O uso da inteligência artificial não é uma novidade na criação dos jogos eletrônicos, já que ela sempre esteve presente para auxiliar na construção do
universo, das mecânicas e dos personagens. Porém, ela vem substituindo o papel dos desenvolvedores, causando medo do desemprego.
No lugar de programar somente detalhes da ambientação, como a interação com o ambiente dos NPCs (Non-Playable-Characters) - personagens que não são controlados pelo jogador -, agora ela é parte atuante na produção do jogo final, desde a escrita de pedaços do roteiro e criação do cenário de jogos de mundo aberto, até a realização de parcelas da programação.
Outras profissões já se tornaram ou estão ameaçadas de se tornar obsoletas pela tecnologia. Porém, nos games, a ideia é bastante recente, visto que o uso das ferramentas com IA ainda é cru, e tem uma longa evolução pela frente.
Bruno Cassol, advogado trabalhista especialista em games e e-sports, diz que o uso é uma faca de dois gumes. Ao passo que a IA irá agilizar a produção dos jogos, os funcionários também sentirão um impacto. “A quantidade de pessoas contratadas também vai diminuir”, diz.
O espanto se agrava ainda mais quando vemos os algoritmos sendo uma ameaça a cargos que são altamente ligados à tecnologia, pois dá uma impressão quase como o filme “Exterminador do Futuro”, de que isso está deixando seu posto de aliada e se voltando contra nós.
O advogado diz que o que está acontecendo ainda não é uma substituição propriamente dita, pois somos capazes de nos adaptar às mudanças da evolução tecnológica. No entanto, o avanço está tão veloz que não existe tempo hábil para que a adaptação, como a mudança para novos cargos, possa ocorrer.
Preocupações nos empregos de games
Na convenção Conferência de Desenvolvedores de Games (CDG) deste ano, que ocorreu em San Francisco, o assunto virou uma pauta recorrente. Principalmente pela revelação da empresa Ubisoft, que admitiu usar ferramentas como as suas próprias “Ghostwriter”, “VoRACE”, e o "Mid Journey".
Cassol diz que, o uso de IA em si, não é uma novidade, e que as empresas de grande porte já a utilizam há pelo menos uma década. Mas, ela vem se integrando no dia a dia de todas as produções.
Para exemplificar, ele utiliza a franquia chefe da EA Sports - o jogo FIFA. Desde que ele entrou nas plataformas digitais, faz uso da inteligência artificial para balancear a dificuldade do jogo. Ela mapeia os movimentos e jogadas do jogador para melhorar sua estratégia, proporcionando um desafio maior a ele.
Agora, elas estão em softwares como o Adobe Firefly, o Photoshop e a Unreal Engine. O Firefly pode ser usado para gerar vetores, pincéis e texturas personalizados. O Photoshop também incluiu, recentemente, ferramentas como o preenchimento generativo, que pode adicionar ou remover objetos das imagens, além de estendê-las. O Unreal, por si só, é capaz de criar Behavior Trees, usadas para criar automaticamente a IA de personagens não jogáveis.
A mudança tem a premissa de deslocar times para tarefas menos trabalhosas e com mais relevância para a história principal dos jogos. Assim, o foco dos desenvolvedores iria ao lado criativo, como caracterização de personagens e mecânicas da gameplay - a forma que você joga.
Muitos desenvolvedores, como Lani Mariana, producer e artista 2d da empresa indie “O Culto?”, acreditam que na realidade, as empresas maiores estão priorizando o dinheiro e não a qualidade do produto. “Tanto é que, inúmeras são acusadas de explorar seus trabalhadores”, explica.
Eles creem que os empregos irão se tornar mais escassos, já que as funções já estão em falta sem as redesignações. Além disso, na maioria das vezes, esses cargos substituídos são a porta de entrada para os iniciantes na carreira.
O medo é justamente esse, dos trabalhadores serem vistos como um “gasto a mais”, sabendo que a IA poderia realizar, na teoria, o mesmo trabalho. Os brasileiros dizem que já é difícil arranjar um trabalho na área, se um algoritmo entrar na jogada, a competição ficaria mais acirrada e desleal.
"O que as inteligências fazem em si não tem nada de errado, mas colocar menos pessoas no mercado é negativo”, opina Dominique Ramos, game designer na empresa Lost Attic. Além do medo da falta de espaço no mercado, alguns dos profissionais sequer acreditam que elas poderiam substituir o trabalho humano sem uma piora nos produtos finais.
A qualidade dos jogos
Outro fator que preocupa os desenvolvedores, é a impressionabilidade do público. Ramos acredita que as pessoas tendem a ficar deslumbradas com a tecnologia, vendo o texto como bom porque foi feito por uma IA. “É mais impressionante, mas a qualidade real não é bem essa”, explica a designer.
Kelvin Akio é programador, game designer e sonorizador há 3 anos e concorda com essa hipótese. “Pode ser que algum dia uma IA consiga fazer um jogo por inteiro, mas ela não vai fazer um jogo inovador e não irá levar o meio pra frente”.
Em alguns casos, como o da plataforma de programação chinesa Yahaha, por exemplo, eles se perguntam se elas realmente seriam uma aliada.
Com o uso delas, é necessário um constante monitoramento de programadores humanos, já que os códigos são hipersensíveis a qualquer tipo de erro. Por isso, precisam se certificar a todo momento que não existem bugs, ou seja, falhas na codificação que levam ao mau funcionamento do sistema do jogo.
Eles também são um problema em jogos que não usam essas IAs, e muitas vezes são o motivo do adiamento de lançamentos e causam os polêmicos casos de crunch, que é o sobrecarregamento das equipes de desenvolvedores para terminar os produtos.
