No mês de abril, o serviço de streaming, Netflix, anunciou em uma carta direcionada a seus investidores uma queda substancial no seu número de assinaturas. No documento, a empresa divulgou que cerca de 200 mil usuários cancelaram seus planos durante o primeiro trimestre do ano. Ainda, a Netflix informou que, no próximo semestre, espera perder mais de 2 milhões de assinantes. Após o comunicado, as ações da empresa despencaram em 35% e culminaram em uma perda de 30 bilhões de dólares em valor de mercado.
Ainda em documento oficial, a Netflix procurou entender os motivos para a queda no número de assinaturas. Segundo a empresa, o compartilhamento de senhas entre usuários tem se tornado um problema significativo e o serviço vem tomando medidas para que essa questão seja minimizada. Outro fator que influenciou a debandada de usuários é a forte concorrência de outros serviços de streaming. Produtoras que anteriormente disponibilizavam seus títulos na Netflix criaram suas próprias plataformas e atraíram milhares de usuários.
O produtor executivo dos grupos Warner e Disney, Ricardo Montanha, explicou sobre o atual papel que o serviço desempenha no mercado: “A Netflix está longe de ter monopólio, tanto aqui quanto lá fora. Com os players tradicionais deixando de licenciar produtos para eles e abrindo seus serviços, o market share da Netflix tem caído e a tendência é essa. Foram quase monopolistas por serem os primeiros, mas essa etapa acabou.”
Montanha ainda explica sobre a tendência dos assinantes no período pandêmico, em que a quarentena obrigou que pessoas ficassem confinadas em casa, aumentando o número de usuários, e como a retomada das atividades presenciais pode ter afetado isso: “ Muita gente assinou a Netflix por causa da pandemia, então parte desses clientes saíram com a volta ao normal; outra parte não tem dinheiro pra pagar montes de serviços então vão migrando de um para o outro, mês a mês.
Esses outros “players” que Montanha cita, cresceram especialmente durante a pandemia. É o caso, por exemplo, dos serviços de streaming da Disney (Disney +), da Amazon (Prime Video), do Star Channel - antiga Fox - (Star +), da Paramount (Paramount +), da HBO (HBO Max), entre outros. Por serem produtoras próprias, já possuíam um vasto catálogo disponível com títulos já conhecidos e adorados pelo público. Essa dinâmica não só oferece à Netflix uma forte concorrência, mas também a obriga a revolucionar sua proposta inicial.
Tabela de crescimento dos serviços de streaming no Brasil, entre janeiro e março de 2022. Fonte: Just Watch
A diretora de arte, Anna Helena Saicali é uma usuária ávida de diversos streamings: “Além da Netflix assino ainda Amazon Prime, Disney +, HBO Max e Apple”, afirma. Para ela, a diversificação das plataformas é vista como algo positivo: “O surgimento da Netflix e dos concorrentes foi muito bom para gerar mais mercado para o setor do audiovisual e trazer opções na programação que não se encontra nem na TV aberta e nem na TV a cabo. Hoje através do streaming o assinante faz sua própria grade de programação e assiste onde e quando quiser.”, explica.
Nascido em 1997 sob o pretexto de “aluguel de DVD 's", a Netflix se tornou o primeiro site de streaming em 2007. Sua proposta, portanto, é que as pessoas possam ver os filmes e séries de sua escolha - uma distribuidora e não uma produtora. No entanto, com o crescimentos de outros streamings, que já possuem um catálogo forte, e com a saída desses títulos da Netflix, a empresa precisou se reinventar, produzindo também conteúdos próprios. Apesar de possuir franquias bem-sucedidas, como Stranger Things, Sex Education, Bridgerton, The Umbrella Academy e Sense8, é difícil competir com produtoras que estão há anos no mercado. Dessa forma, com conteúdos de qualidade questionáveis e sem títulos aclamados pelo público, o número de assinantes tende a diminuir.
Além disso, é possível que uma versão da Netflix com anúncios esteja para surgir em breve. Isso porque, uma das reclamações mais frequentes dos usuários é a do aumento no custo da assinatura do serviço. É verdade que a empresa surgiu com uma proposta acessível e, desde então, o valor aumentou consideravelmente. Por isso, a dinâmica milionária que possibilitou o crescimento da Netflix - maratonar suas séries preferidas sem interrupções publicitárias - está sendo revista. Reed Hastings, CEO da empresa, explicou: “sou um grande fã da escolha do consumidor, então consumidores que querem um preço mais baixo e são tolerantes com anúncios podem ter o que querem”.
CEO da Netflix, Reed Hastings. Foto: Getty Images
De acordo com Montanha, o preço da Netflix se tornou um impasse para os usuários, que podem optar por outras assinaturas mais baratas: “O serviço é o mais caro de todos internacionalmente falando. Então houve uma queda grande”, aponta. Porém, reitera: “Ainda há muita gente sem assinatura no mundo, a tendência é retomar uma curva de crescimento ao longo do tempo - desde que consigam manter, globalmente, um nível de ‘acerto’ alto nos produtos que licencia e nos que comissiona produção.”
Para Saicali, a Netflix tem acertado nas produções, já que tem disponibilizado títulos próprios com temáticas diversas, atingindo um maior número de pessoas com diferentes gostos pessoais: “Nessa nova onda vieram as novas plataformas com produções de qualidade que geraram uma concorrência maior com a Netflix. (...) . Apesar disso não concordo com a queda da qualidade no geral mas sim com um aumento de produções no catálogo, visando atingir mais consumidores de outros nichos.”, declara.
Além das questões mercadológicas, fatores geopolíticos também afetaram o número de assinaturas da empresa. Em fevereiro deste ano, a Rússia invadiu a Ucrânia com fins expansionistas, gerando forte condenação da comunidade internacional. Dentre as sanções impostas, a Netflix saiu do território russo, o que influenciou na queda de assinantes.
A Disney no mercado de streamings
Apesar dos entrevistados não concordarem com um monopólio que a empresa pode ou não ter obtido durante seus primeiros anos na indústria, é importante notar como o modo "netflixiano" de produção tomou conta da indústria audiovisual e cinematográfica. Nas outras plataformas de streaming recém lançadas, por exemplo, a estratégia continua a iniciada pelo Netflix - séries produzidas pela própria empresa, com múltiplos episódios lançados ao mesmo tempo, ou filmes extremamente comerciais e rentáveis.
Esse tipo de dominação de um modo de produzir também é presenciada nas salas de cinema, cada vez mais lotadas de produções de propriedade da Disney. O site Box Office Mojo informa que entre as dez primeiras posições mundiais de maiores bilheterias, sete delas são da empresa. Dessas sete, quatro fazem partes das denominadas "sagas" ou "franquias", que posteriormente, podem ser maratonadas na plataforma do Disney+, como uma série.
Em seu texto "Remember Me on This Computer", publicado pela n+1, a jornalista A. S. Hamrah escreveu: "Com a habilidade de exibir conteúdo pela internet, qualquer empresa consegue fazer o que o Netflix fez. Netflix se apoderou da cinefilia para seus próprios fins aquisitivos e cínicos…". Se por um lado a expansão das plataformas pode significar uma maior diversidade de conteúdos e produções, a realidade também pode ser outra: Amazon Prime, Disney +, HBO Max e Apple TV, assim como o Netflix, estão cada vez mais a serviço do capitalismo e não da imaginação. O mercado se expande, a arte se contrai.