Motoristas de aplicativos têm rotina insegura

Me inscrevi em um aplicativo de transporte para entender mais sobre essa profissão autônoma que tem dominado o mercado
por
Leonardo Caporalini
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11/11/2024

Por Leonardo Caporalini

 

Votuporanga, cidade do interior de São Paulo com aproximadamente 100 mil habitantes ainda acorda lentamente ao amanhecer. As ruas estão vazias, sem o movimento frenético de grandes centros urbanos, mas a tranquilidade é interrompida por alguns ciclistas e motoristas que já estão a caminho do trabalho. O céu, limpo e sem nuvens, reflete uma temperatura de 24°C, a mais amena do dia, em uma das cidades mais quentes do Estado. A calma, ao contrário do que muitos imaginam sobre o trânsito nas grandes cidades, revela um cenário de paz. Porém, para quem decide explorar as ruas da cidade como motorista de aplicativo, cada esquina esconde uma história, e a rotina é bem diferente da de metrópoles saturadas de carros.

Enquanto plataformas como Uber e 99 ainda não têm presença em Votuporanga, o TID – Tô Indo, uma alternativa regional, já ocupa o espaço que falta no transporte urbano. O TID é uma solução que nasceu da necessidade de um transporte acessível, prático e que acompanhasse o ritmo calmo da cidade. A proposta não envolve sofisticadas inovações tecnológicas, mas um serviço adequado às peculiaridades de uma cidade interiorana. Só precisa ser simples.

Era 7h45min quando saí de casa, ansioso para viver a experiência de ser motorista de aplicativo em uma cidade pequena, que inclusive foi onde nasci. Ao me conectar ao sistema do TID, não demorou muito para que o primeiro pedido chegasse. A corrida era rápida – 10 minutos até o bairro Pozzobon, zona norte da cidade. Cheguei ao endereço e encontrei dona Cida, uma senhora de cabelos grisalhos, que segurava com firmeza sua sacola de mercado. Durante a corrida, ela comentou que, sem o TID, teria que depender dos filhos, que moram longe, ou pedir favores aos vizinhos. Enquanto observava as ruas tranquilas da cidade passarem pela janela, ela contrastava momentos de simpatia e timidez. Senti que ela não queria conversar comigo, talvez pelo horário ou insegurança.

Ao longo do trajeto, é impossível não notar os detalhes que fazem de Votuporanga um lugar com aura de “caipira moderno”. As ruas arborizadas, as casas com jardins bem cuidados e a falta de movimento nas avenidas dão a impressão de que o tempo se arrasta. A vida na cidade tem sua própria dinâmica, que não se compara às grandes metrópoles. Conforme o dia avançava, as corridas seguiam o ritmo tranquilo de Votuporanga. Cada passageiro parecia carregar consigo uma personalidade única. Jovens indo trabalhar nas fábricas locais, idosos indo ao médico, e até pais apressados tentando salvar o dia ao se esquecerem do uniforme do filho e pedirem uma corrida urgente até a escola.

Ao longo dos três dias como motorista, notei uma diferença fundamental em relação a cidades maiores. Em São Paulo, por exemplo, sabemos que as corridas são constantes, com um fluxo praticamente ininterrupto de passageiros. Já em Votuporanga, o movimento do TID segue o ritmo do próprio município. Isso não é um problema para o aplicativo, que segue atendendo seus usuários durante todo o dia, mas com uma demanda que, mesmo modesta, ajuda no sustento de muitos motoristas que dependem do TID para complementar sua renda.

Em um desses dias, fui solicitado pelo Paulo, um homem de cerca de 40 anos, que estava de volta a Votuporanga após perder o emprego na capital. Durante o trajeto, ele contou sobre sua sensação de alívio ao retornar para sua cidade natal, mas também sobre o sentimento de frustração por não encontrar as mesmas oportunidades que teve quando estava na grande cidade. Nesse momento, refleti muito sobre meus próprios planos – a incerteza de permanecer na capital com um mercado de trabalho absolutamente complexo. Ele me disse que no interior tem tranquilidade, mas também falta muita coisa. Enquanto olhava distraído para as ruas ao longo da conversa, Paulo revelou que estava pensando em abrir um negócio, embora ainda não soubesse o que seria. Ele parecia perdido, mas com esperanças de reconstruir sua vida, mesmo que em uma escala menor, na cidade onde nasceu. Por algum motivo, nada do que ele falava demonstrava convicção. Era como se ele estivesse coberto de incertezas e tomado pelas frustrações. Ainda assim, não demonstrava tristeza, apenas esperança.

No dia seguinte, uma corrida para um sítio nos arredores de Votuporanga me levou a Amanda, uma jovem veterinária que atende aos animais da região. Durante a viagem, ela comentou como as dificuldades de trabalhar em uma área rural são ampliadas pela falta de recursos. Ela mencionou que, na maioria das vezes, atende a animais sem cobrar muito, pois muitos donos não têm condições de pagar as consultas. A cidade, mesmo com seu ambiente tranquilo, possui uma grande quantidade de demandas não atendidas, que se reflete nos detalhes da vida dos moradores. Amanda parecia bem decidida, animada. Me deu um ânimo apenas por entrar no carro. Ela parecia extremamente apaixonada pelo que faz. Tentei me aprofundar mais sobre seu lado pessoal, mas, nesse momento, a conversa foi mudando. Ela não pareceu à vontade em conversar comigo. Tem vezes que também não quero conversar com o motorista, entendo perfeitamente. 

Ainda assim, nem todas as histórias foram tão “pra cima”. Em uma das tardes, única chuvosa, um jovem na casa dos 25 anos chamado Gustavo entrou no carro. Ele estava voltando de uma entrevista de emprego que, segundo ele, não havia dado certo. Com uma expressão séria, comentou sobre a dificuldade em encontrar trabalho na cidade e revelou que já estava considerando mudar-se para o Paraná, onde acreditava que haveria mais oportunidades. A conversa foi breve, e a tensão no ar parecia refletir as dificuldades de quem vive em uma cidade do interior, onde o mercado de trabalho é limitado e as opções para os mais jovens são escassas. A cada conversa no meu carro, era como se as inseguranças dos passageiros me fizessem refletir sobre a vida. Acho que em algum momento vou precisar desabafar sobre as minhas frustrações para um motorista de aplicativo qualquer, como se ele fosse um psicólogo ou até mesmo um mero ouvinte. Talvez já tenha feito e não percebi.

A rotina de um motorista de aplicativo em Votuporanga não é simples. Embora as distâncias sejam menores e o trânsito seja mais leve, a quantidade de tempo investida nas viagens e a atenção necessária para garantir um bom atendimento são as mesmas de grandes centros urbanos, com uma diferença: a demanda. Por ser uma cidade pequena, nem sempre havia clientes. Cheguei a passar uma hora sem trabalhar na área que gostaria e precisei andar um pouco para fugir dessa realidade e buscar passageiros. A longo prazo, não me pareceu ser uma boa opção trabalhar com isso no interior.

Confesso que imaginei receber inúmeras histórias diferentes, ouvir causos inesperados. Mas não, foram dias absolutamente comuns, retratos de uma rotina massiva e cansativa. Os passageiros tinham dificuldade em aprofundar uma conversa comigo. No final do turno de três dias ganhei R$ 150,00 líquido trabalhando 12 horas no total. Já começo a entender que esse tipo de empreendorismo pode não valer esforço diário de quem depende apenas dele para sobreviver.

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