da descriminalização. Mas isso não significa que o Sistema Único de Saúde passará a oferecer o procedimento à essas mulheres, mas significa que os médicos e as mulheres que fizeram o processo não poderão ser punidos. O tema ainda divide o plenário do STF e a opinião pública.

Para Santana, o que mais impede o acesso seguro do procedimento às mulheres, é a questão religiosa. O Brasil é um país muito violentado e sofrido ao longo de sua jovem história, o que fez com que a sociedade fosse alicerçada na fé, ‘’Não há no Brasil uma só família que, sobretudo as mais pobres, não se apeguem a Deus a fim de resolver os problemas que quem deveria resolver é o Estado. Sem a fé, o povo brasileiro já tinha sucumbido’’.

 

Fotografia: Helena Maluf

A maternidade deveria ser uma pauta primordial entre as agendas políticas, pois ela liga todos os pontos que constroem e sustentam a sociedade tal como ela é. 

O processo da maternidade é, por si só, um processo único, que exige estabilidade em todos os sentidos, desde a condição financeira ao acesso a uma rede de apoio. É de responsabilidade coletiva exigir que as crianças que venham ocupar o mundo sejam recebidas com dignidade e garantias de boas possibilidades.

 

Fotografia: Helena Maluf

"Eu sou mãe há 11 anos, idade do meu filho mais velho e ainda não decidi se ser mãe é bom ou ruim. Ao descobrir a gestação desejada o sentimento é de vitória. Você cumpriu seu papel, você é fértil, durante 9 meses você será meio que Deus, a detentora do poder da vida. Ao longo dos 9 meses, você divide seus sentimentos entre momentos lúcidos e não lúcidos. nos momentos não lúcidos, o céu é o limite, e nessa hora ter ao lado pessoas com um ímpeto de acolhimento é fundamental. Eu nunca tive essa sorte. O pai dos meus dois primeiros filhos era um homem machista e grosseiro que achava que tudo era frescura, e minha família de origem é um capítulo à parte dessa história aqui, mas não seria neles que eu encontraria apoio. Me apoiei em mim mesma e na ideia de que eu queria muito aquele filho, até que ele nasceu. Os meus três puerpérios foram, de longe, os piores momentos de toda a minha vida. O puerpério é um pesadelo em que pouco se fala. Você tem dor, amamentar é muito difícil, o bebê é uma pessoa que você não conhece e que não sabe como pode ajudá-lo, você está cansada, com sono e com dificuldades de fazer coisas básicas como tomar banho, muitas vezes você está rodeada de gente, mas é uma experiência absolutamente solitária, ninguém pode dividir contigo a tristeza que te arrebata muitas vezes por conta da queda brusca dos hormônios, as dores, a renúncia ao teu corpo, às tuas vontades... Eu nunca saberei dizer exatamente se ser mãe é bom ou ruim porque há coisas importantes em mim que só a maternidade me deu. Eu sinto falta da minha liberdade de fazer escolhas pensando somente em mim, sinto falta da minha liberdade de ir e vir sem pensar em quem vai ficar com as crianças, sinto falta de ter dinheiro, sinto falta de mim, mas eu os amo e preciso deles. E é isso...’’.

O ser humano mais precioso e sublime do mundo, aquele que deve ser protegido a todo e qualquer custo: a criança, o maior símbolo de pureza da vida. Aquele ou aquela que será o futuro da nação, o futuro de tudo. Há de se proteger o futuro, lhe proporcionar condições frutíferas para que se desenvolva sadio e forte. Acolhê-lo com o tempo que necessita; sem pressa. O futuro deve ser preparado como um solo fértil, com cuidado, amor. Assim como a criança deve adormecer em um ambiente seguro, ouvindo canções de ninar, palavras afetuosas e, se porventura for necessário, palavrões. Sim, palavrões, crianças precisam ouvir palavrões.

Para esta matéria, foi praticamente impossível encontrar mulheres para falar sobre este específico tópico, tão abominável que não se pode mencioná-lo: o aborto. Às mulheres, o pecado é intrínseco, e parece que há uma dívida para com o mundo que as proíbe de chegar perto desta palavra, quem dirá dar uma entrevista em seu nome. Esta dívida está para as cristãs assim como para as ateias, mesmo as mulheres mais feministas sentem-se incapazes de falar sobre o tema sem sentir que estão indo contra tudo aquilo que foram educadas a acreditar e a sustentar.

 

 

 

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