Em linhas gerais, a educação chilena conta com três diferentes modelos de instituições de ensino superior, criados pela reforma da educação superior de Augusto Pinochet em 1981: universidades, Centros de Formação Técnica (CFT) e Institutos Profissionais (IP). Entretanto, desde 1981 até os dias de hoje diversas transformações, mudanças e movimentos ocorreram na educação do Chile. Nesse texto, serão abordadas as questões acerca da mercantilização da educação devido à reforma ditatorial no governo que levou a um rígido processo de endividamento de boa parte dos estudantes e que, por fim, desencadeou diversas mobilizações estudantis que acontecem até hoje.
Em entrevista ao veículo Outras Mídias, Fabian Cabaluz, professor da Universidade Academia de Humanismo Cristão, no Chile, explica que, antes do golpe de Pinochet em 1973, o setor privado na educação era minoritário. A reformulação em 1981 no sistema educacional nacional implicou tanto em reformas estruturais como mudanças nos mecanismos de créditos e financiamento. Foram criados mecanismos para o nascimento de novas universidades privadas com financiamento próprio, além dos IPs e CFTs – que são privados. Já as universidades públicas foram descentralizadas e suas sedes regionais originaram novas instituições. Das oito universidades financiadas pelo Estado formaram-se 25 centros universitários. Desde então, a partir dessas oito, foram criadas novas universidades, incorporando-se, além disso, outras de origem nitidamente privada.
Na década de 1980, o Chile foi o primeiro país da América Latina a introduzir a cobrança de mensalidades nas instituições públicas de ensino superior e atualmente é o que cobra as taxas anuais mais altas no nível de graduação, acima dos US$ 3.000, o que equivale ao cobrado em países desenvolvidos como Canadá e Nova Zelândia. Dessa forma, assim como nos Estados Unidos, não existe ensino público gratuito. Apenas 15% do custo da educação superior chilena é paga com dinheiro público, os 85% restantes são financiados pelos estudantes e seus familiares. Com o crescimento da educação privada, deu-se início a política problemática do sistema de créditos e financiamento estudantil que transferiu grande parte dos custos para os estudantes. Segundo o estudo “La Educación Superior en Chile”, publicado em 2009 pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e pelo Banco Mundial, entre 1980 e 1990, descontando a inflação, o investimento público para educação superior sofreu uma queda de 41%. O então criado CAE (Crédito com Garantia do Estado) é um dispositivo financeiro que se funciona perfeitamente no modelo neoliberal instalado por Pinochet no Chile e que é o centro da revolta dos manifestantes até hoje.
Para ter acesso a uma educação mais qualificada, os universitários têm duas opções de créditos. A primeira é a educação do Estado, em universidades públicas, cuja mensalidade nunca pode superar 5% do salário ganho e que perdoa a dívida daqueles que não conseguem pagá-la em 20 anos. O outro tipo é o “Crédito con Aval del Estado”, cobrado por bancos privados, que nunca tiram a dívida dos estudantes até ser totalmente paga: o valor cobrado pode ultrapassar os 5% do salário e a taxa de juros é bem mais elevada.
(Fotos: Reprodução PassaPalavra.info)
Se a educação superior promovia, até o início dos anos 1970, a mobilidade social no Chile, essa característica foi se perdendo nas décadas seguintes. A onda privatista desencadeada pelo governo Pinochet ampliou o acesso às classes média e alta com grande intensidade, e consequentemente fazendo com que os setores menos favorecidos por conta dos altos preços cobrados, não tivessem essa mesma oportunidade. Com essas medidas, o Estado transformou o direito à educação em produto de “livre” mercado, fazendo com que a pobreza aumentasse: afetava 17% da população em 1970 e 34,5% em 1990. Pode-se caracterizar então todos os acontecimentos e fatos citados como parte de uma “primeira onda privatista” da educação superior chilena que gerou a diferenciação, a estratificação e a segmentação do sistema de acordo com o nível social dos alunos.
