Guerra entre Rússia e Ucrânia reacende preconceitos do Ocidente

Além de sanções econômicas, russos têm enfrentado a russofobia, que traz à tona a islamofobia e a sinofobia.
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Isabella Pugliese Vellani
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16/06/2022

Por Isabella Pugliese Vellani

Ainda parecia inacreditável. No Brasil, já passava da meia-noite, mas do outro lado do hemisfério, na gigante Rússia, o sol já raiava. A beleza do dia que se iniciava contrastava com a obscura decisão do presidente do país russo. Depois de meses de tensão entre Rússia e Ucrânia, Vladimir Putin autorizou naquele 24 de fevereiro de 2022 a invasão ao país vizinho e o exército iniciou a chamada "operação militar especial”. O mundo permaneceu - por um momento - imóvel, enquanto tanques de guerra se moviam pelas ruas. Como forma de retaliação à decisão de um conflito armado, diversos países europeus e os Estados Unidos aplicaram sanções contra a Rússia. No entanto, algumas medidas ultrapassaram a represália e evidenciaram o preconceito: a russofobia. Esta, recordou de outras “fobias” que o Ocidente tem contra diversas culturas e religiões, como a sinofobia e a islamofobia.

Para muitos que assistiam vidrados aos jornais, esperando mais informações sobre a guerra, uma palavra parecia novidade perante o vocabulário cotidiano: “sanções”. Escutava-se que elas atingiriam de alguma forma o país que decidiu iniciar a guerra e que, a longo prazo, poderiam afetar a continuidade do conflito, já que aos poucos deixariam os russos sem recursos econômicos. Em entrevista para o Contraponto Digital, a internacionalista Renata Araújo relembra de quando a guerra começou e sua decisão de ficar antenada aos acontecimentos da guerra. Ela comenta que essas sanções não são uma novidade no campo da geopolítica, mas que nunca haviam sido usadas como no atual conflito entre Rússia e Ucrânia. Para ela, além de medidas que atingissem a economia russa, a retirada de multinacionais do país já mostrava o que estava por vir. Mas, não era só a economia que também seria atingida: o preconceito contra os russos, graças à Internet, tornou vunerável ainda mais um povo que sofreria com as ações de seu presidente.

A pesquisadora ainda relembra que os banimentos na cultura na mídia e até mesmo na gastronomia russa começaram a ser observados mundo afora, em um movimento de “cancelamento” do país, se diferenciando de punições estritamente políticas ou econômicas, por exemplo, e atingindo toda a população russa. Toda a movimentação levantou o debate sobre a efetividade das sanções e  começou a tomar força: até que ponto elas não passam a ferir mais a população do que o governo, já que é o povo que acaba sofrendo com consequências desde índices altíssimos de inflação até a preconceito devido ao lugar que nasceram?

Com tantos acontecimentos, poucos param para pensar e analisar a palavra “russofobia”. Fobia. Fobia, aquela que, como explica a psicóloga Solange Ferrari Cianfa, é um medo intenso e irracional por um objeto ou uma situação, que geralmente não caracteriza um perigo real. As pessoas que sofrem com a ansiedade fóbica enfrentam uma angústia diante de objetos e situações ativados do medo e buscam se manter afastados disso. 

De volta ao quadro das relações internacionais, Renata Araújo diz que esse preconceito e a xenofobia são inimigos invisíveis de qualquer guerra e a história comprova isso, como aconteceu na Segunda Guerra Mundial e os episódios de islamofobia após o ataque às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001, em Nova Iorque, nos Estados Unidos.

Entre uma escrita e outra em suas anotações Renata revela que o que se vê atualmente com o conflito é o preconceito dominando mais uma vez o cenário mundial contra a população russa e ucraniana. E por não ser tangível, o preconceito se torna um inimigo difícil de combater e que, às vezes, é deixado em segundo plano. Tudo isso se torna um grande desafio da comunidade internacional, dos órgãos multilaterais, dos governos e até mesmo da sociedade achar formas e mecanismos para eliminar o preconceito.

Mas, o preconceito está enraizado e é presente na história mundial há muito tempo. As raízes da Segunda Guerra Mundial estão no antissemitismo e o combate ao terrorismo após os atentados de 11 de setembro também passam pela questão do preconceito contra a população islâmica.

