As Legislações Trabalhistas Brasileira e Chinesa e o Trabalho Escravo

Contexto histórico, as diferenças e semelhanças dos direitos dos trabalhadores e o que esperar do futuro.
por
Virginia Mencarini
|
04/05/2020

Segundo a Organização das Nações Unidas, hoje, existem 40,3 milhões de pessoas em situação de escravidão no mundo. No Brasil, existem quase 370 mil pessoas nessa mesma situação, e só na China são 3,86 milhões de pessoas escravizadas.  É possível identificar essa prática a partir de 4 situações: jornada exaustiva, trabalho forçado, condições degradantes e restrição de locomoção (em que na maioria das vezes, significa servidão por dívida). Nesse texto serão comparadas mais especificamente as legislações trabalhistas destes dois últimos países e suas relações com o trabalho escravo nos dias de hoje, mas antes, um breve histórico da escravidão, seu início e desdobramentos.

            Pode-se dizer que os primeiros homens a serem submetidos ao trabalho escravo foram os chamados prisioneiros de guerra, homens capturados de povos que guerreavam entre si devido aos seus diferentes interesses. Avançando um pouco na história, com relação as civilizações antigas, a escravidão se mostrava fundamental para a economia e para a sociedade dessas populações, e nas civilizações pré-colombianas, essa prática se fazia muito presente tanto na agricultura, quanto nos exércitos.

            Destacando o Brasil, a escravidão atracou em terras tupiniquins ao passo que os colonos portugueses impuseram aos índios, e mais à frente também aos negros africanos, os afazeres das plantações e das minas. Com as grandes navegações e a colonização dos europeus em outros continentes, o comércio de escravos foi se expandindo, se tornando cada vez mais comum e se fazendo presente em todos os lugares do mundo.

            Porém, a partir do momento em que o liberalismo e a ciência econômica na Europa foram surgindo, a escravidão passou a ser considerada pouco produtiva e moralmente incorreta, e então, essa prática começou a perder força com as abolições. No Brasil, a abolição da escravatura se oficializou com a Lei Áurea em maio de 1888, se tornando o último país do ocidente a abolir a escravidão. Como se sabe, essas abolições não foram o suficiente para dar um fim de uma vez por todas no trabalho escravo. Os chamados Trabalhos Análogos ao Escravo ainda fazem parte da realidade de muitas pessoas no cenário mundial atual.

            Para analisar então essa realidade do trabalho escravo nos dias de hoje e as legislações trabalhistas brasileiras e chinesas, o Brasil será o ponto de partida para essa discussão. Quando se trata de legislação trabalhista, as CLTs são a primeira coisa que vem à cabeça. A Consolidação das Leis do Trabalho foi sancionada no dia 1 de maio de 1943 pelo então presidente Getúlio Vargas, e a partir do Decreto-Lei nº5.452, o principal objetivo é a regulamentação de todas as relações coletivas e individuais do trabalho. No Brasil então, o trabalhador com carteira assinada possui seus direitos assegurados por meio das CLTs e por meio da Constituição Federal, e são eles os principais: carteira de trabalho, 13º salário, férias remuneradas, FGTS, seguro-desemprego, vale-transporte, abono salarial, alimentação e assistência médica, licença maternidade, aviso prévio, adicional noturno, faltas justificadas, e jornada de trabalho e hora extra. Segundo este último, o trabalhador possui uma jornada de trabalho de até 8 horas por dia/44 horas semanais.

Em 2017, houve uma proposta de Reforma Trabalhista no governo de Michel Temer com o objetivo de melhorar o desemprego e a crise econômica no Brasil. Instrumentalizada pela lei Nº13.467, mais de 100 pontos da CLT foram alterados, mas os principais direitos dos trabalhadores permaneceram assegurados. Há ainda mais mudanças previstas para o ano de 2020 na legislação trabalhista brasileira, por meio de duas Medidas Provisórias (MP’s) sancionadas no fim de 2019: a que cria o Projeto Verde e Amarelo, e a da Liberdade Econômica, nº 905. As MPs instituiriam o novo Contrato Verde e Amarelo (criação de novos empregos para os jovens no Brasil), o desconto da contribuição previdenciário no seguro desemprego, não mais considerar como acidente do trabalho quando este ocorre durante o percurso do trabalhador ao local de serviço e vice-versa, a abertura dos bancos aos sábados e a emissão da carteira de trabalho eletrônica.