Os altos preços impostos pelas instituições chilenas e a dificuldade de pagamentos das mensalidades pelos estudantes é o maior empecilho para formar profissionais capacitados. Em 2014, estavam matriculados em cursos de graduação cerca de 1,27 milhão de estudantes, segundo pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Educação (Cned). Desse número, mais da metade são usuários de algum empréstimo bancário. Por conta de tanta insatisfação dos estudantes a respeito tanto da qualidade do ensino mas, principalmente, do valor altíssimo que se exigia dos estudantes para obter uma educação qualificada, no ano de 2006, os movimentos estudantis iniciaram uma onda de manifestações que ocorrem até hoje em busca de melhorias. Além das manifestações do ano de 2006, chamada “revolta dos pinguins”, é importante ressaltar os intensos meses de protestos de 2011 até 2012 que conseguiram pela primeira vez convocar estudantes de escolas particulares pagas, os CFTs, IPs e universidades privadas, ou seja, todo o sistema educacional chileno. As primeiras mobilizações nacionais foram convocadas pela Confederação de Estudantes do Chile (CONFECH), uma organização que reúne as associações de estudantes das universidades que integram o Conselho de Reitores das Universidades Chilenas - conhecidas como "tradicionais" - em meados de maio de 2011.
Atualmente, a insatisfação dos estudantes ainda é pauta importantíssima no país. Em entrevista à CartaCapital, o pesquisador David Padilha, segundo ano do mestrado na Universidade Católica do Chile, relatou que usou o sistema de empréstimo bancário Crédito com Aval do Estado (CAE) para financiar sua graduação em História. Para quitar a dívida de 12 milhões de pesos chilenos (cerca de 48 mil reais), referente aos quatros anos de curso, o estudante contraiu uma dívida de 8 milhões de pesos chilenos (cerca de 32 mil reais). “Agora estou no mestrado com bolsa, além da isenção de pagamento do curso. Com a bonificação mensal eu consigo viver, mas ainda é preciso pagar a dívida, que irá me acompanhar ainda por um bom tempo”, explica. O sistema de empréstimos de créditos faz da educação um das iniciativas privadas mais lucrativas no país, estando no mesmo patamar da exportação do cobre, a atividade econômica mais importante do Chile. Acredita-se que a educação tenha movimentado 150 bilhões de pesos chilenos (cerca de 600 milhões de reais) entre 2006 e 2011, segundo a CONFECH.
Também em entrevista a CartaCapital, Gunther Birchmeier, ainda está sofrendo para terminar de pagar os juros de sua educação que foi interrompida, pois seu salário já não pagava a mensalidade. Gunther conseguiu pagar os empréstimos que recebeu cinco anos atrás para os estudos, mas ainda restam outros. “O problema são os juros porque uma coisa é o que eles emprestam e a outra são os juros. “Me emprestaram 10 milhões de pesos (cerca de 13 mil dólares) e estou pagando uns 20 milhões, 100% a mais”, calcula.
Todos esses relatos, junto à milhares de outros estudantes ou ex-estudantes chilenos levaram a mais uma onda de manifestações que começaram no final do ano de 2019. Os protestos da população pedem constantemente uma reforma na constituição que ainda carrega as heranças da ditadura, em praticamente todos os pilares da sociedade. Liderado por estudantes, o ato do dia 07 de março — o maior de 2020, até o momento — registrou episódios de violência, que vêm acontecendo desde o fim do ano passado. A atual Constituição não prevê que saúde, educação e previdência, bases de uma sociedade, sejam atribuições do setor privado, "mas estabelece princípios que limitam a ação do Estado e promovem a atividade privada", explica o professor de direito constitucional Sebastián Zárate, da Universidade de los Andes em entrevista ao jornal O Globo. Em quase cinco meses de protestos, 30 pessoas morreram, estações de metrô foram incendiadas e centenas de estabelecimentos comerciais sofreram saques. No dia 28 de fevereiro de 2020, a ministra da Educação do Chile, Marcela Cubillos, renunciou ao cargo. Cubillos comandava a pasta desde agosto de 2018 e, desde então, teve uma gestão muito criticada por movimentos estudantis e especialistas em educação, mas a insatisfação ficou mais evidente durante os protestos no país.
Os protestos em busca de uma redemocratização da educação e da constituição de forma geral ainda estão longe de acabar. Toda essa mobilização extremamente forte dos estudantes chilenos deve seguir de exemplo para outros países latino-americanos, incluindo o Brasil. Por mais que desestruturar um sistema construído há mais de 40 anos não é fácil, é inspirador enxergar o barulho que a população pode fazer em um país.