Inteligência Artificial cria novos desafios para as políticas de direitos autorais

Especialistas explicam o futuro da indústria musical e questionam os limites da tecnologia
por
Maria Eduarda Frazato, Maria Eduarda Mendonça e Vicklin de Moraes
|
07/07/2023

A evolução da inteligência artificial está redefinindo a indústria musical. Com algoritmos capazes de compor músicas originais e cativantes, surge a preocupação em relação à autoria e à proteção dos direitos dos artistas. Pois, os algoritmos utilizados pela inteligência artificial não criam do zero, se alimentam dos bancos de dados, estilos e vozes de pessoas existentes. 

A IA tem a capacidade de criar músicas que imitam perfeitamente o timbre vocal de artistas conhecidos, permitindo que uma música seja interpretada por um artista sem que ele tenha realmente gravado aquela faixa. Essa capacidade levanta preocupações legítimas sobre a originalidade e autenticidade das obras geradas pela IA, bem como a possibilidade de violação dos direitos autorais dos artistas originais. 

Quem manipula essas tecnologias para criar músicas as utilizam de duas formas. A primeira é programada para o uso recreativo e é compartilhada nas redes sociais, para gerar engajamento e likes. Já a segunda, o usuário a programa para lucrar em plataformas de áudio sem esforço criativo. 

A Academia de Gravação, responsável pela premiação do Grammy, declarou em junho que apenas criadores humanos são elegíveis para o prêmio. Agora, os criadores de música precisam contribuir com pelo menos 20% de um álbum para merecer uma indicação. 

Em maio, o Spotify removeu cerca de 7% das músicas criadas pela plataforma Boomy, que usa inteligência artificial para produzir as faixas.  Segundo a empresa, as músicas retiradas da plataforma equivalem a milhares, visto que a plataforma tem aproximadamente 14.810.799 de músicas criadas. 

Quando um artista coloca sua obra no Spotify, ele é pago por cada reprodução de seu trabalho na plataforma com base em royalties (termo em inglês para denominar o valor pago pelos direitos de uso). O pagamento é efetuado diretamente ao artista criador, e não há tabela fixa. 

Em relação à quanto a plataforma paga por reprodução, os valores chegam a em média US$0,04 por 10 plays. O valor está sujeito a alterações dependendo de vários fatores, como por exemplo, se o usuário escutar metade da música. 

A advogada especialista em Direito Autoral, Vanessa Ribeiro explica sobre a comercialização de músicas feitas por inteligência artificial em plataformas de áudio. “Hoje o Spotify recebe uma quantidade gigantesca de música criada por inteligência artificial e as pessoas estão consumindo isso. Por não ter proteção, é mais barata e sem tantas complexidades de gravadoras e pagamentos”, afirma Ribeiro.

Para o produtor musical Matheus Berthaud, a inteligência artificial tira a essência da produção artística. “Se você mandar a IA fazer intro, verso, refrão, verso, ela vai fazer. Quando você está com alguém no estúdio, as pessoas vão discutir, ‘e se na introdução a gente fazer algo diferente?’. Tô vendo muita gente do meio começar a usar para mesclar instrumentos, mas fica muito melhor quando você escolhe naturalmente”.

Com o uso da tecnologia, as vozes de diversos cantores têm sido usadas para criar novas versões de músicas famosas, viralizando nas redes sociais. A técnica de inteligência artificial mais utilizada é a deepfake, que substitui vozes e rostos pelo de outra pessoa.

De maneira ultrarrealista, é possível recriar com os mesmos sotaques, timbre e velocidade da voz. Como foi o caso da Ariana Grande cantando “Show das Poderosas”, sucesso da Anitta. Indo além, cantores já falecidos também estão envolvidos. Por exemplo, Michael Jackson cantando música da Adele ou Frank Sinatra dando voz a “Toxic”, de Britney Spears.

“É um desrespeito com a classe de compositores que passam horas, até mesmo dias para escrever e ver que há pessoas utilizando essas ferramentas para lucrar sem esforço nenhum”, desabafa o compositor Lucas Almeida.

Por outro lado, Paul McCartney afirmou que está usando inteligência artificial para criar a última canção dos Beatles. Segundo McCartney, a tecnologia foi usada para "extrair" a voz de John Lennon a partir de uma gravação antiga, feita antes dele falecer. Com parte da composição em mãos, ele conseguiu terminar a música. 

“Tínhamos a voz de John e um piano e ele poderia separá-los com IA. Eles dizem à máquina: ‘Essa é a voz. Isso é uma guitarra. Tire a guitarra e fomos capazes de pegar a voz de John e torná-la pura por meio dessa IA”, contou McCartney ao programa de rádio Today, da BBC Radio 4, segunda estação mais popular do Reino Unido.

