Imagem: Joanna e Marc Bolland, CEO da Marks & Spencer, na East London Street coberta por roupas descartadas para realçar o problema de roupas indo para o aterro.
O mercado da moda movimenta por ano cerca de 2,3 trilhões de dólares no mundo. São cerca de 100 milhões de toneladas de fibras processadas em escala global. Nesse setor, o Brasil é responsável pela 5ª posição mundial, e somente por aqui são geradas cerca de 100 mil toneladas de lixo todo ano, segundo a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit). Mas, a indústria têxtil, bastante rentável, está vendo seu antigo modelo Fast Fashion - produção em escala, rápida e que segue a lógica do descarte - perder espaço substancialmente à Slow Fashion - conceito de moda que pauta a ecologia no processo industrial, preservando as pessoas e natureza. Tendência ainda mais urgente com o início da pandemia.
Depois de décadas de um modelo de produção que prioriza o lucro, condições precárias de trabalho em várias partes do mundo e o descarte exacerbado de lixo, novas tendências, estratégias e meios de produção surgiram. Isso está ligado à pauta ambiental, que vem ganhando maior visibilidade devido às crises enfrentadas pelo mundo atualmente. A inovação pensada na redução dos impactos ambientais se faz necessária, assim como a consciência social, de quem produz e de quem consome. A relação entre moda e sustentabilidade está conquistando cada vez mais espaço nos últimos anos. A Internet, as mídias digitais e grande parte da geração Z são responsáveis pelo movimento que exige cada vez mais um olhar crítico para a procedência e uso cotidiano da moda.
A Abit realizou um painel online com o tema Como a Indústria da Moda Está Cuidando do Seu Lixo, no dia 1º de abril do ano passado. Para responder à pergunta “O que fazer com o que nós geramos?” Fernando Valente Pimentel, presidente da Associação, apontou que a melhor forma de não poluir é fazer isso desde o início, ter uma concepção do produto. Como observado por Pimentel, o começo dos processos deve ser modificado para uma possível solução da questão ambiental no mundo da moda.
Nesse sentido, a estudante de moda Marina Guimarães, 21 anos, que é aluna da Fundação Armando Álvares Penteado, FAAP, comentou que não existe uma disciplina específica na graduação sobre o assunto, mas os professores buscam incluir isso nos temas que abordam. “Os professores fazem a gente pensar nessa questão e a influência dela em todos os aspectos que estudamos. Em todas as matérias, a relação com o meio ambiente é evidenciada, além da realização de palestras sobre sustentabilidade”, relatou.
Marina afirmou que o maior problema hoje em dia é o uso da água. “Um jeans para ser feito, precisa ser lavado muitas vezes. Na hora de tingir os tecidos, também se gasta muita água”. Outro ponto destacado foi a volatilidade da moda e a geração de lixo. “Hoje você quer ter uma determinada blusa que está em alta, e semana que vem quer comprar algo que é uma tendência nova. A compra excessiva e o descarte incorreto das roupas contribuem para a poluição. As próprias marcas deveriam informar aos clientes o jeito certo de se desfazer da peça.”
Cerca de 80 bilhões de peças de roupas são adquiridas a cada ano, de acordo com o estudo “A injustiça ambiental global da moda rápida”. Nesse sentido, a estudante ainda evidenciou o papel relevante dos consumidores no processo de mudança para que o mundo da moda se torne um meio mais sustentável. “É preciso prestar atenção à vida útil das vestimentas. Comprar aquilo que realmente vai ser usado por um bom tempo”.