Tal como o caso famoso da empresa CD Projekt Red em 2020, que adiou três vezes a estreia de Cyberpunk 2077 por conta dessas falhas. O qual ainda precisou ser retirado das lojas após o lançamento, em razão de bugs que travavam o avanço dos jogadores. Ele só voltou a ser vendido após boa parte deles serem consertados sob uma forte pressão da empresa nas equipes. Mas, os algoritmos ainda não se provaram uma solução para esse problema, já que não funcionam completamente por conta própria.
Além disso, por contarem com um número limitado de informações, existe a possibilidade da IA generativa, como o Chat GPT, forçar resultados. Ou seja, dar uma informação que não é a correta, podendo causar algum tipo de discriminação de minorias, por conta dos algoritmos que não foram muito bem analisados por humanos.
Direitos dos trabalhadores da área
"No geral, existe pouca preocupação com o uso de IA no âmbito do trabalho no Brasil", diz Guilherme Guimarães Feliciano, Juiz do Trabalho da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté e professor de direito na Universidade de São Paulo.
Principalmente quando se trata de demissões em massa, pois a única coisa que as empresas devem fazer é realizar o aviso prévio e pagar indenizações para esses trabalhadores.
O juiz conta que não temos uma regulamentação para essas tecnologias. Até existem alguns projetos de lei e teses, mas nenhum que tenha ido para frente efetivamente. Como, por exemplo, a PL 2338/23 que propõe regular o uso da Inteligência Artificial no Brasil.
Ela tem como principal objetivo definir os sistemas de IA de alto risco a partir da finalidade de sua utilização, com a possibilidade de atualização pela autoridade competente a partir de critérios como: uso em larga escala, potencial afetação de direitos fundamentais e impacto em grupos vulneráveis.
Enquanto essas regras não existirem, é impossível discutir judicialmente a validade destas demissões. “No Brasil, a substituição de empregos por automação não é ilegal e não garante ao trabalhador qualquer indenização adicional além das previstas em lei”, explica Cassol.
Benefícios para empresas de pequeno porte
Nem tudo sobre o uso de IA é negativo. Um dos pontos positivos é o baixo custo das plataformas. A automação ajuda equipes de jogos indie, que tem pouco orçamento, a conseguirem finalizar os seus projetos.
Akio diz acreditar que a ferramenta, se usada corretamente, pode servir para dar um norte nesse tipo de programação, mas reitera que o olhar humano não consegue ser substituído completamente.
Com uma equipe reduzida e poucos recursos, usar a IA para economizar dinheiro passa a ter mais utilidade, além de fazer mais sentido nesse contexto do que em produções com maior investimento.
Nomes como Shuhei Yoshida, ex-presidente da PlayStation e atual diretor da PlayStation Indies, já se posicionaram publicamente a favor do uso exatamente por esse motivo.
Segundo ele, ele acrescenta a qualidade e beleza de jogos sem sobrecarregar ainda mais essas produções. Dessa forma, elas teriam chances de competir com os jogos Triple A, diminuindo, além dos recursos, o tempo gasto no desenvolvimento.
Para Suzete Venturelli, pesquisadora e pró-reitora de Design, Artes e Tecnologia da Universidade Anhembi Morumbi, a revolução digital e as IAs são uma tendência em áreas ligadas à arte e criação. “Elas fazem parte da evolução natural do processo de criação do artista”, diz a especialista
Elas também evitariam casos como o de Mortal Kombat 11, no qual um de seus desenvolvedores foi diagnosticado com estresse pós-traumático por ter que estudar cenas de cadáveres sangrentos e assassinatos para realizar as animações das finalizações do jogo, as chamadas “Fatalities”, que são famosas por serem extremamente violentas
Na época, o animador passou a sonhar constantemente com mortes e agressões após ter participado da produção do game. Se uma IA fizesse esse trabalho, ela não sofreria essa mesma consequência.
Ainda assim, ela não escaparia do dilema principal que assombra qualquer IA voltada à geração de obras, sejam elas textos, imagens, áudios ou até mesmo os jogos - de poder ou não se equiparar a uma obra completamente humana.
Venturelli acredita que uma arte gerada digitalmente não se compara a uma feita organicamente, já que ela deve ter papel auxiliar na criação e não ser a criadora em si. “Ela vem em um sentido de trabalhar a criatividade em um processo conjunto”, explica a professora.
Akio, no entanto, levanta um problema em como as inteligências são treinadas, porque elas precisam ser alimentadas com coisas que foram produzidas por humanos para funcionar e os artistas originais não são compensados por isso.
Além disso, Cassol explica que elas não são um sujeito de direito, ou seja, elas não podem ser responsabilizadas em caso de crimes ou irregularidades. Apesar de cada caso ser um caso, num geral, quem responderia por qualquer erro seria a empresa ou a pessoa que fez o input - pedido da geração.
Porém, pode ser diferente no futuro. “Se pensarmos, por exemplo, que a constituição do Equador considera a Pachamama - a mãe natureza - como um sujeito de direito, então, considerar a IA como um também pode ser pensado”, termina.
A principal discussão, segundo Lani, não é se devem ou não usar a inteligência artificial, e sim como ela deve ser usada. É uma tecnologia que pode, de certa forma, ajudar os desenvolvedores se utilizada da forma correta.
Mesmo com esses adendos positivos levantados pelos desenvolvedores, as maiores vantagens ainda parecem ficar para a economia das companhias.
Entramos em contato com essas empresas que usam inteligência artificial, como a própria Ubisoft, para entender melhor o posicionamento deles em relação aos benefícios e malefícios. Porém, não tivemos retorno até o fechamento da matéria.