A luta de dois pais por um filho

Em 2023, foram realizadas 401 adoções por casais homoafetivos, representando 6,35% do total de adoções desde 2019.
por
Caio Batelli
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20/06/2025

Por Caio Batelli

 

Na região metropolitana de São Paulo, Artur e Gabriel viram sua vida mudar completamente após uma espera de três anos e dois meses enfrentando processos burocráticos de adoção, olhares tortos e comentários maldosos. O sonho de formar uma família finalmente ganhou forma quando Marlon, um menino de 6 anos. Por trás desse momento de alegria, havia uma história de resistência, dor, coragem e amor incondicional.

Artur nasceu em Botucatu, e Gabriel, na capital de São Paulo. Ambos se conheceram na faculdade, e desde o início, compartilhavam a vontade de adotar uma criança. Sabiam que o processo seria complicado, especialmente por serem um casal homoafetivo em um País onde o preconceito, apesar de muitas conquistas legais, ainda se faz presente em olhares, atitudes e palavras. Mesmo assim, decidiram seguir adiante, confiantes de que o amor que tinham um pelo outro e o desejo de cuidar de uma criança seriam maiores que qualquer obstáculo.

Após alguns anos de relacionamento estável, começaram o processo de habilitação para adoção. Reuniram documentos, participaram das entrevistas, fizeram os cursos exigidos pelo sistema de justiça e aguardaram. Durante esse período, enfrentaram situações marcantes. Ao visitarem um abrigo pela primeira vez, foram recebidos com estranhamento. Uma funcionária do local os observava com desdém, e chegou a dizer, num tom ríspido dizendo que só aceitavam casais tradicionais. Aquela frase cortou como uma faca. Gabriel, com os olhos marejados, apertou forte a mão de Artur e, juntos, saíram do lugar com o coração apertado, mas com mais vontade ainda de provar que tinham, sim, o direito de serem pais.

Também dentro das próprias famílias houve momentos dolorosos. Durante um almoço de domingo, uma tia de Gabriel, acreditando estar apenas cochichando, comentou que criança precisa de uma mãe, e não de dois pais. Comentários assim se repetiram, às vezes com mais sutileza, outras vezes com agressividade. O que os outros não percebiam era que cada frase, cada julgamento, servia apenas como combustível para fortalecer o compromisso que tinham com seu projeto de família.

Até que um dia, depois de mais de dois anos de espera, uma assistente social entrou em contato com uma notícia que mudaria tudo. Havia uma criança disponível para adoção: Marlon, um menino doce, mas retraído, que havia passado por diversas instituições e guardava nos olhos uma mistura de medo e esperança. Ao conhecê-lo, Artur e Gabriel souberam, no mesmo instante, que ele era o filho deles. Nos primeiros encontros, Marlon se mostrava fechado. Falava pouco, evitava contato visual e se retraía com qualquer tentativa de aproximação. Mas Artur e Gabriel sabiam que a confiança não nasce de um dia para o outro. Com paciência e afeto, foram conquistando o menino aos poucos. Passaram a brincar no parque, ler histórias antes de dormir, desenhar juntos. Marlon começou a sorrir. Um dia, com a naturalidade de quem sente segurança, passou a chamá-los de pai Gabi e pai Tu. Foi um dos momentos mais emocionantes da vida do casal. A guarda provisória foi o primeiro passo. Durante essa fase, Marlon ainda frequentava a escola próxima ao abrigo, mas passava os fins de semana e feriados com os pais. A conexão entre os três crescia de forma constante e verdadeira.

Embora o processo legal tenha caminhado sem maiores obstáculos, a sociedade, por outro lado, continuava a impor barreiras. Em uma tarde comum, na escola, uma professora questionou Marlon diante da turma sobre a ausência de uma mãe. A pergunta, feita em tom curioso, deixou o menino sem graça. Ele abaixou os olhos, em silêncio. Em casa, naquela noite, não quis brincar, nem comer. Foi quando Artur e Gabriel perceberam que, além de amar e educar, também precisariam preparar seu filho para enfrentar um mundo que, por vezes, pode ser cruel com o que não entende. A partir daquele dia, conversas delicadas passaram a fazer parte da rotina. Falavam com Marlon sobre os diferentes tipos de família, explicavam que o mais importante era o amor e o cuidado. Reforçavam que algumas pessoas ainda não compreendiam isso, mas que ele nunca estaria sozinho. Prometiam que os três sempre estariam juntos, protegendo uns aos outros. E repetiam, enquanto o colocavam na cama: ter dois pais é uma coisa linda.

Meses depois, veio a oficialização da adoção. No dia da audiência, o juiz os recebeu com um sorriso sincero e anunciou que, a partir daquele momento, Marlon era, legalmente, filho deles embora, no coração, ele já ocupasse esse lugar há muito tempo. O trio se abraçou com força. Foi um choro silencioso, carregado de alívio, felicidade e gratidão. Hoje, Marlon estuda em uma nova escola, onde é respeitado e acolhido. Em casa, tem um quarto colorido, decorado com os próprios desenhos, brinquedos espalhados pelo chão e uma rotina repleta de afeto. Os fins de semana são recheados de passeios no parque e sessões de cinema no sofá. Artur e Gabriel estão sempre por perto, atentos a cada pequeno progresso, celebrando cada conquista do filho.

Com o passar dos meses, a convivência diária fortaleceu ainda mais os laços entre Artur, Gabriel e Marlon, transformando aquela união em algo que transcendia qualquer documento ou biologia. As pequenas rotinas como preparar o café da manhã juntos, inventar brincadeiras no parque ou simplesmente dividir o sofá em tardes de filme criaram um senso profundo de pertencimento. Marlon, antes tímido e desconfiado, passou a demonstrar afeto espontâneo, buscava o colo dos pais ao acordar e fazia desenhos em que se retratava entre os dois, sempre com sorrisos largos. Em certo momento, ele chegou a dizer que sentia como se sempre tivesse sido filho deles, como se tivesse nascido do coração dos dois. Para Artur e Gabriel, essa declaração foi a confirmação de que o vínculo construído com paciência, cuidado e amor incondicional era tão verdadeiro e forte quanto qualquer laço de sangue.

O preconceito, infelizmente, não desapareceu. De vez em quando, ainda precisam lidar com olhares atravessados em consultas médicas, comentários sussurrados em aniversários ou perguntas invasivas de desconhecidos. Mas encontraram na convivência e no amor a força necessária para seguir. Aprenderam a transformar a dor em resistência, e a resistência em ação.

No Brasil, embora o Supremo Tribunal Federal reconheça desde 2010 o direito de casais homoafetivos à adoção, o preconceito segue como uma barreira invisível, porém resistente. A história de Artur, Gabriel e Marlon é apenas uma entre tantas que provam que o amor é maior do que qualquer estrutura tradicional. Ser família não exige moldes fixos, rótulos nem permissões. Ser família é estar presente, cuidar e amar todos os dias, sem exceções.

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