Por Carolina Rouchou
O sol da tarde incidia sobre o telhado de zinco da casa de dona Rosa, ex-merendeira aposentada, transformando o interior numa estufa úmida onde até as sombras pareciam derreter. Seus dedos, calejados por trinta anos de água fervente e panelas de alumínio, deslizaram lentamente sobre o extrato bancário estendido na mesa de madeira compensada. Um tremor quase imperceptível percorreu suas mãos ao constatar a ausência: trinta reais evaporados sem rastro, sem explicação. Na coluna das observações, duas palavras secas destacavam-se como cicatrizes num corpo são: taxa associativa. Ela revirou a gaveta da cômoda, movendo fotografias desbotadas de netos, cartas de aniversário amareladas e frascos de remédios contra dores articulares, mas nenhum documento justificava aquele roubo silencioso. O zumbido das moscas na cozinha fundia-se ao sussurro do rádio de pilha, onde vozes distantes discutiam escândalos em Brasília, enquanto o vento quente do sertão baiano arrastava cortinas de poeira vermelha pelo quintal.
Três dias depois, a agência do INSS em Feira de Santana exalava um odor acre de desespero e corpos exaustos. Rosa juntou-se à fila que serpenteava pelo corredor mal iluminado, seu corpo frágil espremido entre camponeses de mãos rachadas pela enxada e viúvas vestidas de preto, cujos olhos guardavam lutos recentes. O ar pesado, saturado de respirações ofegantes e suor envelhecido, colava-se à pele como um segundo véu. À sua frente, um homem de chapéu de palha desbotada apertava contra o peito um envelope deformado pelas dobras, os olhos fixos nas rachaduras do chão de granito. Mais adiante, uma jovem mãe balançava um bebê choroso no colo, seu vestido roto manchado de leite coalhado. Sussurros ecoavam como preces num templo arruinado, contando histórias repetidas de cinquenta, cem, duzentos reais desaparecidos, associados a nomes desconhecidos que surgiam nos extratos como pragas burocráticas: Aapen, Conafer, Sindprev. Quando finalmente alcançou o guichê blindado, a atendente mantinha os olhos colados à tela do computador, os dedos batendo no teclado com um ritmo mecânico. A voz que saiu dela era monótona, repetindo instruções sobre formulários amarelos e prazos de noventa dias como uma litania sem fé. Rosa saiu carregando um papel cheio de códigos indecifráveis, a sensação de ter sido devorada por um sistema sem rosto acompanhando-a como uma sombra.
Os efeitos do sumiço infiltraram-se em sua vida como veneno lento. Primeiro foram os ovos da feira semanal, substituídos por farinha de mandioca misturada com água até formar uma pasta cinzenta. Depois, o frango domingueiro transformou-se em sardinhas enlatadas, seu óleo usado para untar a panela enferrujada. Quando o frasco do remédio para as juntas começou a durar o dobro do tempo, pois cada cápsula era partida ao meio com uma faca de cozinha, sua filha Adriana desconfiou do sorriso tenso que ela forçava. Rosa desviou o olhar, escondendo o frasco vazio sob a almofada do sofá, onde restos de algodão e migalhas formavam um pequeno cemitério doméstico. Não suportava a ideia de preocupar a filha, professora primária como ela fora, cujo salário já se esticava entre cadernos escolares e contas de água. Nas noites abafadas, deitada na rede do quintal sob um céu sem estrelas, sua mente tecia imagens dos tais "serviços associativos": advogados de ternos impecáveis em escritórios com ar condicionado, defendendo causas que jamais tocariam sua vida; academias de vidro fumê onde corpos jovens suavam sob luzes neon, universos paralelos onde seus pés inchados e varizes seriam anomalias grotescas; farmácias reluzentes oferecendo descontos em remédios que seu salário minguado jamais permitiria comprar.