Ela também falou sobre tendências inovadoras para evitar a geração de lixo ou o descarte inadequado, e apresentou a técnica chamada de Upcycling. “É possível juntar duas roupas, costurar e transformar em algo diferente. Não precisa nem ir longe. Por exemplo, posso pegar uma camiseta, cortar, e terei um top. A proposta muda totalmente e você fica com uma peça nova.” Dois exemplos da transformação do mercado são a Zara e a Forever 21, impactadas principalmente pelo modo insustentável de produção têxtil e sua decadência. Das duas empresas, a Zara resolveu se reinventar para uma abordagem mais sustentável aos olhos do público, assim como a Riachuelo, que deixa em suas propagandas e etiquetas informações de que aquela roupa foi feita em um processo mais eco amigável. Apesar disso, essas empresas ainda são acusadas de trabalho escravo/infantil para a produção de suas roupas. Já a Forever 21 resolveu continuar com sua abordagem Fast Fashion sem mudar nada sobre o propósito da empresa, o que resultou em perda de lucros e consequentemente na declaração de falência do conglomerado.
Para Natalya Picheictt, fundadora da marca Slow Fashion FAMME, a primeira coisa que vem a sua mente ao pensar em sustentabilidade é progresso. “Assim como assuntos como veganismo levantam bandeiras ambientalistas, muitas vezes você pode olhar pra dentro do teu guarda-roupa mesmo e ver que a moda também é uma forma de você ajudar o meio ambiente sem fazer muito”, ressaltou. Reutilizar roupas ou pensar em doá-las ou mesmo comprar alguma peça pensando na sua longa duração já é um grande passo. Para a empreendedora, o mais difícil ao iniciar um modelo de negócios sustentável é saber a procedência dos materiais utilizados em sua marca. Além da pesquisa para encontrar os fornecedores certos, é um desafio também rastrear toda a cadeia.
Com o avanço dessa nova tendência, novos movimentos surgem para atingir o maior número de adeptos. Um deles é o Fashion Revolution, ONG criada em 2013 que, com atuação em mais de 100 países, opera para uma moda limpa, segura e responsável. Como uma rede de designers, acadêmicos, escritores, comerciantes, marcas e qualquer pessoa “amante da moda”, realiza anualmente a Fashion Revolution Week, evento para o debate dos temas acerca da moda. Em 2021, a Semana que se encerrou no dia 25 teve como tema central os Direitos Humanos, Natureza e Revolução Sistêmica. Onde seu principal objetivo, em 7 dias de evento, é a mobilização de pessoas para além de suas realidades. Para Ana Carolina Olyveira, representante da Fashion Revolution no Brasil, a sustentabilidade ainda é uma bolha. Por que não pensar ao invés de um sistema linear, num sistema circular, onde os produtos sejam reutilizados? O conserto é uma das formas de se pensar ecologicamente. Segundo Ana Carolina, o evento também faz perguntas às próprias marcas. O fator pandemia fez com que as pessoas parassem para pensar sobre sua relação com o que vestem. “Pessoas começaram a olhar o que têm no guarda-roupas”. Por outro lado, também fez pessoas comprarem mais através da Internet.
A sustentabilidade não significa produtos mais acessíveis financeiramente. Pelo contrário. Roupas e acessórios provenientes do Slow Fashion ainda são inacessíveis para parcela de baixa renda da população. Mas cada vez mais a tendência é de transformação de hábitos. Segundo a empreendedora e representante do Movimento, parte dessa mudança vem do consumidor. É preciso também questionar e cobrar as marcas para serem mais flexíveis.
Ao mesmo tempo, frente a essa nova tendência comportamental, os preços atrativos do modelo Fast Fashion ainda sustentam a suposta necessidade de consumo desenfreado. Apesar desses delírios por peças de vestuário não ser algo recente, a consolidação dos e-commerces e a publicidade das marcas nas redes sociais, especialmente no Instagram, colaboraram para um aumento no frenesi pela prática. No entanto, para que essa rede de consumo se sustente e alguns possam se deleitar com uma nova vestimenta, muitas das empresas assumem um sistema de exploração e abuso de seus funcionários, mesmo dentre aquelas que se promovem com a sustentabilidade.