Mãos de resgatado após denúncias de situações análogas à escravidão em áreas rurais de Roraima Foto: Guito Moreto / Agência O Globo
Mãos de resgatado após denúncias de situações análogas à escravidão em áreas rurais de Roraima Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

​​​​

O trabalhador chinês também possui uma jornada de trabalho de 44 horas semanais assim como no Brasil, porém o grande problema é a sua flexibilização permitida por lei e a fiscalização precária. Os direitos desses trabalhadores na China também são garantidos pela legislação trabalhista, e entre eles estão o direito à greve, a associação em sindicato e uma possível negociação de salários e benefícios de forma coletiva com outros trabalhadores. Há ainda os direitos da estabilidade no emprego, proteção do trabalhador com estado de saúde frágil ou na velhice (este por meio da Previdência Social), pagamento de hora extra, a participação do sindicato em decisões como demissões, e a previsão de pagamentos de indenizações, esta para casos de desligamento do funcionário sem justa causa. Essas indenizações são essenciais para o trabalhador chinês, já que diferentemente do Brasil, não existe o pagamento do seguro desemprego. Então, ao ser demitido sem justa causa, o trabalhador recebe como aviso prévio o valor de um mês de seu salário, e ainda um valor equivalente à um salário para cada ano trabalhado na empresa, desde que esse valor seja de até 12 salários.

            Mesmo com os avanços dos direitos consolidados desses trabalhadores, o grande agravante da situação do trabalhador chinês é a falta de fiscalização por parte das autoridades, como já citado. A maioria das empresas chinesas não cumpre à risca todas as normas previstas, já que a legislação é flexível e permite que essas companhias possam seguir outras regras, resultando em jornadas de trabalho exaustivas mal remuneradas, em comparação a outros lugares do mundo, ou seja, trabalho análogo ao escravo.

Rosana Pinheiro-Machado, antropóloga, professora de Desenvolvimento Internacional da University of Bath (Reino Unido) e jornalista do The Intercept Brasil, conta sua experiência em sua primeira pesquisa de campo na China, em 2006, em sua reportagem publicada pelo jornal (https://theintercept.com/2019/04/29/licao-dos-chineses-protestos-china/). Nela, diz que a primeira vez que entrou em uma fábrica chinesa, se deparou com todos os clichês e estereótipos de precariedade reproduzidos e noticiados pelo mundo todo: “crianças trabalhando em regime intensivo, instalações imundas, pessoas exauridas na linha de montagem de bugigangas baratas para ganhar um salário que equivalia a US$ 100 dólares mensais”. Conta também que, junto aos trabalhadores, comeu alimentos estragados, dormiu em camas sem colchão e que dividia dormitórios com baratas (uma delas era apelidada de forma carinhosa de Meimei – que significa irmã mais nova), exemplificando na prática o descaso e falta de fiscalização chinesa.

Dormitório e refeitório de uma fábrica de brinquedos em Guangdong. Fotos: Arquivo pessoal/Rosana Pinheiro-Machado
Dormitório e refeitório de uma fábrica de brinquedos em Guangdong. Fotos: Arquivo pessoal/Rosana Pinheiro-Machado

Desde 1940, o Código Penal brasileiro criminaliza a ação de submeter qualquer pessoa à condição análoga à de escravo, e em 2003, uma alteração legislativa do Artigo 149 do Código Penal formulou a sua atual redação, explicitando claramente como definir o trabalho análogo ao escravo no Brasil. Além desse artigo, há também as PECs em relação ao trabalho escravo (Proposta de Emenda Constitucional), que reforçam ainda mais a fiscalização desse crime. A PEC do trabalho escravo alterou o artigo 243 da Constituição Federal para que terras em que forem localizadas a exploração do trabalho escravo (ou culturas ilegais de plantas psicotrópicas) “serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário”. Esta é a PEC mais antiga em relação ao trabalho escravo, pois foi tramitada e aprovada em 1999 no senado (de imediato), aprovada na câmara em 1º turno em 2004, porém só teve seu 2º turno em 2012. Em 2014 foi aprovada pelo Plenário, mas ainda precisa ser regulamentada para ser validada na prática.

