Guerras provocam cicatrizes invisíveis

Em meio a 2ª Guerra Mundial, a luta para manter a infância depois das sequelas do combate.
por
Isabella Santos
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24/09/2024

Por Isabella Santos

A primeira coisa que vem à mente de quem tira parte do seu tempo para refletir sobre conflitos tão, aparentemente, distantes provavelmente são armas, bombas e exércitos e mais exércitos de homens destemidos, determinados a dar seu sangue pela nação. Mas, das trincheiras para dentro da casa deste soldado, pouco se fala sobre a vida daqueles que não foram à guerra, não escolheram ter sua vida revirada pela mesma, mas que,por conta de um ato de coragem de seus familiares, sofrem com as consequências por anos. A história que será contada poderia ser sobre alguma garota ucraniana, que luta para sobreviver em meio ao caos e vazio causado pela guerra e a falta de um familiar que se foi, mas é sobre Neide, uma menina que tinha apenas 7 anos de idade quando foi brutalmente obrigada pela vida a ter responsabilidades e deveres de uma pequena adulta.

O Brasil foi envolvido na Segunda Guerra Mundial em 1942, quando submarinos alemães torpedearam e afundaram cinco navios mercantes brasileiros, fato que provocou a ira de Getúlio Vargas, declarando guerra à Alemanha. E foi assim que "a cobra fumou", e a Força Expedicionária Brasileira (FEB) convocou aproximadamente 25 mil militares e os enviou para o front de batalha na Itália. Entre eles estava Salvador Figueiredo. pai da Neide. Ele foi surpreendido pela vida, quando aos 19 anos foi convocado pela FEB em 1944 para ir à guerra. O jovem, do 1° batalhão, 2° regime de Obuzes havia iniciado um namoro com sua amada Hermenegilda e se viu sem saída, tendo sua partida confirmada logo após sua convocação.

Por mais que sua vontade fosse ficar em Osasco, sua cidade natal, era quase impossível não defender o Brasl no maior conflito da história da humanidade. Seu amor por Hermenegilda se sustentou durante todo o ano em que ele residiu na Itália através de cartas, que sua filha hoje guarda como se fosse um tesouro, tomando todos os cuidados para mantê-las em seu melhor estado junto a outras lembranças do pai.

1944 foi um ano de incertezas para Hermenegilda. Acordar todos os dias sem ter notícias sobre a vida de seu amado foi desafiador e ao mesmo tempo perturbador, mas para ela, restava apenas ter fé e a esperança de que ele iria retornar para seus braços. E assim foi feito, um ano depois Salvador retornou do conflito, e a felicidade e alívio do casal foi tanta que o casório foi celebrado logo em seguida.

Diário de batalha
Diário de Guerra (arquivo pessoal)
 

Em outubro do mesmo ano, Salvador e Hermenegilda tiveram a primeira de seus três filhos, Neide Aparecida Figueiredo. E quando o casal imaginava que teria colocado um ponto final na guerra, os reflexos dela começaram a invadir a mente e o corpo de Salvador, deixando muito mais que cicatrizes em sua família.

Neide conta de sua infância com dor e carinho, citando sempre sua brincadeira preferida que fazia com o pai. Ele era apaixonado por ginástica artística, e seu sonho era transformá-la em uma ginasta. Neide conta que treinava com o pai todos os dias, com cambalhotas, piruetas e manobras ensaiadas, reforçando sempre com brilho nos olhos o quanto gostava de ser criança com ele.

Porém, do dia para a noite os surtos repentinos de Salvador começaram a aparecer, e as visitas ao hospital se tornaram cada vez mais frequentes. O médico explicou à família que era normal surgir efeitos psicológicos em pessoas que retornaram da guerra, devido ao grande trauma causado pela batalha, e a partir daquelas palavras, Neide sabia que sua vida nunca mais seria a mesma.

Com tristeza no olhar e dor em sua voz, ela conta que seu pai sempre se trancava em um quarto quando sentia que os acessos de raiva iriam iniciar, Salvador tinha muito medo de machucar a família quando se descontrolava. Ela conta que ele ficava cerca de uma hora sozinho, e tudo que eles podiam ouvir do lado de fora eram gritos de pânico, pedidos de ajuda e sons de coisas sendo quebradas, eram tempos difíceis, em que Salvador quebrou as poucas coisas que a família lutou para ter. Porém, logo que seu pai se acalmava ele saia do quarto, voltava a tocar seu amado bandolim, e a família voltava a fingir uma normalidade perturbadora.

Depois de um tempo, os surtos começaram a piorar, e Hermenegilda voltou ao médico com Salvador, que recomendou que a família se mudasse de casa, visto que eles moravam em um bairro agitado de Osasco, e os barulhos da cidade provocavam reações preocupantes no ex soldado. E assim a família se mudou para Amador Bueno, em uma casa bem afastada e sem vizinhança alguma, e esse foi o início do fim de sua vida. Após a mudança, Salvador teve uma melhora significativa por um período, mas logo após sua terceira filha nascer sua doença se agravou, fazendo com que ele fosse internado em Tremembé.

Em mais um dia de visita rotineira ao marido internado, Hermenegilda notou uma melhora significativa; Já conseguia conversar, perguntar dos filhos e fazer a promessa de que sairia logo de lá. Porém, no instante em que ela entrou no trem rumo a Amador Bueno chegou a notícia através de um soldado enfermeiro de que seu marido havia falecido minutos após sua saída do hospital. No atestado de óbito o diagnóstico indicava morte por neurose de guerra dia 19 de outubro, deixando para trás a mulher, sua filha mais velha de 7 anos, o segundo filho com 4, a caçula de apenas 8 meses, muitas dívidas e uma infância complicada para seus filhos.

Salvador Figueiredo
Salvador Figueiredo se despedindo de sua mãe (arquivo pessoal)
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Neide conta que sua mãe, viúva muito jovem com 29 anos, decidiu ser fiel à memória do marido e nunca mais arrumou outro homem na vida. Apesar disso, a fidelidade trouxe dificuldade, já que Hermenegilda precisava deixar seus filhos sozinhos dar conta de seus dois empregos, fazendo com que Neide, aos 7 anos, fosse responsável por cuidar de seus dois irmãos mais novos e pela limpeza da casa. Além da perda da infância, Neide conta com tristeza no olhar sobre como foi obrigada pela vida a desistir de uma bolsa de estudos aos 14 anos para trabalhar e ajudar sua família. O pai havia deixado diversas dividas médicas com sua partida, e sua mãe não ganhava o suficiente para manter os três filhos. Por mais que ela fale que não se arrepende de ter feito tudo o que fez, diz que sempre imagina os rumos que sua vida teria tomado se seu pai não houvesse sido obrigado a ir para a guerra, se ele não tivesse partido, se ela tivesse aceitado a bolsa de estudos e se tudo fosse diferente.

 

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