Inteligência Artificial deve ser ferramenta, mas não tomar decisões judiciais, alertam advogados

Sistema tributário brasileiro faz uso da inteligência artificial e advogados advertem sobre precauções e cuidados a respeito da ferramenta
por
Patrícia Mamede e Tiago Herani
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14/08/2023

O Brasil é o país que mais usa a Inteligência Artificial dentre as nações latino-americanas. Mas, apesar dos benefícios que a ela fornece, há questões que podem acarretar prejuízos sociais graves e já tem gerado discussões no Poder Judiciário.

O problema maior é seu viés algorítmico, ou seja, sua capacidade de replicar ou amplificar preconceitos e discriminações sociais enfatizadas por quem ficou responsável por programar a ferramenta.

Em 2016 a ProPublica, uma entidade sem fins lucrativos que produz jornalismo investigativo nos EUA, identificou que um algorítimo usado nos tribunais do país capaz de avaliar a probabilidade de condenados voltarem a praticar novos crimes estava enviesado contra os negros. 

Em abril deste ano, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CEJ/CJF) organizaram um seminário com o fim de discutir questões a respeito do Marco Regulatório da IA. O Projeto de Lei (PL) 2.338/2023, criando determinada medida, foi aprovado pela Câmara dos Deputados, mas ainda aguarda a sua votação no Senado. 

No Brasil a inteligência artificial já está sendo utilizada na esfera jurídica. Isabelle Belopede, Advogada tributária formada pela faculdade Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), diz que a ferramenta não é utilizada para resolver casos judiciais, ‘’a Receita Federal e a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional usam há um tempo, mas não para resolver casos judiciais, e sim para fiscalizar os contribuintes mesmo e dar agilidade para todo o processo’’.

Belopede também pontua seus benefícios, ‘’a IA tem sido muito boa para buscar jurisprudências, teses interessantes de processos que já foram julgados’’, explica. 

Nos últimos anos, um relatório levantado pelo Conselho Nacional de Justiça mostrou que há um aumento significativo de demandas judiciais e um déficit nos números de magistrados brasileiros. Dessa forma, a Inteligência Artificial assume um papel de aceleramento no curso dos processos.

Segundo dados levantados pela pesquisa “Tecnologia Aplicada à Gestão dos Conflitos no Âmbito do Poder Judiciário Brasileiro”, produzido pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getúlio Vargas, há mais de 60 projetos de IA em 47 tribunais no país. 

“A IA tem sido utilizada para casos que não tenham nenhum viés subjetivo ou social envolvido’’, informa a advogada. Belopede acredita que a Inteligência poderá vir a ser utilizada em processos que exigem maiores cuidados, mas será uma decisão que levará mais tempo. O princípio fundamental do juízo natural pressupõe a presença de um julgador humano, portanto a IA até pode ser utilizada para auxiliar o julgador, mas não deverá tomar decisões por conta própria sem supervisão.

 ÉTICA, MORAL E ALGORITMO 

O problema do viés do algoritmo não é algo simples, pois para além de uma questão moral envolve uma questão ética complexa de ser estabelecida e caracterizada. Quando se fala de violência contra a mulher, por exemplo, utilizar a IA pode ser perigoso, justamente porque é preciso levar em consideração a capacidade de enxergar uma realidade da qual vai para além dos dados. 

Hyezza Tavares, advogada criminal e cível, especialista em ciências criminais e psicologia jurídica, diz que não há como brecar o progresso tecnológico e consequentemente sua influência em diversas áreas de atuação e aprendizado, como a atuação no meio jurídico, mas ‘’é necessário obter limites éticos quanto a sua utilização para evitar uma crise jurídico-tecnológica’’.

A advogada fala que seria  interessante para melhorar a implementação da IA estabelecer limites de atuação e consequências, ‘’A única forma é a reunião de saberes humanos e daí surge minha indagação quanto a utilização de sistemas auditáveis em disciplinas das ciências humanas: como adaptar um sistema pré-programado à proteção de direitos e liberdades quando essa imanente é humana?’’, questiona. 

