São Paulo lidera o ranking brasileiro da fome, com cerca de 7 milhões de pessoas famintas. O governo do Estado afirma ter uma série de ações que visam ao combate à fome, no entanto, 14,7% da população paulista sofre com a falta de alimento.
Segundo o 2º Inquérito Nacional da Insegurança Alimentar, da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), divulgado no ano passado, cerca 125,2 milhões de brasileiros sofrem com algum grau de insegurança alimentar, representando um aumento de 7,2% se comparado aos dados de 2020.
Somente no Estado de São Paulo, 55,9% da população sofre com algum grau insegurança, sendo mais frequente em domicílios com renda mensal de até meio salário-mínimo (83,8% de insegurança alimentar), trabalhadores informais/desempregados (43,9%) e pessoas sem escolaridade (66,5%).
O agravamento da fome tem forte relação com a pandemia de Covid-19. Isso porque, a partir de dados do no inquérito, no Brasil, a fome saltou de 19,1 milhões de pessoas famintas em 2020 (antes da pandemia), para 33,1 milhões em 2022.
Para Rubens Nunes, economista, professor da Universidade de São Paulo e especialista sobre a fome, “a pandemia fez a insegurança alimentar dar um salto descontínuo, numa tendência de agravamento”. Porém, para o especialista, além da pandemia, há fatores de longo prazo, entre eles o baixo crescimento da economia e a crise fiscal do estado que limitam a execução das políticas públicas de combate à fome.
Na visão de Rubens, São Paulo tem muitas pessoas em situação de insegurança alimentar porque é populoso e que, pela densidade econômica, atrai migrantes em busca de oportunidades que estão se tornando escassas.
Levando em conta que o índice de desemprego na região saltou de 7,7% (2022) para 8,8% (2023), segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). “A desigualdade explica a insegurança alimentar em um estado relativamente rico”, afirma o economista.
Além disso, para o professor, a piora da fome tem relação com o foco principal do governo, já que os mais necessitados não têm direito a alguns auxílios. “As políticas de transferência de renda são bastante efetivas no combate à fome. O problema aqui é o foco: não conceder benefícios para quem não se enquadra e dar para quem, de fato, está em situação vulnerável”.
Isso ocorre, pois boa parte das pessoas elegíveis para programas de transferência de renda são “invisíveis” para o Estado. Já que em sua maioria são pessoas sem documentos, que tem dificuldade para se relacionar de modo formal com as agências públicas, e que não estão amparadas pela previdência social.
Outro fator importante que impacta e dificulta as políticas públicas, reside no fato de que há causas estruturais que, se combatidas, só serão superadas no longo prazo, ao passo que as demandas por alimento são urgentes. Por conta disso, muitas vezes são “escanteadas” pelo governo.
Para Raquel Nunes Silva, doutoranda em Saúde Global e Sustentabilidade (USP), Mestra em Agroecologia (UFV) e professora universitária de nutrição, acredita que, embora São Paulo tenha um imenso potencial agrícola, a distribuição de terras e a concentração da produção em grandes propriedades dificultam o acesso de agricultores familiares aos recursos necessários para uma produção sustentável e diversificada.
“A falta de infraestrutura adequada, como estradas e armazenamento de alimentos, prejudica a comercialização e a distribuição dos produtos, impactando negativamente o abastecimento alimentar”, afirma a professora.
Além disso, segundo a especialista, durante a pandemia a implementação do Plano Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) enfrentou limitações significativas. “A paralisação do Consea/SP e a falta de discussões sobre segurança alimentar e nutricional prejudicaram o andamento das políticas públicas. A participação social e o envolvimento de diversos setores são cruciais para ampliar o alcance das ações e promover a inclusão de atores relevantes nessa área”, complementa.
Na opinião de Raquel, no âmbito das políticas públicas, os principais desafios enfrentados são a fragilidade do Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) no Estado, além de ações desarticuladas e com pouca densidade nas medidas estruturantes. “A falta de uma estrutura sólida no SISAN compromete a efetividade das políticas de combate à fome”.
Ações governamentais contra a fome
Em busca de amenizar o problema, o governo do Estado possui diversas ações e iniciativas, como o “Bom prato”, “Vacina Contra a Fome”, “Vale Gás” (aproximadamente 100 mil famílias) e “Viva Leite” (aproximadamente 300 mil pessoas entre crianças e idosos). Para Rubens, as ações do governo estadual devem reforçar as políticas federais e municipais. “O conjunto das políticas do estado de São Paulo tem um impacto importante, ainda que cada uma tenha um escopo relativamente limitado”.
Marília Touças, presidente do UMA (Instituto Um Momento de Amor), ONG que atende famílias e pessoas socialmente vulneráveis ou em situação de rua, acredita que tais ações governamentais são fundamentais no combate à insegurança alimentar. “Eu fui uma criança pobre e o Viva Leite era fundamental na minha casa. Hoje, acompanho a comunidade que apadrinhamos com cestas básicas e sei da importância dos programas. Para a população em situação de rua”.