O mercado da moda possui uma notória relação com a escravidão contemporânea. Em 2018, a fundação Walk Free, através de uma pesquisa efetuada pelo The Global Slavery Index, apontou a moda como o segundo setor com maior exploração de trabalho análogo a escravidão. No mesmo ano, o Índice de Escravidão Moderna divulgou dados mostrando que dos 354 bilhões de dólares em itens importados para países do G20, - produzidos através de mão de obra escrava – um terço são peças de vestuário.
Não são poucas as marcas que já estiveram ou ainda estão relacionadas a práticas de exploração da força de trabalho, ocorrendo principalmente em países subdesenvolvidos. Durante a década de 1990, a Nike foi incriminada por utilizar mão de obra infantil em suas fábricas na Ásia. Nos últimos dez anos, a Renner, Marisa e Pernambucanas estiveram envolvidas com a exploração de costureiros bolivianos trabalhando de forma análoga à escravidão. Sem contar a Zara, que já foi flagrada mais de três vezes submetendo trabalhadores estrangeiros a situações degradantes e de abuso.
A ONG Repórter Brasil forneceu dados apontando que no território nacional mais de 35 marcas do setor estiveram relacionadas ao trabalho escravo e, desde 2010, foram resgatados mais de 400 costureiros e costureiras em condições análogas à escravidão. O relatório da Walk Free também indicou a existência de mais de 40 milhões de pessoas colocadas nessas condições de trabalho dentro do setor da moda - considerando um cenário mundial – sendo que 70% desses trabalhadores são mulheres.
Esses índices expressivos se devem a cadeia de produção da moda, especialmente àquela conhecida como fast fashion, que almeja maior produtividade em suas fabricas pagando menos pelos serviços e obtendo maior lucro com as vendas no varejo. Essa tática de produção é a mais seguida pelo mercado, o que já proporciona a venda de aproximadamente 80 bilhões de peças de roupas por ano ao redor do mundo. Para a manutenção desse sistema, muitas marcas de moda passaram a migrar suas fabricas para países com legislação mais favoráveis – como Índia, China, Coreia, Bangladesh entre tantos outros.
Tal medida já proporcionou, por exemplo, que Bangladesh se tornasse o segundo maior exportador de vestuários do mundo, movimentando US$ 28 bilhões na economia do país, conforme informações da Organização Mundial do Comércio (OMC). Contudo, a invasão da indústria da moda nesses países não traz apenas benefícios econômicos. Em 2013 ocorreu a tragédia do edifício Rana Plaza, localizado na periferia da capital de Bangladesh, na qual uma construção de oito andares desabou deixando 1.133 pessoas mortas; nela 2 mil funcionários que recebiam aproximadamente R$360 para trabalhar - durante 10 horas em seis dias na semana - para fabricas de cinco confecções estadunidenses.
A tragédia do Rana Plaza foi o estopim para o surgimento da Fashion Revolution. Ana Carolina Olyveira explica melhor acerca das reflexões promovidas pela campanha: “A #quemfezminhasroupas é uma das principais do Fashion Revolution. Quando a gente pergunta "quem fez minhas roupas?" a gente quer saber o nome da pessoa que faz a sua roupa. Às vezes respondem "ah, foi tal confecção", mas quais foram as condições de trabalho nessa confecção? Como essas pessoas trabalham? Do que as minhas roupas são feitas? Quem cortou minhas roupas? Quem bordou minhas roupas? Então é um questionamento muito mais a fundo que se estende.”
Sobre o mercado nacional, ela ainda diz: “entre 2016 e 2018, a cada cinco trabalhadores resgatados nessa situação análoga à escravidão, quatro eram negros. Então, é além, você vai percebendo que a questão vai ficando mais profunda, porque aí vira uma questão estrutural”.
O Brasil é o quarto maior produtor de roupas mundial, faturando de US$ 55,4 bilhões em 2014, proporcionando 1,6 milhão de empregos e tendo 85% da produção consumida dentro do país, segundo dados da Associação Brasileira da Indústria Têxtil (Abit). E assim como em Bangladesh, existem inúmeras histórias de flagras e tragédias envolvendo exploração de mão de obra escrava – principalmente estrangeira oriunda da Bolívia – nas fábricas das confecções.