            Há ainda mais uma Proposta de Emenda Constitucional relacionada ao trabalho escravo. Mais recente, a PEC 14/2017, criada pelo senador licenciado Antonio Carlos Valadares (PSB-SE), prevê que a submissão de pessoa a condição análoga à escravidão constitui crime imprescritível, sujeito a reclusão. Hoje, quem comete o crime de trabalho escravo está sujeito a cumprir de 2 a 8 anos de reclusão, porém o crime prescreve após 12 anos, o que significa que se após 12 anos o processo não for concluído, o infrator não pode mais ser responsabilizado. Para Valadares, “a prescrição não pode ser obstáculo para a investigação e responsabilização do crime gravíssimo de imposição de um ser ao trabalho análogo ao de escravo”, se referindo a demora do julgamento dos processos brasileiros à Agência Senado.

            O jornalista Leonardo Sakamoto atua no combate ao trabalho escravo há mais de 20 anos, e em entrevista ao Brasil de Fato reconhece a fiscalização eficiente do governo brasileiro em relação aos casos de trabalho escravo. “O Brasil tem um sistema de fiscalização que, apesar de estar perdendo e reduzindo o número de profissionais e ter problemas de recursos, ainda tem um sistema forte de fiscalização [...] (o país) tem mais de 2 mil fiscais do trabalho atuando nacionalmente e isso é um diferencial que não existe em muitos países.” E quando questionado sobre o Brasil ser um potencial modelo na luta contra o trabalho escravo, cita a ação “lista suja”, sem deixar de reconhecer as limitações do país: “Claro que alguns elementos têm sido estudados e replicados, como a lista suja do trabalho escravo, que é o cadastro de empregadores que cometeram esses crimes, criado em 2003. É um instrumento importantíssimo para garantir transparência, para que o setor produtivo brasileiro enxergue o que está acontecendo e possa tomar providências. Mas é claro que tem limitações.”

            A divulgação de informações e ações contra a escravidão são fatores decisivos nesse processo de criminalização do trabalho escravo. Diferente do Brasil e os nomes da lista suja, citada por Sakamoto, o governo Chinês ainda limita a divulgação de dados e informações sobre esse crime, o que acaba dificultando ainda mais a identificação de empregadores que submeteram trabalhadores em situações análogas a escravidão, e suas condenações.

            Mesmo com tantos motivos para acreditar numa possível extinção do trabalho escravo, ainda há muito pelo o que lutar. Dados recentes da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) informam que, entre os anos de 2003 a 2018, 45 mil trabalhadores foram resgatados e libertados de situação análoga ao trabalho escravo no Brasil. Na China, há quem defenda (o bilionário chinês Jack Ma, por exemplo) o chamado “Sistema 966”, que consiste em uma jornada exaustiva na qual o trabalhador inicia seu serviço as 9 da manhã e o finaliza as 9 da noite, trabalhando 6 dias por semana.

            Após essas análises, a conclusão é clara: ambos os países ainda têm muito o que fazer para melhorarem seus índices de trabalho escravo e a qualidade de vida de seus trabalhadores. Ao pensarmos em escravidão moderna, é comum relacionarmos o fato diretamente aos países da Ásia, e não olharmos para o que está bem mais próximo a nós. A boa fiscalização, os direitos dos trabalhadores, as PECs no Brasil são todos fatores significantes e muito reconhecidos positivamente, mas o país ainda tem inúmeros casos assim como a China. O país asiático também possui seus méritos – o salário mínimo na China é maior do que no Brasil (salário mínimo chinês = 1780 reais em Xangai, pois varia de acordo com a província; salário mínimo brasileiro = 1045 reais), mas quanto valem as vidas sujeitas a ambientes precários e a exaustão por um salário um pouco maior?

Ainda há muito o que ser feito, e felizmente o mercado internacional está cada vez mais ciente disso. As ideias de que “tempo é dinheiro” e de que o lucro é o único objetivo, estão lentamente ficando ultrapassadas. A OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), por exemplo, estabelece que as empresas devem garantir que não há violações dos direitos humanos em suas cadeias de produção, e a legislação dos Estados Unidos proíbe a importação de qualquer produto desenvolvido por meio de escravidão moderna. É necessário continuar lutando por mais leis de fiscalização e lutar pela divulgação de todas as situações de escravidão moderna, independentemente do local, e jamais ter a falsa ideia reconfortante de que um empregador, uma companhia, uma cidade ou um país, já fizeram o suficiente.

 

Foto de capa: http://www.sindmetalsjc.org.br/n/4780/denuncias-de-trabalho-escravo-aumentam-no-interior-paulista

Tags:

Política Internacional

path
politica-internacional