Por Cristiane Gabriel
Rachel acordava todos os dias em uma espécie de exílio, onde a própria essência da vida – o som – era algo a ser evitado a qualquer custo. O mundo ao redor parecia cruel em sua simplicidade: os risos dos filhos, que antes aqueciam sua alma, agora eram punhais invisíveis que a atingiam com uma dor insuportável. A hiperacusia tomara conta de tudo; transformou sua casa em um campo minado de ruídos, onde cada som era um potencial gatilho para uma dor física profunda. Bastava uma conversa ao fundo, um ruído de prato, um passo a mais, e todo o seu corpo reagia como se estivesse sob ataque.
Sua rotina tornou-se um estudo constante de como minimizar os sons. Rachel se desenvolveu especialista em identificar as horas mais tranquilas do dia, os lugares mais silenciosos, as rotinas menos ruidosas. Para tentar amenizar a dor que os sons causam, ela vive com tampões nas orelhas e mais uma camada de um abafador de ruídos para obras. Além disso, as poucas vezes em que Rachel abre a boca não ouvimos sua voz, mas um sussurro. Até mesmo o som da própria voz lhe é incômodo. Na maior parte do tempo, ela se isola em um quarto silencioso, longe dos outros, longe dos filhos, longe dos momentos em família ou entre amigos. Era como se o simples ato de existir ao lado das pessoas que amava fosse demais para suportar. E, embora amasse seus filhos e marido intensamente, o som deles parecia preencher o ar com dor.
Nas vezes em que seus filhos apareciam, cheios de energia e alegria, Rachel se via obrigada a recuar. Não por falta de amor, mas porque os risos, os gritinhos felizes, as perguntas intermináveis, tudo isso se transformava em uma onda de ruído insuportável que esmagava sua mente. Ela tentava explicar a eles, mas eles não entendiam que o som de sua risadas machuca. Ela já não podia abraçá-los com a mesma frequência, já não podia acompanhar as tarefas do dia a dia sem pagar o preço alto da dor. Mas ela ainda tenta se fazer presente na vida de quem ama. No último natal, ela não quis perder a reação dos filhos ao abrir seus presentes. Portanto, fez o seguinte plano: montou a árvore de natal próxima à estufa que tem na própria casa. Enquanto os filhos faziam barulhos estrondosos ao rasgar os papeis de presente e gritavam em euforia ao verem o que tinham ganhado. Rachel acompanhava tudo a um metro de distância separada pela estufa, seu tampão e seu protetor de ruído.
Com o tempo, a hiperacusia não apenas invadiu seus sentidos, mas também seus pensamentos. A dor auditiva intensificava sua angústia emocional. Ela se perguntava se algum dia aquilo iria mudar, se voltaria a ser a mãe alegre e a mulher ativa que um dia fora. As consultas médicas eram constantes. Tentava diferentes tratamentos. Antes de descobrir o que era hiperacusia e conseguir dar nome ao que sentia, muitos médicos receitaram à Rachel antidepressivos. Acreditavam que a vontade de isolamento dela era proveniente de uma doença psicológica, e não sobre uma hipersensibilidade. A sensação era de que ninguém realmente entendia o que significava viver em um estado de alerta constante contra o som, nem mesmo os profissionais da saúde. Foram muitos comprimidos tarja preta para dentro até ela encontrar em um fórum na Internet pessoas relatando exatamente os mesmos temores que ela passava. A sensação de alívio ao finalmente dar um nome ao que tinha, foi breve. Logo ela foi tomada por um vazio ao perceber quanto tempo passou ingerindo remédios que não precisava. Era tarde, ela já tinha se tornado uma estranha em sua própria vida.
Às vezes, Rachel sonhava com o silêncio absoluto, uma paz que talvez pudesse alcançar em algum lugar onde nem mesmo o vento passasse. Outras vezes, sonhava em “baixar o volume do mundo” – uma ideia impossível, mas que ela mantinha viva dentro de si como uma espécie de refúgio mental. O isolamento era doloroso, mas paradoxalmente era também o único alívio. Ela passava horas em um quarto escuro, observando as sombras se moverem, imaginando uma vida em que pudesse viver sem medo do som.
Mesmo quando encontrava momentos de paz, a dor da hiperacusia sempre parecia espreitar, esperando para reaparecer. As lembranças de uma vida antes dessa condição a assombravam. Ela recordava os piqueniques no parque, as brincadeiras no quintal, as festas de aniversário barulhentas, tudo o que um dia fez parte de sua vida e agora era quase impossível. Em raras ocasiões, quando conseguia forças, saía ao ar livre, mas tudo era cuidadosamente planejado para evitar barulhos: ela se movia de forma cautelosa, quase imperceptível, como se o menor movimento pudesse despertar a fera da dor.
Os dias tornavam-se meses, e a hiperacusia continuava a ditar os termos de sua vida. Rachel tentava se agarrar ao amor pelos filhos e marido, mas a cada dia parecia mais difícil. O som, que sempre fora uma expressão da vida, agora a afastava do que mais amava. Ela se perguntava, então, quanto mais poderia suportar essa existência entre a presença e o exílio. São anos nessa condição. Anos tentando construir uma nova relação com os filhos, com o marido. Hoje, ela depende também financeiramente do marido, já que não consegue trabalhar. Faz alguns trabalhos como freelancer no seu computador em casa para ajudar, mas não chega perto de ter a independência financeira que antes tinha como comissária de bordo. Apesar da solidão constante, Rachel ainda encontra força para falar e divulgar sobre sua condição e ironicamente, quer fazer o máximo de barulho possível para que existam mais estudos e pesquisas sobre. Mesmo no silêncio, sua esperança segue gritante.