O vai-e-vem do balanço no quintal é o lugar favorito do Miguel. Sair do parquinho de madeira exige oferecer a bolacha da vaquinha que ele ama. Loiro de olhos azuis, Miguel é super carinhoso. É ele o dono do beijo de lambidas que às vezes sai com algumas mordidas. Já Benjamin gosta mesmo é de pular. Conhecido como Pipoquinha, ele pula o dia inteiro. Seja na cama elástica ou no sofá. De vez em quando, arquiteta planos para fugir de casa. É uma formiguinha apaixonada por doces. Melina é brava. É ela que manda nos irmãos. Se quer alguma coisa, faz dar certo. Ninguém tira os brinquedos que são dela. Encher três balões e colocar uma vela em cima do bolo já é aniversário, sua comemoração favorita. O “fefessário” a deixa eufórica.
Miguel, Benjamin e Melina são os trigêmeos da Manu.
“Cada criança tem o seu tempo”. Essa era a frase que a psicóloga Manoela Crescêncio mais escutava. Acostumada com a rotina e o jeito deles, não notava nenhum sinal de alerta. Até que recebeu um aviso das educadoras da creche municipal sobre um possível atraso no desenvolvimento social dos seus filhos. Ao investigar, recebeu o diagnóstico de suspeita de Transtorno Espectro Autista (TEA).
O autismo é uma condição grave que prejudica a comunicação e interação social. O diagnóstico é clínico e interdisciplinar. Até o momento, não há exames específicos para a detecção. Os traços se baseiam em déficits persistentes, padrões restritos e repetitivos que são analisados por observação direta do comportamento e uma conversa com os pais ou cuidadores. Segundo o neuropediatra Jaime Lin em entrevista para esta matéria, as características estão na dificuldade para estabelecer uma conversa, anormalidade no contato visual e interesse incomum por objetos ou aspectos sensoriais.
Os sintomas geralmente se apresentam de forma precoce no desenvolvimento, mas podem se manifestar apenas quando há uma maior demanda social. Os sinais devem ser qualificados por um profissional treinado e capacitado, seja por neuropediatra, psiquiatra, fonoaudióloga, psicóloga, terapeutas ocupacionais ou psicopedagogas.
“Eu que detesto chorar na frente dos outros, fiquei até com a garganta trancada”, lembra Manoela do dia que recebeu o diagnóstico dos trigêmeos.
Ela que sempre quis ser mãe, não esperava lidar com algo tão difícil. Porém, sabia que se não fizesse algo, ninguém mais faria pelos seus filhos. Noites de estudos constantes, enquanto o trio realizava terapias multidisciplinares que não apresentavam nenhuma melhora no desenvolvimento. Em contato com outras mães, através de grupos online, Manoela conheceu a Análise Comportamental Aplicada (ABA).
A ABA é uma terapia baseada na ciência da análise do comportamento que ajuda no autismo com as habilidades, principalmente, de comunicação. O objetivo é aumentar os comportamentos que são úteis e diminuir os que são prejudiciais ao aprendizado. Apesar de ser muito conhecida nos EUA, Manoela não encontrou nada na cidade onde reside em Santa Catarina. As poucas técnicas aplicadas por conta própria já apresentavam resultados positivos nos seus filhos. Só que o custo para o tratamento era caro demais para a família.
“Pensava em vender minha casa. Só que são três filhos. Se eu vendesse a minha casa, não conseguiria pagar um ano de terapia”, conta Manoela que conseguiu o recurso terapêutico por meio de uma ação judicial que durou dois anos e meio.
De acordo com o art.3º, inciso III da Lei nº12.764/12 são direitos da pessoa com espectro autista o acesso as ações e serviços de saúde, com vistas à atenção integral às suas necessidades, incluindo: o diagnóstico precoce, ainda que não definitivo; o atendimento multiprofissional; a nutrição adequada, terapia nutricional; os medicamentos e informações que auxiliem no diagnóstico e no tratamento.
A vitória neste caso é uma exceção, visto que na maioria das vezes, o Brasil não cumpre totalmente o que está escrito na lei. “A estrutura que temos é quase nenhuma na rede pública para seguir a legislação. Principalmente quanto ao tratamento mais adequado. As medidas são mais paliativas do que para atender as necessidades das crianças”, diz o advogado Alexandre Simon que atuou na ação dos trigêmeos.
Passado um mês com o acesso a terapia, as crianças já tiveram uma significativa evolução. Respondem quando chamadas pelo nome, seguem comandos, apontam para pedir coisas e até emitem várias sílabas. Por outro lado, Christiane Silveira não teve a mesma sorte com o filho Kauã que também possui espectro autista. Cabeleireira, ela se vira junto com o marido que é colorista para conseguir pagar as terapias. “É muito difícil, pelo SUS não consegui. Investimos em média R$3mil por mês. Fora os outros gastos e o tempo que exige”, relata Christiane que também recebe ajuda financeira da família.