Em 1995, o Brasil foi uma das nações pioneiras em reconhecer oficialmente as práticas de trabalho forçado em sua extensão. Institucionalmente o país possui certo programa de combate a essa forma de exploração, com uma legislação regulamentando práticas de trabalho, um Código Penal prevendo pena de 2 a 8 anos para o cidadão que explorar seus funcionários e com a “Lista Suja” – um recurso para registrar e divulgar empregadores irregulares.
Já em 2005 houve uma CPI do trabalho escravo na Câmara Municipal de São Paulo, proporcionando que Auditores-Fiscais do Trabalho pudessem usar o poder público no combate ao trabalho escravo na indústria paulista de moda. Em 2009, também houve articulações políticas para a proteção do trabalhador imigrante, o que resultou na homologação do Pacto Contra a Precarização e Pelo Emprego e Trabalho Decentes em São Paulo – Cadeia Produtiva das Confecções.
Além das medidas em âmbito político, ONG’s e instituições colaboram na conscientização da população acerca do tema. O aplicativo Moda Livre, desenvolvido pela ONG Repórter Brasil, reúne informações de diversas marcas sobre seus envolvimentos na exploração de mão de obra escrava e avalia as ações adotadas pelos varejistas do país; o que permite ao consumidor se conscientizar sobre a produção da peça que será consumida.
Diversos projetos também surgem diariamente, tornando-se fortes aliados na divulgação e na conscientização acerca dos problemas no mundo da moda. Uma iniciativa que surgiu nas redes sociais é o Devagarzin, instagram criado por Srah Rabello como trabalho de conclusão do curso de publicidade, em 2017. No qual tem o propósito de informar os consumidores sobre as marcas, a partir de análises de campanha. Dando assim, a oportunidade para os consumidores de pensar e refletir se o que consomem é o mesmo em que acreditam. Para ela, as principais mudanças hoje se dão através da Internet e de propostas como a dela: “a Internet e as mídias sociais trouxeram poder pro consumidor, [...] que começa a entender o papel dele de exigir das marcas o que ele quer. Então agora o poder vai mais para a mão de um consumidor que tem melhor acesso à informação e que entende mais as consequências da sustentabilidade. Com isso, o movimento sustentável, o movimento slow fashion, vêm crescendo muito”.
Outro projeto que se consolidou através das redes sociais é o Não É Moda, instagram criado no início de 2020 junto com o podcast Esse Não É Um Podcast Fashion, por Gabriel Coutinho e Rafaella Parma diante da insatisfação de não encontrar tantas pessoas expondo tais problemas de maneira popular. Para eles, a melhor maneira de mudar esse cenário é através da cobrança das marcas e também do aprendizado. “é uma questão de transparência, de cobrar, de perguntar “quem são os seus trabalhadores?”. Você está remunerando para que eles tenham uma vida digna? Que eles tenham um mínimo de condições de sobreviver? Você está dando condições para esse(a) trabalhador(a) também poder consumir uma outra moda, ou ele(a) está só fazendo porque precisa do mínimo pra poder dar comida pros filhos?”.
A tendência mundial de mudança comportamental no mundo da moda veio para ficar. O próprio movimento Slow Fashion e a urgência quanto ao cuidado ambiental se tornaram ainda mais evidentes, levando muitas pessoas a se questionarem sobre o modo pelo qual se relacionam com suas próprias roupas e acessórios. Esse movimento, influenciado principalmente pelas gerações Z e Millenials, é um novo respiro no modo insustentável de produção têxtil, nas questões trabalhistas e no pensamento cíclico de consciência, desde o início do processo até seu final. A reutilização dos artigos de vestimenta é uma âncora também para a fiscalização e exigência de mais e mais consumidores conscientes para que as marcas erradiquem a escravidão contemporânea.