Letramento tardio emancipa autonomia intelectual

A importância da Educação para ressignificar oportunidades e a liberdade das palavras no Brasil.
por
Victoria Leal
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11/11/2024

Por Victoria Leal

Um emaranhado de letrinhas forma sílabas que são pronunciadas em tom de sussurro por seu Raimundo de Souza, de 58 anos. Seus olhos apertados deslizam devagar por cada linha do jornal. Ele recita as manchetes baixinho, sentindo o peso e o significado das palavras que antes eram como hieróglifos indecifráveis. Quem o vê hoje, sentado na mesinha de café com o jornal aberto nas mãos, talvez não imagine a jornada que o trouxe até aqui. Para seu Raimundo, a alfabetização chegou tarde, mas chegou. Foi um processo de paciência, medo e coragem em igual medida, que ao final, trouxe um sentimento de liberdade que ele nunca tinha conhecido tão intensamente.

No Brasil, a alfabetização tardia ou o letramento tardio é uma realidade para milhões de adultos. Homens e mulheres que, como Raimundo, não tiveram acesso à escola na infância – muitos por precisarem trabalhar desde cedo e outros por falta de oportunidade ou estrutura familiar. Décadas depois, essas mesmas pessoas enxergam na educação a chance de (re)construir a autonomia como algo fundamental.

O caminho para o letramento é longo, especialmente para aqueles que enfrentam uma rotina cansativa, muitas vezes em regiões onde o acesso à educação é limitado. O analfabetismo funcional afeta profundamente a vida cotidiana desses brasileiros. Um simples rótulo de remédio pode se tornar uma barreira perigosa, uma conta a pagar pode depender da ajuda de um vizinho. São limitações que se impõem silenciosas, mas pesadas, e é justamente ao romper essas amarras invisíveis que o letramento mostra seu poder de transformação.

A professora Keila Moura, que trabalha em um projeto de alfabetização para adultos no ABC, convive de perto essa transformação. Ela descreve o processo como uma “costura lenta de memórias e palavras”. Muitos de seus alunos, pessoas que carregam a história do trabalho braçal no campo ou nas fábricas, começam o processo de alfabetização com receio. A professora explica que eles chegam com o medo de não conseguir e de “falhar mais uma vez”, mas ao mesmo tempo, têm a curiosidade de criança que é difícil apagar.

Esse medo de falhar vem das inúmeras vezes em que foram subestimados, das situações em que precisaram “dar um jeitinho” para driblar a falta de leitura e escrita. Seu Raimundo, por exemplo, lembra-se de quando, anos atrás, teve que assinar um documento de compra de uma casinha. Ele não entendia o que estava escrito e assinou sem saber, com medo de demonstrar ignorância. Ele relata a sensação de impotência que sempre o acompanhava, mesmo sem entender exatamente o que era. Hoje, ele sabe ler e assina seu nome com confiança, e diz sentir que tem controle sobre o que é seu.

Os impactos do letramento tardio são profundos e vão além do mundo prático. Em muitos casos, as relações familiares e sociais também se transformam. Keila relata que alguns alunos, ao aprenderem a ler e escrever, começam a participar mais ativamente das conversas em família, sentindo-se finalmente parte do diálogo, como se eles redescobrissem sua própria voz, que antes ficava escondida, conta.

Estudos acadêmicos confirmam o impacto do letramento na vida dos adultos. Em um estudo realizado pela linguista e autora brasileira Leonor Scliar-Cabral, pesquisadores descobriram que adultos que foram alfabetizados tardiamente demonstraram uma melhora em suas habilidades cognitivas. A quantidade de palavras que conseguiam lembrar e categorizar dependia do nível de escolaridade. Isso indica que o letramento influencia até mesmo a forma como o cérebro organiza e processa informações.

Por outro lado, as dificuldades enfrentadas por adultos analfabetos na compreensão de certos conceitos abstratos, como o raciocínio de probabilidades ou as relações de palavras, revelam que o letramento vai muito além do acesso à escrita. Ele molda a maneira de raciocinar sobre o mundo. As pessoas letradas tendem a pensar de forma mais abstrata, enquanto as não-letradas, em geral, confiam nas experiências concretas. Nesse sentido, o letramento não é apenas uma habilidade técnica, ele é uma forma de “reeducação” da mente.

E é essa busca tardia pela educação que afinal leva um adulto buscar a alfabetização. Para muitos, é o desejo de autonomia, para outros, a vontade de se comunicar com os netos, de entender um documento ou ler a Bíblia. A leitura se torna uma ferramenta de emancipação, uma chave que abre portas para um segmento até então desconhecido ou inacessível.

No entanto, o processo de letramento não é apenas de conquistas. As dificuldades surgem a cada etapa, e o aprendizado de cada palavra é uma vitória pessoal. Maurício, aluno do supletivo EJA “Capacitar Profissional” fala disso cheio de orgulho, ele relata que cada letra que aprendeu foi um pedaço de vida que ficou mais claro, pois não é só ler, é saber que ele pode e que é capaz de entender o mundo de outra maneira.

A jornada de letramento tardio no Brasil é também a jornada do País em busca de um futuro com mais igualdade e justiça. Em cada sala de aula, em cada comunidade, em cada projeto voluntário, há adultos buscando o direito básico de entender e participar. E esse é um movimento que, embora lento, segue firme. Dessa forma, entre palavras redescobertas e histórias compreendidas pela primeira vez, o letramento, embora tardio, se estabelece como uma ferramenta de liberdade e de emancipação intelectual, pois essas pessoas encontram na própria história, a letrinha que faltava para a sua autonomia.

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