O telefone preto da sala repicou numa quarta-feira cinzenta, quando uma chuva miúda começava a cair sobre a terra ressecada. Do outro lado, uma voz grave e impessoal despejou uma sequência de termos ameaçadores: dívidas acumuladas, bloqueios iminentes, processos judiciais. Rosa sentiu um frio percorrer sua espinha, as mãos úmidas agarrando-se ao vestido de algodão remendado. O coração batia como um tambor surdo em seu peito, ecoando na sala vazia. Seus dedos tremiam sobre o bloco de anotações, prontos para registrar o número da conta que a voz ditava com urgência falsa, até que a lembrança de sua vizinha irrompeu em sua mente como um alerta. A imagem da amiga chorando na porta, três meses de aposentadoria evaporados nas mãos de homens invisíveis, petrificou-a. Desligou o aparelho com movimentos lentos, como se desarmasse uma bomba. Dali em diante, cada toque do telefone transformava-se num estampido no silêncio da casa, fazendo-a saltar da cadeira como um animal acuado.
A desconfiança alojou-se em sua alma como um parasita. Cartas com carimbos oficiais eram examinadas contra a luz da janela, virando-se o papel em todos os ângulos, buscando falhas na impressão, inconsistências no brasão. A campainha da frente, que outrora anunciava visitas de netos ou vizinhas solidárias, soava agora como um alarme de invasão. Até o carteiro, que lhe entregara cartões de aniversário por duas décadas, tornou-se figura suspeita. Certa manhã, observou-o pela fresta da porta, o coração acelerado martelando contra as costelas. Recusou-se a abrir, murmurando desculpas inaudíveis através da madeira rachada pelo tempo. O velho homem afastou-se com os ombros curvados, deixando um anúncio de supermercado enrolado no batente, como oferenda rejeitada.
O golpe final chegou em dezembro, envolto num envelope de papel pardo que cheirava a tinta barata e mentira. Uma intimação oficial ordenava sua presença na delegacia de Salvador sob acusação de "fraude previdenciária". O brasão impresso parecia desfocado, as letras tremidas como escrita de mão embriagada. Durante três dias, Rosa caminhou pela casa como sonâmbula, o papel queimando-lhe as mãos como brasa. Pegou três ônibus até a capital, cada solavanco nas estradas esburacadas uma facada nas costas lesionadas. Na delegacia, entre paredes verdes descascadas e o cheiro azedo de café requentado, um delegado jovem examinou o documento com lupa profissional. Seu dedo indicador apontou falhas no timbre, numeração fora do padrão, um endereço fictício. Não houve raiva em sua explicação, apenas um cansaço ancestral, como se repetisse um ritual conhecido demais.
Na viagem de volta, enquanto o ônibus serpenteava por estradas noturnas, Rosa observou crianças pulando em poças de água sob as luzes de um caminhão de som natalino. As cores dançavam em refração líquida, pintando seu rosto enrugado com manchas efêmeras de alegria alheia. Lágrimas silenciosas escorreram então, não pelos trinta reais roubados ou pela jornada exaustiva, mas pelo pacto invisível rompido: três décadas servindo merendas escolares em panelas fumegantes, acreditando que o país a acolheria quando os joelhos falhassem e a visão escurecesse.
Hoje, sua aposentadoria chega íntegra. Mas o ritual permanece inabalável: toda madrugada, antes mesmo de acender o fogão a lenha, ela acorda o celular velho que Adriana lhe ensinou a usar. Os olhos miúdos perscrutam cada linha do extrato digital, caçando fantasmas de bytes e algoritmos. No caderno de capa preta, na última página manchada de café e resíduos de lágrimas, rabiscou a frase que se tornou seu único evangelho: Desconfie até da sua sombra.
Os extratos antigos repousam numa caixa de sapatos de couro faux sob a cama de madeira. Em noites de calor insuportável, quando o vento do sertão sopra quente como hálito de forja, Rosa retira a caixa e passa os dedos sobre os papéis amarelados. São como lápides em miniatura: monumentos funerários para uma fé assassinada em pleno dia, sem testemunhas, sem lápides, sem justiça.