Por Gabriela Figueiredo
À primeira vista, é um chão de terra batida entre um prédio residencial novo e inovador em São Paulo e algumas casas que nunca parecem pertencer a alguém. O convite de entrada é uma placa autoexplicativa de que ali reside o Cruz da Esperança. Acompanhada de um portão azul, onde é pendurada. Andando trilha adentro, é possível enxergar muito chão e muito espaço. Espaço até demais para uma cidade que não guarda muito dele, mas constrói mais quando o falta. Aquele espaço, é preservado.
Após atravessar a trilha longa e reta, rodeada de espaço livre, algumas cercas e com bastante árvore e área verde, às 19h00min de um domingo é possível ouvir um samba de fundo e enxergar uma casa verde cercada de carros estacionados. Coincidentemente, ou não, é a mesma característica da casa que nomeia o bairro. Casa Verde.
O Cruz da Esperança, mais conhecido hoje como reduto do samba, pelos sambistas e frequentadores, já foi reduto de muita coisa. Do futebol de várzea, o Grêmio Esportivo Recreativo Cruz da Esperança da Casa Verde, que fez e faz ações sociais na zona norte da capital paulista durante toda sua existência. Do samba e do samba-rock, que até hoje persiste com apresentações de grupos de samba, de quinta a domingo. E de ex-escravizados. É um quilombo.
O bairro da Casa Verde é nomeado de “pequena África paulistana” por Tadeu Caçula, sambista e sociólogo, que estuda o bairro em seu livro, que leva de título, o nome do local. E explica que lá, é um dos lugares que abrigou as pessoas pretas e pobres que moravam no centro da cidade, no início do século XX, após a higienização étnica do centro.
O bairro da Casa Verde foi erguido e morado por pretos. E tem essa identidade. Quando começa o samba na casa verde do Cruz da Esperança, ainda são os pés pretos que sambam naquele chão, que já foi de quilombola.
Na casa do Cruz é possível observar um campo de futebol do lado esquerdo e um parquinho para crianças do lado direito. O portão de grades também verdes antecede um espaço mais longo do que largo, e todo verde, das paredes, às pilastras, a produtora cultural do Samba no Gogó, um dos grupos de samba que toca no Cruz, aos domingos, 19h00min.
Thais Eredia explica a importância do lugar e deixa filmar a apresentação daquele dia. O repertório é variado, de Alindo Cruz e Zé Keti à Fundo de Quintal, ouço com felicidade tudo o que já conhecia, mas não naquelas vozes. O Samba no Gogó tem a premissa de cantar samba com percussão, sem microfone, para recuperar da boca do povo, os versos que já têm história. Um percussionista puxa a primeira frase e o público dá o tom até o final. Das 19h00min às 22h00min, a casa foi-se lotando aos poucos.
Às 22h00min começa a tocar black music, seguido dos passinhos de cada frequentador. Todos os músicos têm algo em comum. Nasceram ouvindo e sendo guiados pelo samba. E agora fazem samba.
Em São Paulo, o samba tradicional, antigo, custa para resistir fora dos centros. Mas é mantido pela periferia, que consegue preservar na tradição de comunidade, as lembranças do que um dia foi o samba. E também curtir, o que hoje se tornou.
A premissa do Samba no Gogó é acompanhada pelas crenças dos sambistas. Deyverson Francisco, explica que, o samba pode até sofrer influências e alterações de quaisquer outras músicas ou ritmos.
O ritmo brasileiro, originalmente, nasceu da batucada africana, utilizada para construir e cantar os pontos de orixá das religiões da matriz. E se transformou em contato com a realidade brasileira e influências musicais e culturais de outros lugares, que chegaram aqui também, ao longo dos anos.
Tadeu Kaçula explica que o samba na capital paulista acontece de outro jeito, diferente de outras regiões do País, como Rio de Janeiro e Bahia. Em São Paulo, o samba de percussionistas nasce da necessidade de se reunir e formar uma comunidade, após as escolas de samba, na preparação dos desfiles, deixar se seguir a tradição de se reunir apenas para fazer música. As escolas pararam, o povo continuou.
Todos os sambistas concordam que tocar no Cruz é corroborar com uma história de anos, que os representa enquanto pessoas e enquanto profissionais. A ponto de, Jeferson (Mumu) considerar que ser negro e não ser do samba, é uma coisa contraditória. É a mesma coisa que ser evangélico. É cultuar uma cultura de alguém que te escravizou”.
Vive na consciência de todos aqueles que fazem samba as suas raízes e os seus porquês.
Thais explica que o Samba no Gogó representa o samba raiz, mas com uma finalidade: fazer as pessoas felizes. Os que encheram a casa verde do Cruz, encheram o espaço com samba no pé, na palma da mão, na voz e com sorriso no rosto. A maioria deles negros. Poucas eram as vozes que não sabiam o que cantar.
O criador do grupo, conhecido como Zezão, diz que teve o mesmo intuito de todos que tiveram que sair da tradição das escolas de samba: fazer um samba no gogó em qualquer lugar, para as pessoas relembrarem ou não esquecerem do samba do passado.
E é esse, um dos sambas, que preenche a sonoridade da casa verde, com paredes verdes, pilastras verdes e que reúne toda a comunidade de todos os lugares de São Paulo em um só lugar, todos os domingos.