Por Tiago Herani (texto) e Nicole Conchon (audiovisual)
Numa tarde de domingo, em uma casa no bairro de Perdizes, em São Paulo, o Enrique, de seis anos, assistia a um jogo do Palmeiras, o seu time do coração, e não tirava os olhos de um jogador específico: o goleiro. Não o levem a mal, os outros jogadores até eram legais, eles corriam, chutavam a bola…mas o goleiro podia fazer algo muito mais interessante: se jogar no chão e rolar para um lado e para o outro. Parecia muito mais divertido. Para o desespero da Dona Maria e Seu Enrique, seus avós, era isso que o pequeno Enrique mais irá fazer nos próximos anos.
Como a maioria das crianças brasileiras, seu maior sonho sempre foi se tornar um jogador de futebol profissional. É o esporte que dá sentido a sua vida, que faz brilhar seus olhos. Desde que se entendeu por gente, jogar futebol está na sua vida e é o que ele mais quer fazer todos os dias, seja na escola, na rua, na praça ou até em casa, ocasionando a quebra de alguns porta-retratos e decorações em prol de grandes defesas imaginárias.
Jacqueline, sua mãe, passava a maior parte do tempo trabalhando, então Enrique convivia muito mais com seus avós, que tinham uma regra bem simples: “lição primeiro, bola depois”. Vendo o interesse genuíno do neto, que fazia as tarefas correndo e ficava até tarde jogando na praça, começaram a levá-lo para escolinhas já com sete anos de idade. Aos dez, sua avó descobriu um projeto de “clube escola” no Pacaembu, um local custeado pelo governo de São Paulo, onde ele teria aulas em uma escola pela manhã e dois treinos no clube por semana, jogando futsal.
Seu talento debaixo das traves sempre impressionou a todos, que repetiam que ele deveria fazer teste em categorias de base de clubes de verdade. Os avós tinham certa desconfiança com o tema, por temer encontrar empresários interesseiros no caminho. Mas, quando ele fez treze anos deixaram o preconceito de lado para realizar o sonho do neto, conseguindo um teste na Ponte Preta, em Campinas - cidade onde eles já haviam morado por alguns anos. Ele passou e, desde então, embarcou em uma rotina incrivelmente puxada para sua idade, tudo começou a ficar mais sério e profissional. Só jovens de quinze anos podiam morar no alojamento, então, Enrique se restringia a desgastantes viagens de ônibus de quatro horas com seu avô, contando ida e volta, três vezes por semana, para poder treinar.
Em dia de treino, não conseguia conciliar com as aulas. Assim, se iniciava um dos maiores dilemas da sua vida: a relação de estudo e sonho profissional. No Brasil, quem quer ser jogador de futebol acaba sempre precisando escolher entre um ou outro, em certo momento da vida. A comissão técnica, por exemplo, falava para ele que iria ter treino tal horário, jogo tal dia e que quem quisesse se destacar teria que estar lá. Não existe um alinhamento individual com a escola, são muitas renúncias a serem feitas em uma idade tão jovem. Sua família entendia que aquele era seu sonho e deixou as decisões em suas mãos. Após um ano, Enrique optou por abrir mão dessa oportunidade para voltar a se dedicar mais à escola. Aguardava uma oportunidade em São Paulo, mais perto de casa.
Nessa vida de aspirante a jogador de futebol, cada ano pesa muito, o caminho vai se afunilando, as portas vão se fechando. Hoje, jogadores de dezesseis e dezessete anos já fazem sua estreia na categoria profissional, o estudo fica de escanteio. Enrique entendeu que o futebol não poderia esperar, então passou a fazer testes em todos os cantos da cidade. O problema era que, com quinze anos, todos os seus amigos já tinham passado pelo “estirão” da puberdade e ganhado vários centímetros de altura, mas ele não. Logo ele, que era goleiro e tinha uma certa exigência de estatura para jogar. Algo que ele não poderia controlar, a fisiologia do seu próprio corpo, era o motivo das recusas que recebeu em cada teste, um após o outro, causando diversas frustrações.
Chegou a passar uma temporada jogando no sub-15 do Santo André e perdendo várias aulas para poder acompanhar o ritmo dos treinos, o que gerou uma reprovação no primeiro ano do ensino médio. Como sentia que o Brasil virou as costas para ele, Enrique não pensou duas vezes quando enxergou a oportunidade de jogar futebol nos Estados Unidos, através de um intercâmbio esportivo, no qual os jovens ganham bolsas de estudo para praticarem esportes em ligas locais, representando a escola. Era unir o útil ao agradável: como estudante-atleta ele teria uma conciliação total de horários de treinos e jogos com as aulas, inclusive tendo que atender um certo nível de notas para continuar jogando. Além disso, valorizavam mais a sua qualidade técnica do que a sua estatura.
Agora seu sonho não o levava mais para cidades do interior, e sim para outro hemisfério, há dez mil quilômetros de casa. Saiu do “País do futebol” para um outro local onde a estrutura esportiva era melhor, o esporte era mais valorizado academicamente e tudo era mais profissional - ele ria dessa ironia. A saudade da família era enorme e a maturidade para se virar teve que chegar mais rápida, solto no mundo aos dezessete anos. A partir daquele momento era ele por ele, para tudo na vida. Dividia uma casa com vários intercambistas brasileiros, alguns atrás do mesmo sonho, outros usando o esporte exclusivamente para ajudar nos estudos, já é mais fácil ingressar em grandes faculdades pelos jogos do que pela nota. O ambiente ajudava a mantê-lo focado.
