Mães de bebês prematuros enfrentam traumas causados pelo medo

A luta de uma mãe para levar sua filha prematura para casa.
por
Isabelle Maieru
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07/10/2024

Por Isabelle Maieru

 

No início da tarde Mirella havia feito um exame de Ultrassom. Ela entrou na sala e foi bem recebida por uma médica tranquila e com um sorriso no rosto. O semblante da profissional da saúde mudou quando ela olhou para a tela. Agora, séria e com uma preocupação visível em seu rosto, a doutora saiu correndo da sala, sem nem se despedir. A partir daquele momento, Mirella, mesmo sem entender o que estava acontecendo, percebeu que a situação era grave.

O dia estava quente e ensolarado naquele 17 de março de 2023, em São Caetano do Sul, município da região metropolitana de São Paulo. Mirella estava com 31 semanas de gestação quando foi realizar uma consulta pré-natal de rotina. Tudo corria como de costume na gestação da jovem de apenas 18 anos. Apesar do susto com a gravidez inesperada, aos poucos tudo se ajeitava e a ansiedade para conhecer a pequena Jade, só aumentava na família. Às 9 horas da manhã, durante a triagem, onde são realizadas as primeiras avaliações, algo chamou atenção da enfermeira: a pressão arterial de Mirella estava desregulada e bem mais alta do que deveria estar. Foi nesse momento, que a angústia começou. A mãe de Jade passou a receber medicações para que a pressão arterial baixasse e a fazer uma série de exames para tentar chegar ao diagnóstico do que estava acontecendo com mãe e filha.

O tempo se arrastava. A pressão não baixava.  A médica que realizou o exame foi ao encontro do obstetra que acompanhou a gestação. A quebra de protocolo aconteceu pois Jade não poderia ficar nem mais um minuto dentro do útero, Mirella não poderia mais estar grávida. Foi naquele exame em que foi descoberto que não havia mais nada de líquido amniótico, o principal responsável pela oxigenação e alimentação do bebê dentro do útero da mãe. Havia ao menos cinco semanas que Jade não recebia nutrientes e perdia aos poucos sua oxigenação, seu tamanho era correspondente ao de um bebê de 25 semanas de gestação, Mirella estava grávida há 31. Nenhum dos exames realizados durante esse período apresentaram alteração. 

Segundo o Ministério da Saúde (MS), cerca de 340 mil bebês nascem prematuros no Brasil por ano. Um relatório divulgado em 2023, pela OMS, a Unicef e a parceria para a saúde materna, neonatal e infantil demonstrou que 10% dos nascimentos no mundo são prematuros. É considerado prematuro o bebê que nasce com menos de 37 semanas. Junto a esse marco temporal específico, há uma classificação mais detalhada das idades gestacionais segundo a OMS: entre a 34ª e 36ª semana e seis dias, é considerado como prematuro tardio; de 32 a 33 e seis dias, como moderados; muito prematuros entre 28 e 31 semanas e seis dias; e prematuros extremos para aqueles bebês nascidos abaixo de 28 semanas. Quanto menor a idade gestacional, maiores são os riscos de não sobreviverem.

A gente teve que tirar ela à força relembrou a mãe. O parto aconteceu e o bebê extremamente prematuro, pesando 800 gramas, foi levado às pressas para a UTI Neonatal. Esse foi o cenário dos cinco meses que seguiram o dia 17 de Março. A mãe, recém operada, passou os seus três dias de internação ao lado da incubadora, que foi a casa de Jade por todo esse tempo. O momento de deixar o hospital e retornar para casa chegou. Com ele, chegaram também o medo, a insegurança e a depressão.

 

O Medo 

Mirella sempre enfrentou um medo profundo das notícias que poderia receber. Cada visita ao hospital era um desafio, uma batalha interna entre a ansiedade e a esperança. O elevador, um espaço claustrofóbico, se tornava um símbolo de sua angústia. Muitas vezes, ao subir, o medo a dominava e, ao invés de seguir em frente, ela acabava descendo novamente, fugindo para casa. A sensação de culpa a acompanhava, um peso constante que a fazia questionar sua coragem.

A sala de espera também se transformava em um campo de batalha. Em momentos de pânico, Mirella saía do elevador, mas se via parada, paralisada, sem conseguir avançar. No entanto havia um elemento que a mantinha firme: o apoio da equipe do hospital, das outras mães que compartilhavam sua dor e, principalmente, da sua família.

Os dias eram pesados, marcados por boletins médicos e uma expectativa constante. Para Mirella, a presença da família era essencial. A prematuridade de sua filha trouxe um trauma coletivo, uma quebra de expectativas que afetou a todos. Seus pais se revezavam nas visitas diárias, garantindo que a neta nunca estivesse sozinha, enquanto Mirella tentava estar ao lado dela sempre que sua saúde mental permitia. Era uma luta constante, ela pensava, mas se forçava a estar lá.