Além disso, existe o Consea/SP (Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável), que tem como função, assessorar o governo na construção de políticas públicas, referentes a Segurança Alimentar. Fazendo um elo com a sociedade civil, já que 66,6% de seus membros são civis. O conselho é “a porta de entrada” para as demandas da população.
O presidente do Consea/SP, João Dornellas, afirma: “Nós atuamos principalmente na divulgação e na propagação de informações e de conhecimentos na área da Segurança Alimentar e Nutricional”. O órgão faz as divulgações por meio de palestras e encontros que apresentam as ações do Governo do Estado de São Paulo.
“Também auxiliamos os municípios paulistas na elaboração da Política Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional, com reuniões de capacitação para os gestores municipais”, complementa João.
Na visão de Raquel Nunes, embora o governo tenha implementado programas importantes nos últimos anos, ainda existem lacunas a serem preenchidas e a necessidade de fortalecer essas iniciativas, além de desenvolver estratégias mais abrangentes.
Prova disso, é o não cumprimento do Plano Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional, por parte dos órgãos públicos. Tal documento, elaborado com base em ampla discussão e participação da sociedade civil, contém diretrizes e metas importantes para a promoção da segurança alimentar e nutricional em São Paulo. No entanto, a falta de comprometimento com a implementação efetiva do plano prejudica os avanços necessários no combate à fome.
Importância das ONGs no combate à fome
Durante a pandemia, à medida que o coronavírus se propagava, algumas iniciativas do governo paralisaram suas atividades. Para Vanuzia Teixeira, coordenadora do Consea/SP, o agravamento da fome teve grande relação com a paralização do conselho em 2020. “Justamente neste momento bem delicado, o conselho foi obrigado a paralisar suas atividades”, afirma a coordenadora. A retomada aconteceu apenas em julho de 2021, enfrentando o pós-Covid.
Por conta da interrupção do conselho, o combate à fome em São Paulo teve um grande aliado: as ONGs. Marília Touças, afirmou que com o avançar do isolamento, se deparou com muitas pessoas em situação de rua. “Todos os dias encontrávamos famílias inteiras, com malas e alguns pertences, recém-chegadas à rua. Sem trabalho, sem dinheiro, sem moradia e passando fome”.
Para Rubens, as ONGs foram ágeis e efetivas no combate à insegurança alimentar durante a pandemia. Essas organizações têm capilaridade no tecido urbano e conhecimento das comunidades locais. Dessa forma, o Estado pode firmar convênios com as organizações formais. “O Estado é razoavelmente eficiente para coletar alimentos, enquanto as ONGs são eficientes para distribuir a comida”, afirma o especialista.
João Dornellas, presidente do Consea/SP, reitera sobre a importância do auxílio das organizações não governamentais no combate à fome, “A atuação das ONGs e da iniciativa privada tem grande relevância para o enfrentamento da insegurança alimentar e para o combate ao desperdício de alimentos, e há diversas parcerias em todo o estado”.
Novas promessas do governo de São Paulo
Com o intuito de reduzir os índices da fome e insegurança alimentar no Estado paulista, a Coordenadoria de Segurança Alimentar, vinculada à Subsecretaria de Abastecimento e Segurança Alimentar, da Secretaria de Agricultura e Abastecimento (SAA), criaram em 2023, um diagnóstico sobre segurança alimentar no estado.
A primeira etapa tem o objetivo de identificar os desafios enfrentados pelos municípios para a implementação da política de segurança alimentar, assim como o de levantar as demandas. Trata-se de um levantamento, que vai trazer as ações de segurança alimentar desenvolvidas nos municípios. Segundo Dornellas, “Os dados coletados serão essenciais para o avanço de projetos que possam colaborar com a implementação da política de segurança alimentar”.
Além do mais, para o presidente do Consea/SP, “Os conselhos municipais de segurança alimentar devem ser formados, pois são importantes portas de entrada para a população mais vulnerável. Esses conselhos poderão identificar as prioridades e quais públicos serão atendidos nos territórios”.
João garante que a aliança entre o conselho, os municípios e as ONGs irão facilitar a reduzir a fome da população. “Para além da parceria entre o governo do estado e os municípios, a atuação das organizações não-governamentais e da iniciativa privada será sempre relevante para o enfrentamento da insegurança alimentar e do desperdício de alimentos”.
Além disso, segundo o Relatório do Plano Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável (2019-2023), existem propostas que vão além da distribuição de alimentos. O documento destaca a importância de promover ações voltadas para a garantia do direito humano à alimentação adequada.
Entre as principais propostas estão: fortalecimento da agricultura familiar; estímulo à produção e consumo de alimentos agroecológicos; capacitação e educação alimentar e nutricional; incentivo à criação de mercados locais; articulação e integração das políticas públicas. É importante destacar que essas propostas vão além do combate imediato à fome, visando à construção de um sistema alimentar mais justo, sustentável e equitativo.