Kauã tem três anos, é uma criança muito alegre. Sorri o tempo todo e adora contato físico. Antes tinha um foco extremo para letras e números. Hoje, seu amor é pelos animais. Jogos no celular, desenhos animados, músicas, tudo tem que estar relacionado ao mundo animal. Ele faz acompanhamento com fonoaudióloga, psicopedagoga, terapeuta ocupacional e nutricionista. Para a mãe, o que transformou a vida dele foi a mudança na alimentação. Comenta que a diferença depois de dois meses foi nítida com a diminuição das crises.
“Alimentos processados e ultraprocessados, ricos em açúcares e aditivos podem piorar sintomas no autismo por promover inflamação, prejudicar a função intestinal e aumentar a hiperatividade. Algumas proteínas alimentares, como glúten e a caseína do leite animal, podem intervir no sistema imune, neurológico e piorar sintomas gastrointestinais e comportamentais. Dessa forma, uma alimentação com consumo de frutas, legumes, verduras, cereais, leguminosas e sementes e a exclusão de glúten e leite animal são ideais para pessoas com autismo”, recomenda a nutricionista Maria Rosa Rodrigues.
Tanto os trigêmeos da Manu quanto o Kauã fazem musicalização infantil. Dada a ligação entre o sistema de neurônios espelho e a imitação, a música tem sido sugerida como parte dos programas de terapias. Um estudo publicado pela revista científica Translational Psychology, de 2018, sugere que as atividades musicais podem melhorar a habilidade de comunicação de crianças autistas. O músico Guilherme Fogaça trabalha em conjunto com o plano dos terapeutas. Um dos instrumentos mais usados é o xilofone.
“Miguel gosta de girar as baquetas na mão. Entrego apenas uma, a primeira tem que tocar no xilofone. Quando ele toca já trabalho a questão motora. E digo: ‘muito bem, você tocou o xilofone’. Já entra a comunicação. Como recompensa entrego a outra baqueta para que fique girando as duas na mão”, relata Guilherme sobre um dos atendimentos.
Há uma variedade de terapias voltadas para o tratamento do autismo, isso porque cada caso atende uma necessidade específica. Os êxitos virão na medida que ocorre a conciliação ideal para as características próprias daquele espectro. Uma busca que, geralmente, envolve investimento financeiro que não é acessível para todas as famílias. Desta forma, Manoela abriu com ajuda de outras mães uma Associação de Amigos do Autista (AMA), na cidade de Tubarão (SC). A organização leva informações úteis para os pais e terapia gratuita para as crianças autistas, a partir do trabalho voluntariado de profissionais. Christiane também sonha em ajudar outras pessoas, por isso pretende cursar nutrição e se especializar na área do autismo.
Caro leitor, concedo este parágrafo para explicar a escolha do foco desta matéria. Minha proposta inicial era escutar os pais de pessoas com espectro autista, mas ao longo das entrevistas percebi o forte ativismo, especificamente, das mães. Vale ressaltar que a reportagem é sobre este aspecto e os possíveis tratamentos para o autismo. Não tendo como objetivo representar propriamente os autistas, visto que para isso é necessário escutá-los. Além da reivindicação de direitos, é importante o reconhecimento das pessoas com deficiência como capazes de se posicionar sem a interferência de terceiros.
Mãe atípica
O nascimento de um bebê com características atípicas é um choque para os pais, que têm seus anseios frustrados. Apesar das reações iniciais, as mães geralmente aceitam com maior facilidade e logo, começam a procurar por mais informações. Nem sempre os conteúdos estão disponíveis com facilidade, e isso a pesquisadora e ativista Patricia Salvatori descobriu com o diagnóstico de Prader-Willi estabelecido à sua filha Larissa.
“Eu nunca tinha ouvido falar e não existia praticamente nada em português. Eram conteúdos muito desatualizados. Essa síndrome causa várias características. É um espectro que inclusive tem traços do autismo. Mas também vi que nos EUA tinham muitos tratamentos. Uma série de estudos”, a partir da constante busca pela compreensão, Patricia desenvolveu uma página nas redes sociais online que além de compartilhar conhecimento útil, conta do seu convívio com a filha.
Larissa é uma adolescente que tem o coração do tamanho do mundo. Ela sempre quer ajudar as pessoas. Seja com doações de seus brinquedos ou roupas. Adora pintar desenhos e colorir a vida de quem está próximo com sua alegria e doçura. Ama os animais e aparece com frequência na página criada pela sua mãe e denominada de ‘Mundo Imperfeito’. Nome que contraria um padrão definido, este que faz a deficiência ser vista como algo errado. Essa imperfeição fala sobre a vida real.
“Ser mãe atípica é ao mesmo tempo que estamos numa sobrecarga gigantesca por lidar com todos esses problemas é entendermos, acima de tudo, que o problema não é a minha filha. O problema é a sociedade em que vivemos que não é preparada para receber as pessoas como elas são e o mundo como tem que ser, diverso. Não somos todos iguais. Cada um tem suas diferenças. E o mundo tem que estar aberto para todas essas pessoas. Ser mãe atípica é lutar por isso”, completa Patricia.