No Carnaval, o corpo feminino ocupa a avenida mas não pertence a ela

Entre a euforia coletiva e o silêncio das imposições, mulheres calculam passos, fantasias e rotas de fuga em uma festa que nunca foi feita para protegê-las
por
Giovanna Montanhan
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08/05/2025

Por Giovanna Montanhan

 

Durante alguns dias do ano, o tempo no Brasil parece desobedecer ao relógio. As ruas, normalmente esculpidas pela pressa, pela ordem e pelos compromissos, ganham novos contornos — como se o concreto cedesse lugar ao delírio. Serpentinas e confetes cobrem o chão com cores que fingem inocência. Os corpos se entregam à cadência frenética das baterias, às bebidas que escorrem fácil, ao brilho das fantasias que escondem mais do que mostram. É nesse palco desregrado que se costura, ano após ano, o mesmo tecido de ilusões — bordado com suor, desejo e silêncios, sempre às custas da pele que mais reluz.

Clara conheceu o Carnaval com o coração aberto, como quem acredita no milagre da suspensão da realidade. Era jovem — 14 anos — quando se entregou à primeira multidão, ainda sem saber que a festa, para mulheres como ela, vinha com um manual invisível de autoproteção. Fantasiada de liberdade, ela saiu às ruas com os ombros à mostra e as pálpebras cobertas de glitter, só para descobrir que ali, no meio do povo, também se escondiam os olhos que medem, as mãos que agarram, as bocas que riem sem consentimento. A festa não era igual para todos. Nunca foi.

Desde então, Clara passou a mapear a cidade com outro olhar. Onde antes via blocos, agora enxergava zonas de risco. Suas amigas também sabiam: a escolha da roupa não era só estética — era cálculo. O caminho de ida precisava prever o de fuga. A fantasia, antes expressão de criatividade, se tornava escudo. E, ainda assim, era por elas que vinham os dedos apressados, os assobios que rasgavam o ar, os julgamentos que se penduravam no brilho de suas peles.

Para entender como se chegou até esse ponto, é preciso escavar o passado com a mesma delicadeza de quem desenterra ossos debaixo do asfalto. O Carnaval não nasceu com camarotes, passarelas ou patrocínios. Sua gênese era desorganizada e livre, uma anarquia popular que tomava conta das ruas em forma de entrudo — uma festa suja, democrática, insubmissa. Água, lama, farinha, fruta podre. Ninguém era poupado. O riso era horizontal.

Mas o caos assusta quem detém o poder. E foi assim que começaram a domesticar a festa. O batuque dos cortiços e terreiros, o samba das vielas e quintais, tudo aquilo que era insubmisso foi sendo moldado até caber na avenida. Cronometrado. Julgado. Vendido.

Foi nesse novo palco domesticado que o corpo feminino ascendeu ao protagonismo — vigiado, aparado, higienizado para caber na vitrine. As mulheres que antes sambavam com o ritmo no corpo e o suor no rosto foram empacotadas em estereótipos cintilantes. Passistas e rainhas, antes essência da festa, viraram produto com prazo de validade. As lentes da televisão não perdoavam: exigiam pele,  curva e  submissão em alta definição. Técnica e expressão restaram como nota de rodapé. A câmera mandava. E a mulher dançava — para não ser descartada, porque recusar também era uma forma de punição.

Isabela Guimarães Andrade, jornalista e pesquisadora feminista, revela que a suposta emancipação feminina vendida nas ruas durante os dias de folia é uma ilusão cuidadosamente roteirizada. O corpo da mulher, diz, foi transformado em vitrine de uma festa que, no fundo, nunca foi delas.

Isabela é incisiva ao considerar que o empoderamento pelo corpo, quando filtrado pelas lentes do consumo, é uma armadilha. É o feminismo domesticado — aquele que combina com o marketing. Incentiva-se que mulheres se mostrem, que ocupem espaço, que gritem alto — desde que isso se encaixe na moldura do desejo masculino. O sistema não se incomoda com o corpo feminino exposto. Ao contrário: ele lucra com isso. O que incomodaria seria um corpo que não estivesse à venda.

A sexualização da mulher brasileira não começa no sambódromo. Tem raízes fundadas no sequestro e no estupro sistemático de mulheres negras durante a colonização. O Brasil foi edificado sobre corpos que não tinham voz. E, no Carnaval, essa lógica apenas muda de cenário: dos porões dos navios negreiros para os palcos patrocinados. O confete apenas disfarça as correntes.

Isabela lembra da campanha polêmica da Skol, marca de cerveja, veiculada em 2015, que estampou outdoors com a frase “esqueci o não em casa”. A repercussão negativa foi imediata. O movimento “Não é Não” se espalhou pelos blocos. Mas o problema não era apenas a frase — era o sistema que permitiu que ela fosse aprovada. As marcas aprenderam a suavizar. A vigilância estética e sexual sobre as mulheres não parou — apenas mudou de roupa.

E o jornalismo, para ela, também é cúmplice. Enquanto exalta o samba-enredo, silencia a violência. Enquanto cobre os blocos, esquece os dados. Enquanto dá holofote às musas, apaga as denunciações. Os closes continuam onde sempre estiveram: nos quadris, nos seios, nos sorrisos. A cobertura que exibe a mulher como ícone sexual reforça o mesmo enredo, ano após ano.

Mesmo as mulheres que, como Isabela ou até mesmo Clara, carregam marcadores sociais que lhes oferecem certa proteção — pele clara, classe alta, corpo magro — não se sentem livres. A rua exige preparação. A fantasia exige cautela. A liberdade exige negociação. E para tantas outras, com corpos fora do padrão, com outras coragens, a rua pode ser território hostil.

Clara ainda dança. Ainda vai aos blocos. Ainda sente a pulsação do tambor reverberando nas costelas. Mas não se ilude. A cada passo, equilibra-se entre o desejo de se lançar ao êxtase e o medo do que pode encontrar. Porque na festa onde tudo parece permitido, é o corpo feminino que continua sendo proibido — de descansar, de existir, de não servir.

O Carnaval, que nasceu como uma subversão da ordem, foi domesticado pelo espetáculo. Ordem do consumo, do desejo, da vigilância. As mulheres seguem no centro da cena — mas como enfeite, não como voz. São coroadas, fotografadas, admiradas. E ainda assim, continuam invisíveis.

E, como lembra Isabela, há resistência. Há luta. Há corpos que dançam como quem reivindica existência. Há passos que desafiam o compasso da opressão. O corpo feminino ocupa a avenida, cintila sob os refletores, inebria os olhos do mundo. Mas não a habita. Não escolhe o passo, não traça o percurso, não costura a própria fantasia. Ainda dança com algemas de brilho, entre vitrines e vontades alheias. E, no entanto, algo escapa. Um gesto em desalinho, um olhar que recusa o script, um pé que pisa fora do compasso. A presença que era adorno começa a se fazer voz. Talvez ainda não pertença — mas já inscreve rachaduras no percurso. Um dia, quem sabe, a avenida floresça sob seus passos livres.


 

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