McCartney também comentou: “Tem uma faixa em que John está cantando uma das minhas músicas, e é só IA, sabe? É meio assustador, mas empolgante, porque é o futuro. Teremos apenas que ver aonde isso leva.”
 

Foto da banda Beatles | Reprodução: Documentário The Beatles: Get Back
Foto da banda Beatles | Reprodução: Documentário The Beatles: Get Back

 

A artista Ice Spice usou a inteligência artificial para inserir a voz do rapper Drake sem autorização em sua música, "Munch". O cantor não aprovou, alegando que aquilo foi a gota d'água da IA.

A constituição garante o direito de personalidade sobre a própria voz. A advogada explica que faz parte da essência do indivíduo, por isso só a pessoa tem direito sobre sua voz e somente ela pode autorizar o uso. O que contrapõe a utilização desenfreada que ocorre nas redes sociais e nas gravadoras, além de golpes que assustam as pessoas desavisadas. 

Exemplos do uso desenfreado e descompromissado acontecem diariamente nas redes sociais, especialmente no TikTok, em que utilizam-se de vozes de um cantor em uma canção completamente diferente. Pelos vídeos serem curtos, são compartilhados com mais frequência, viralizando e até enganando pessoas que ainda não conhecem o poder das IAs. 

A cantora norte-americana Ariana Grande é uma das maiores expositoras dessa situação, em que os fãs adicionam a voz da artista em outras músicas, podendo ser até em outro idioma, ainda que o sotaque esteja distorcido. 

Almeida ainda expõe que a inteligência artificial pode ter dificuldades em capturar e expressar emoções de maneira genuína, incluindo as modificações que os fã clubes dos artistas promovem. “A música é uma forma de arte que muitas vezes evoca emoções e sentimentos humanos. No entanto, as criações musicais geradas por IA podem parecer tecnicamente corretas, mas podem não ter a mesma profundidade emocional ou subjetividade que um músico humano é capaz de transmitir”. 

O produtor musical também conta que a tecnologia vem ajudando artistas independentes. “Pelo fato da música com IA ficar tão parecida quanto um ser humano fazendo, muita gente de pouca renda, artista independente, e outros profissionais estão começando a usá-la por ser um meio mais barato e traz tanta qualidade quanto”, afirma Berthaud.

Inteligência Artificial VS Gravadoras

Uma participação de Drake e The Weeknd denominada “Heart on my sleeve", postada em abril na internet por um usuário que se identifica como Ghostwriter, teve uma grande repercussão, com mais de 10 milhões de visualizações no Tik Tok. A faixa nunca foi gravada pelos artistas, e foi feita utilizando apenas a inteligência artificial.

A Universal Music, gravadora do cantor The Weeknd pediu para que a versão feita pela IA fosse tirada da rede social, na mesma época a empresa mandou cartas para o Spotify, Apple Music e demais plataformas pedindo que as músicas do catálogo da gravadora não sejam usadas para treinar ferramentas de inteligência artificial.

“O uso da voz do artista no treinamento de IAs não teve autorização do artista. A nossa lei muitas vezes não diferencia, pelo menos na parte de direito autorais, a questão do uso em uma brincadeira, para o uso com remuneração comercial. De qualquer forma, você não vai precisar de uma autorização para isso, mas desde que você não ofenda a pessoa ”, afirma a advogada especialista em direito autoral.

A popularização das ferramentas de inteligência artificial está fazendo com que pessoas comuns vivenciem os problemas de pessoas famosas. A advogada também alerta para o crime do roubo da voz para aplicação de golpes. Alguns deles, como os por telefone, estão se tornando cada vez mais populares no Brasil. 

Uma pesquisa recente do Mobile Time/Opinion Box com 2.125 brasileiros mostra que três em cada quatro pessoas já sofreram pelo menos uma tentativa de fraude telefônica. A maioria dos inquiridos 68% diz receber este tipo de contato “várias vezes por ano”, mas há quem diga receber todos os dias ou várias vezes por semana 13%. O problema atinge todos os usuários de celulares, independentemente de idade, classe social ou localização geográfica. 

A advogada explica o que deve ser feito caso a inteligência artificial seja usada para cometer crimes cibernéticos. “Em geral, você vai tentar buscar o responsável e pedir pra ele te explicar qual o processo de criação e como funciona o algoritmo dele, e se possui licenciamento para utilizar essas ferramentas. Mas tudo vai gerar algum trabalho de investigação", afirma.

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