Foram dois anos completando o ensino médio na Califórnia e outros dois em uma faculdade no Missouri, voltando ao Brasil apenas uma vez por ano, por algumas semanas, para matar a saudade de tudo. Esse período de dedicação mútua aos treinos e estudos (trabalhando ainda nas horas vagas para ajudar na renda), o fez perceber que, mesmo que o seu sonho não fosse realizado no futuro, ele ainda teria um currículo em uma faculdade americana que poderia abrir muitas portas profissionais, algo que seria impossível de conquistar se ainda estivesse no Brasil. Até por isso, mudou do seu curso de business para o de gestão esportiva, para continuar envolvido com futebol de alguma forma.
Mas no meio disso tudo, mais uma pedra apareceu em seu caminho: um problema com a documentação necessária para se manter nos Estados Unidos o obrigou a trancar a faculdade e voltar para o Brasil, no final de 2022. A expectativa era que tudo se resolvesse até janeiro deste ano, mas o processo demorou demais no consulado e adiou esse retorno para agosto. Seis meses parado, um balde de água fria no seu desenvolvimento.
Buscando se manter em forma, Enrique até passou a utilizar o aplicativo chamado “Goleiro de Aluguel”, na qual ele é pago por hora para jogar em peladas e times de várzea que precisam de goleiros. Mas, certo dia, ele se lembrou de um empresário que seus amigos intercambistas haviam comentado, que levava jovens de até vinte e quatro anos de idade, para fazer teste em clubes espanhóis. Ainda com vinte e um anos, parecia a oportunidade perfeita. Ele entrou em contato, mandou vídeos de seus melhores momentos na liga universitária americana, que chamaram bastante atenção e o qualificaram para a vaga. Ele viajaria para a Espanha para duas semanas de teste em um clube chamado Leganés, da segunda divisão. Havia três saídas: ele era reprovado e voltava para o Brasil; ele era aprovado para um período maior de testes ou, ainda, assinaria de cara um contrato profissional com o clube - alternativa essa que deixou o pequeno Enrique interior se jogando e rolando no chão de empolgação.
De malas prontas, ele partiu para mais uma aventura. Ter a chance de jogar em um clube espanhol, mesmo que fora da elite, brilhava seus olhos e mantinha a chama interna acesa para continuar acreditando no sonho que resumiu a sua vida. Foram duas semanas que passaram voando, ele sentiu que ia bem nos treinos e amistosos e poderia ter uma chance. Sua passagem de volta para casa era para a manhã de sábado, mas na noite de sexta ele recebeu uma ligação do seu empresário dizendo que a comissão técnica do clube gostou muito do seu futebol e queria que ele ficasse até o final da temporada, o que levaria mais três meses - o tempo exato que ele poderia ficar na Europa sem visto. Ligou para sua mãe desesperado para cancelar a passagem e avisar que iria demorar mais um pouquinho para voltar para casa…a chama estava mais acesa do que nunca.
Foram os três meses mais intensos da sua vida. Dentro de campo, vivia o prazer de treinar com ótimas estruturas, companheiros e adversários de alto nível - estava sentindo no sub-23 o gostinho do que seria um time profissional. Mas, fora de campo, era um perrengue sem fim. Por estar em um período de testes, o clube não arcava com salários, tendo a moradia, alimentação e transporte por conta do jogador. A falta de visto também impossibilitava-o de conseguir um emprego. Foram três meses gastando o mínimo para sobreviver com o dinheiro enviado pela sua família e alguns bicos, se mudando de Airbnb a cada duas semanas com um grupo de jogadores que estavam na mesma situação. Mais um sacrifício feito em prol do seu sonho, como tem regado a sua vida até aqui.
No final da temporada, o técnico tranquilizou-o dizendo para ir resolver a sua documentação no Brasil porque o esperava de volta em setembro, para continuar o período de testes. Ele irá atrás de uma cidadania europeia, já que seu bisavô era polonês, mas o processo vai demorar cerca de seis meses, mais do que o técnico esperava. O déjà vu bate forte, mas ele entende que, dessa vez, significa dar um passo atrás, para dar dois à frente, pois com a cidadania, poderia arrumar um emprego por lá e se manter de uma forma muito mais saudável. Ele viu e sentiu nesses três meses que é possível sim conseguir o seu tão sonhado contrato profissional. Não é sobre ser o melhor do mundo, não é sobre jogar nos maiores clubes, o que ele quer mesmo é poder dizer que trabalha e vive pelo futebol, dando orgulho aos seus avós e a sua mãe e vendo tudo que ele precisou abrir mão para chegar perto disso. Do clube escola, às categorias de base, ao intercâmbio e agora à segunda divisão espanhola…essa é encarada por ele como a sua última chance. A faculdade ele sempre pode terminar depois, mas como já bem sabe, ele pode esperar mas o futebol não.