A LEI DA ÁGUA DA CAS

Uma análise curta e vulgar sobre os traços do brasileiro através de uma lei municipal
por
João Pedro Rossetti Tognonato
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21/06/2023

 

Sempre escutei de meu pai que a implementação do “Refil” nos restaurantes não funcionaria no Brasil. “Somos um país de malandros!”, exclamava ele, “imagine só poder tomar de graça qualquer bebida. Todos levariam galões para estocar refrigerante e o comércio local ficaria arruinado.

Foi por esse motivo que desconfiei quando tomei conhecimento da tal lei da água da casa. Em resumo, o projeto dispunha sobre o fornecimento gratuito de água aos clientes de estabelecimentos comerciais, como bares e restaurantes. O Cliente precisaria apenas chegar ao garçom e pedir: “Por favor, o Sr. poderia me trazer uma água da casa?”

A ideia era genial, pois levando em conta a relação dos brasileiros com as leis, seria difícil imaginar que essa entrega gratuita de água causasse prejuízo real aos comerciantes. Já temos dificuldade em acompanhar as mudanças legislativas realmente relevantes, como as previdenciárias e trabalhistas, imagine só então saber que agora estavam dando água de graça nos restaurantes? Isso sem contar que o lobby das associações de bares fazia de tudo para manter oculta essa novidade.

Acontece que, mesmo com a lei desconhecida da maior parte das pessoas, este mesmo lobby – agora presidido pela CNTur – fez questão de entrar com uma ação para eliminar de vez a lei da água da casa. E mesmo sem notar uma crescente de pedidos ou uma queda nos lucros, eles enviaram ao TJ-SP uma proposta para verificar sua legitimidade diante da constituição federal.

O argumento era simples. Não havia constitucionalidade na lei, pois ela gerava custos ao estabelecimento. E a decisão foi acatada pelos desembargadores, ainda que houvesse recurso do município. Na espera desse recurso, ela deixou de valer, até que fosse julgada pela corte suprema.

Foi nesse contexto que tive a oportunidade de verificar in loco a procedência da “Lei da Água da Casa”.

 

Fui no bar “Caixote”, na Rua Augusta, número 914, quando resolvi pedir, junto de um drink (um terrível mojito aguado), a tal da água da casa.  O garçom me olhou com desconfiança; mas não apresentou objeções explícitas: virou-se e andou pelo balcão, dirigindo-se à uma portinhola no fundo do bar. Ficou lá por alguns minutos – momento em que considerei o risco do meu pedido, e evocando a velha mitologia dos atendentes de restaurante, construí a seguinte narrativa: (1) O homem recebe o inusitado pedido de um cliente: “O Senhor teria a Água da Casa?’ (2) Ofendido pela insensibilidade do cliente, que desconhece a atual crise dos bares, resolve descontar-lhe o ódio. (3) O garçom/gerente entra pela portinhola, indo em direção ao depósito, mas, na verdade, entra no banheiro. (4) O garçom/gerente sorve o pequeno recipiente de vidro com a água do vaso sanitário. (5) o Garçom volta ao balcão e entrega o copo ao cliente que, por conta da meia luz do local, é incapaz de checar o aspecto turvo da água. (6)  O garçom ouve um “obrigado” e responde: “não tem de que.”. (7) O cliente bebe a água. 

 

É claro que este medo se originava do meu desconhecimento geral sobre a legislação. No projeto, que consta bem descrito no site da prefeitura de São Paulo, há explicações claras sobre como a água deveria ser disponibilizada aos clientes. No artigo 1 lemos: “considera-se Água da Casa a água de composição normal, proveniente de fontes naturais ou artificialmente captadas, que tenha passado por dispositivo filtrante no estabelecimento onde é servida e que se enquadre nos parâmetros federais de potabilidade para o consumo humano.” Ou seja, estavam excluídas as águas da pia e, obviamente, a do vaso sanitário. 

 

Como resultado desse experimento, pude tirar algumas conclusões – talvez um tanto dramáticas. Numa análise inicial, pude notar que relação dos brasileiros com as leis é pautada na desconfiança. De um lado, os estabelecimentos desconfiam dos clientes ao lhes oferecerem cortesias, pois acreditam que estes irão se aproveitar delas, como no caso dos refis. E do outro os próprios brasileiros desconfiam de cortesias, supondo má vontade dos estabelecimentos em concedê-las. Junta-se isso àquele espírito “troceiro” de nosso povo para se chegar à um caldo tácito, um jogo de dribles, uma guerra fria entre os soviéticos clientes e os donos de bares imperialista, onde as ações ocorrem como num final empatada de um jogo de xadrez. Como resultado, fica o questionamento sobre a aquela interpretação vulgar de uma das frases mais clássicas sobre o nosso povo, aquela que afirma ser o brasileiro um povo cordial.

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