Seu marido, mesmo com as limitações de visitas, estava sempre presente. Ele entrava apenas uma vez ao dia, mas todos os dias, em momentos difíceis, ele esperava por ela no hospital. Quando não estava bem, ele a acompanhava, ficava lá, sempre ao seu lado. Essa rede de apoio era fundamental. Mirella sabia que, sem eles, teria sido impossível suportar tamanha carga. Eles a carregaram no colo. O apoio da família foi essencial a cada dia que se passava.

 

A Solidão 

Embora contasse com o apoio inabalável de familiares e amigos, a solidão era uma constante na UTI-Neo do hospital em São Caetano. Para Mirella, a ausência da filha era uma dor que se manifestava fisicamente. Havia um vazio que parecia insuportável, um espaço que só a presença dela poderia preencher. Era ela, a única que poderia confortá-la e fazer seu coração se sentir completo. O desejo de levar a filha para casa a consumia, transformando cada dia em uma luta.

As noites eram os momentos mais difíceis. A separação entre mãe e filha se tornava ainda mais dolorosa na escuridão. Mirella se lembrava de como desejava ouvir o chorinho da pequena, mesmo que isso significasse perder o sono. Queria que ela estivesse ali, tirando o sono, em vez de estar longe, enquanto a saudade a mantinha acordada. Nesses instantes de solidão, a luta interna se tornava ainda mais intensa, uma batalha entre o amor profundo e a dor da distância. Cada noite era uma prova de resistência, enquanto a esperança de um reencontro a mantinha firme.

Enquanto estava na incubadora, o único contato possível entre mãe e filha eram as mãos, uma segurando a outra, por meio de uma abertura na lateral da caixa. Por serem extremamente frágeis, os recém nascidos prematuros só podem ser manuseados pelas enfermeiras. A prática do “canguru” foi liberada apenas quando Jade foi transferida para o berçário de médio risco, quatro meses após seu nascimento. Por poucos minutos e sob supervisão, Mirella podia sentir seu bebê em seu peito, como sempre sonhou. O método é extremamente defendido pela OMS e Sociedade Brasileira de Pediatria, pois oferece inúmeros benefícios tanto para a mãe, quanto para o bebê.

Foto de arquivo pessoal

Fim da Solidão

Após cinco longos meses de espera, angústia, medo e inseguranças, mãe e filha puderam seguir juntas para casa. Embora estivesse bem e saudável, a luta das duas não terminava por ali. Jade, tomava cerca de doze remédios por dia e fazia uso de bombinhas de ar. Além disso, fazia acompanhamento multidisciplinar com pneumologista, neurologista, gastrologista, oftalmologista, fonoaudiólogo, pediatra neonatologista, cardiologista e cirurgião. Sua idade passou a ser contada de forma corrigida. 

O Ministério da Saúde recomenda que se considere a idade cronológica (idade real que a criança tem desde o nascimento) junto com a idade corrigida (idade que a criança teria se tivesse nascido com 40 semanas), que deve ser utilizada principalmente ao avaliar o crescimento e os marcos do desenvolvimento da criança prematura. Para os prematuros extremos a recomendação é de utilizar a idade corrigida até os 3 anos de vida. para os demais prematuros a recomendação é utilizar a idade corrigida até os 2 anos. 

Hoje, um ano depois, Jade e sua família têm marcas de tudo o que passaram, mas também a alegria de ter a família reunida em casa. A pequena menina teve alta de quase todos os médicos, atualmente ela só faz acompanhamento com a pediatra neonatologista, especialista em bebês que passaram pela UTI-NEO, que vai acompanhá-la até os cinco anos, e com a neurologista. Seus remédios, que antes eram doze, hoje é um só. A mãe, que havia se desencontrado e abdicado de si mesma para cuidar da filha, se reencontrou. Realizou a profissionalização em unhas e hoje tem seu espaço para receber seus clientes. Ao lado do pai, vivem acompanhando o desenvolvimento de Jade. 

Até hoje, o som das máquinas da UTI ecoa na mente de Mirella, provocando uma aceleração instantânea do coração e uma respiração ofegante. O trauma da experiência ainda a persegue, uma ferida que ela tenta curar com a ajuda de psicólogos, psiquiatras e o apoio incondicional da família. Essa vivência se tornou uma marca indelével em sua história, moldando não apenas quem ela era antes da internação de Jade, mas também quem se tornou após esse período desafiador.

Mirella sente que essas memórias, apesar da dor que podem trazer, são parte essencial de sua identidade. Ela diz querer carregar para sempre alguma parte daquilo. Essa experiência não foi apenas uma fase difícil, mas um capítulo significativo da vida de sua filha e da sua própria trajetória. A história de Jade e a sua se entrelaçam de maneira profunda, e Mirella se recusa a deixar que esses momentos sejam esquecidos. Mesmo que às vezes doam, ela quer que essas lembranças façam parte de quem ela é, para sempre.

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 Imagem: Arquivo pessoal

 

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