Por Felipe Pjevac
Era uma manhã gelada de domingo e o alarme do celular de Guilherme tocou exatamente às nove horas. Nos finais de semana, o jovem de 14 anos estava acostumado a dormir até meio-dia, mas aquela não era uma data comum. Juventus e Oeste iriam se enfrentar no estádio Conde Rodolfo Crespi, na zona leste de São Paulo, em partida válida pela sexta rodada da Copa Paulista de 2024. O que aparentava ser apenas mais um jogo qualquer entre duas equipes de baixo escalão do futebol paulista trazia um significado especial para o garoto.
Naquele dia, Guilherme iria conhecer um dos locais mais carismáticos da capital paulista e, para os amantes de futebol, um verdadeiro templo do esporte bretão. O Estádio da Javari, apelidado dessa maneira de forma carinhosa em referência à rua em que está localizado, é a casa do Clube Atlético Juventus, mas também é muito mais do que isso. Desde a sua inauguração, em 1929, o campo é um dos principais símbolos da Mooca, bairro de origem italiana e de grande tradição na cidade. Um verdadeiro palco para a reunião de cidadãos ‘mooquenses’, como gostam de ser chamados os moradores da região.
Enquanto levantava da cama, Guilherme começou a imaginar como seria sua experiência nas horas seguintes. Claro que ele já havia frequentado outros estádios, como o Allianz Parque, por ser um torcedor fanático pelo Palmeiras. Apesar disso, ele sempre ouvia seu pai, Mauro, dizer que a Javari era um lugar que superava a simples vivência de um jogo de futebol. Para um menino nascido e criado na Mooca, o hábito de frequentar aquela ‘cancha’ era mais que uma obrigação; era algo natural à rotina.
No ano de 1924, o Juventus foi fundado por funcionários de duas fábricas do ramo têxtil que funcionavam na Mooca, como uma forma de lazer. Pouco a pouco, a equipe foi se profissionalizando, conquistou a sua ‘casa’ ao adquirir o terreno do estádio, cedido pelo ilustre Conde Rodolfo Crespi, e começou a disputar competições contra os grandes clubes da cidade, mas sem nunca deixar de lado as suas raízes operárias e italianas. Durante as seguintes décadas, o Juve se estabeleceu como uma das forças do futebol paulista, com gerações importantes, como a que conquistou o Paulistão em 1935.
Enquanto se vestia, Guilherme segurou a camiseta grená em suas mãos e a encarou com felicidade. Seu tio Paulo, que em 1976 fundou a TUJU, a primeira torcida organizada do Juventus, havia recebido o item diretamente das mãos de Vampeta, jogador pentacampeão mundial com a Seleção Brasileira, após seu último jogo da carreira, em 2008. Ao terminar uma virada histórica contra o Coruripe, equipe de Alagoas, o atleta emocionado correu em direção à torcida e arremessou a camisa. Guilherme se lembra que seu tio o presenteou com uma única condição: não importa o quanto a peça de roupa pudesse valer futuramente, ele deveria guardá-la na família para sempre.
Chegando no estádio, o jovem se impressionou com o tamanho da fila para comprar os ingressos. Ele reclama da impossibilidade de adquirir os bilhetes de forma online, e seu pai responde, com um leve sorriso no rosto, que comprar ingresso na porta era uma das tradições do futebol antigo que ainda mantinham o Juventus como o clube mais raiz do mundo. Chegando no fim da fila, Guilherme encontra Matheus, um companheiro de classe da escola. Em dias de jogo na Javari, é comum encontrar amigos e até mesmo familiares.
Às dez horas da manhã em ponto Guilherme entrou no estádio com seu pai e seu irmão mais velho, Gustavo, e na hora sentiu algo diferente. Subindo os poucos andares de escadas na arquibancada, ele passava pela massa de torcedores vestidos de grená, e percebeu que se sentia mais em casa do que nunca. A torcida palmeirense sempre fazia uma grande festa no estádio alviverde, assim como outros campos que ele já havia visitado ao redor de São Paulo, mas aquele local tinha uma energia diferente. Seu irmão, que não ia à Javari desde fevereiro de 2020, antes do início da pandemia, ficou emocionado, e cochichou em seu ouvido que, além de qualquer sensação de amizade que uma torcida de futebol pudesse passar, ali eles estavam em família.
Com o decorrer do primeiro tempo, o garoto participava da festa e ouvia atentamente às músicas cantadas pela Setor 2, uma das torcidas organizadas do Juventus, que leva instrumentos, faixas e bandeiras para trás do gol leste do estádio para apoiar a equipe. Ele percebeu que muitas das letras faziam referência à Mooca; o bairro sempre manteve uma relação firme com o clube, dentro e fora de campo. Por meio de ações, eventos beneficentes e o uso do espaço para shows e apresentações, o Juventus é um dos principais agentes culturais e sociais da região. Em contrapartida, os mooquenses sempre ajudaram com recursos, trabalhos e apoio para o funcionamento do clube.
Guilherme percebeu isso logo no início do jogo. Surpreso com o enorme número de torcedores que lotaram as arquibancadas e com a paixão entoada nas músicas de apoio aos jogadores, relatou ao pai que nunca havia visto um time que jogasse uma divisão inferior de algum campeonato e que não tivesse grandes jogadores ou mesmo boas condições financeiras contar com o alento tão grande de sua torcida. Mauro respondeu que essa história vinha desde sempre, e que sem os apaixonados, o clube provavelmente já teria acabado.
No intervalo, a família foi para o corredor principal para comer os famosos cannoli da Javari. A receita tradicional italiana, servida no estádio desde 1985, é uma das principais atrações para quem visita o local, e a fila se estendia por centenas de metros, terminando apenas na entrada da loja do clube. Guilherme, que não tem o costume de experimentar novas comidas, rendeu-se ao charme de Antônio, rosto conhecido nos cantos da Mooca pelas habilidades culinárias, e acabou provando um pedaço.
Antes de voltar para o jogo, Mauro convenceu Guilherme a tirar uma foto com a lendária estátua de Pelé, no portão do estádio. Confuso, o jovem perguntou se o craque já havia jogado pelo Juventus, e seu pai explicou que apesar de ter atuado apenas com a camisa do Santos no Brasil, o gol mais bonito de sua carreira foi marcado na Javari, conforme o próprio reafirmou em seu documentário “Pelé Eterno”.
De volta à partida, o mais novo juventino se impressionou com a proximidade do gramado com os torcedores. Ao se pendurar na grade, ele conseguia ouvir o barulho das chuteiras tocando na bola. Foi em sua frente que ele viu, com um belo chute de fora da área, o primeiro gol da partida, mas não houve comemorações. Era o Oeste quem havia aberto o placar, mas os gritos de incentivo só aumentaram. Um placar negativo não era nada para a torcida juventina. A história de luta e resistência dos operários que compunham a ‘hinchada’ original do clube demonstra que nenhum obstáculo é suficiente para derrubar o Clube Atlético Juventus. E foi nesse embalo que, emocionado, Guilherme comemorou em meio à banda da Setor 2 o gol de empate do Moleque Travesso já nos minutos finais do jogo.
Após o apito final, o garoto já foi direto para a loja comprar uma nova camisa oficial, e a vestiu com orgulho enquanto entrava na Esfiharia Juventus para o tradicional almoço pós-jogo. Como qualquer mooquense, Guilherme agora era um apaixonado pelo Juventus, e no ano do centenário da fundação juventina, entendeu a importância do clube para a Mooca e para a conservação das tradições do futebol raiz de um moleque travesso.