Outra questão levantada por Tavares é a respeito de possíveis patrocínios levantados por empresas na utilização da IA. ‘’Algumas preocupações vêm sendo levantadas em relação ao impacto sobre a inovação e a competitividade do país, até mesmo como uma ferramenta patrocinada por empresas de grande poder aquisitivo que pode utilizar-se das ferramentas, opções e demandas de maior impacto para obter benefícios processuais, em detrimento do direito do jurisdicionado’’, coloca. 

Hyezza também atua na defesa de mulheres em casos de violência e verbaliza alguns perigos em deixar esses processos nas mãos da tecnologia. “Esses padrões matemáticos são criados por uma inteligência: a humana. E quando falamos de aparato técnico e tecnológico quem os assume são costumeiramente pessoas do sexo masculino que detém visões e padrões enraizados que não coadunam com a defesa plena à libertação de mulheres’’, alerta a advogada.

O questionamento de alguns advogados e advogadas é sobre a parte humana do mundo tributário, não à toa os profissionais precisam sempre capacitar para estar atento às dinâmicas das situações. ‘’Caso a IA fosse utilizada para fins de proteção às mulheres, seria importante implementar enquanto uma ferramenta a ser utilizada pelos profissionais responsáveis pela investigação e combate à violência contra a mulher, e não como uma solução em si mesma’’, propõe a advogada.

IA: UMA FERRAMENTA, NÃO O VEREDICTO FINAL 

Em 2022, uma pesquisa feita pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontou expressivo aumento na quantidade de projetos de IA no Poder Judiciário, com 111 desenvolvidos ou em desenvolvimento nos tribunais, um aumento de 171% em relação ao ano anterior. É inegável a crescente demanda da Inteligência Artificial no Brasil.

Mauricio Leahy, empossado presidente da Caixa de Assistência dos Advogados da Bahia (CAAB), diz que a ferramenta é útil e benéfica em casos na área de gestão, para servir de suporte para a elaboração de contratos, na simplificação de documentos e no auxílio em tarefas repetitivas. Mas adverte que é importante saber que deve ser usada enquanto suporte e não uma tarefa final. 

Dentre todas as inteligências artificiais já criadas, a mais conhecida, sem dúvidas, é o ChatGPT, um modelo de linguagem avançado desenvolvido pela startup OpenIA, capaz de gerar respostas relevantes e coerentes, de forma similar a uma conversa, com base em uma quantidade enorme de dados.

Com o ChatGPT, qualquer pessoa pode obter informações, esclarecer dúvidas e receber auxílio para as mais variadas tarefas, uma vez que ele está disponível de graça na internet. Ultrapassando a marca de 100 milhões de usuários, e tornou-se o aplicativo com o crescimento mais rápido da história. 

Com o crescente desenvolvimento de novas inteligências artificiais, ferramentas mais avançadas e provavelmente mais específicas para cada profissão e utilidade, existirão daqui pra frente. Para Leahy, essa perspectiva é preocupante quando nos questionamos de que forma essas novas tecnologias estarão disponíveis para o público.

“Já temos muitas diferenças sociais e econômicas na advocacia e, caso esse acesso não seja garantido a todos, essas diferenças podem aumentar ainda mais”, afirma o presidente da CAAB.   

Mesmo com o grande impacto e quebra de paradigmas que a inteligência artificial imporá nesse meio, Leahy defende que é o meio jurídico que determinará a sua utilização, e não o contrário. Uma vez que a advocacia é uma atividade essencialmente humana, não há como as tecnologias competirem com a essência da profissão.

“Enquanto advogados e advogadas, sabemos que, apenas por meio das relações humanas, conseguimos potencializar as vozes da cidadania para contribuir com a efetiva concretização da Justiça”, finaliza Leahy.

 

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Ciências e Tecnologia

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