Para Mauro Orcioli, imigrante saudita que atualmente vive no Brasil, sair da Mesquita é sinônimo de encarar a islamofobia. Inúmeras são as vezes que ele presenciou o preconceito e o ódio explícito contra o povo árabe e o islã, da qual ele faz parte.

Mauro veste sua roupa de oração, o thobe, e revela as brutais falas que já ouviu enquanto usava a vestimenta tradicional de sua religião. “Volta para o seu país, aqui não é seu lugar!”. O saudita, no entanto, tem uma filha nascida no Brasil, mas que também segue os costumes do islã e usa o hijab. O fato de cobrir os cabelos com a vestimenta foi o bastante para ouvir enquanto caminhava pelas ruas da cidade de São Paulo que ela era uma terrorista e o questionamento se ela havia sido comprada, como se fosse uma mercadoria e não uma jovem mulher. 

O imigrante lembra do ataque de 11 de setembro, realizado pela Al-Qaeda que aconteceu em Nova York, e como o preconceito contra seu povo se tornou tão presente a partir daquele dia. Sem fundamento. É assim que Mauro classifica os comentários contra os muçulmanos, que são “colocados em uma mesma panela” do que os extremistas e terroristas. Para ele, não que antes não existisse esse preconceito, mas após o ataque, a ideia de terrorismo sem fundamento foi fixada a um povo de forma completamente descontextualizada  e desumanizada, sem nenhum fundamento. Até figuras públicas que se colocam contra o Islã ganham prestígio. As informações incorretas e sem fundamento  geram um medo sem sentido de um povo que fala em fé e unificação.

Além da islamofobia após o 11/9, outro evento que alavancou a sinofobia, que é o sentimento anti-China, foi a pandemia de Covid-19. A jovem Nathália Tamlyn Ykemoto, descendente de japoneses, conta que apesar do preconceito contra asiáticos existir há tempo, durante a pandemia essa violência piorou. 

Nathália, que comenta sobre o assunto de forma desesperançosa por viver em um País com tantos preconceito, diz que qualquer brasileiro-amarelo, que são as pessoas que descendem de países do leste asiático, já sofreu preconceito alguma vez na vida, mesmo que tenha ignorado ou relevado, e fala que cresceu ouvindo piadas sobre chineses, japoneses, coreanos. 

Para a jovem é um alívio poder dizer que não foi vítima de violência escancarada e física, apesar de ter recebido comentários de ódio durante o auge da disseminação da Covid-19. Ykemoto ainda menciona que no movimento amarelo foi debatido como a pandemia escancarou o fato deles serem minoria na sociedade e vítimas de um preconceito velado. Em uma situação ‘normal’, os asiáticos são modelos de pessoas, mas bastou um evento ruim e fora do alcance de controle de qualquer humano acontecer que passaram de ‘respeitosos’ e ‘inteligentes’ para ‘porcos’, ‘imundos’, ‘nojentos’, ‘estranhos’, e que deviam “voltar para a terra natal e deixar o Brasil em paz” ou até mesmo que “parar de roubar o emprego dos brasileiros”.

Renata Araújo, enquanto realiza mais informações para agregar na conversa, comenta também que o preconceito contra essas culturas pode ser reflexo do medo de quem os comete, que podem temer uma mudança no cenário geopolítico. Para ela, é difícil nomear apenas um motivo para xenofobia. O medo, o desconhecido e a ameaça são, claro, fatores que estimulam o preconceito e o julgamento. Na história mundial, durante a Guerra Fria, por exemplo, grande parte do preconceito contra os soviéticos se originava do medo de que esta pudesse dominar o contexto geopolítico. Questões de identidade, hierarquia ou superioridade racial e cultural e intolerância religiosa entram nessa lista. A internacionalista ainda menciona que a forma como algumas notícias são veiculadas acaba formulando o pensamento da sociedade e, diversas vezes, fomentando o ódio contra determinadas culturas. 

Renata fala sobre como a crise na Ucrânia levantou um debate na comunidade internacional sobre a atenção dada pela mídia internacional a determinados conflitos em detrimento de outros. A Guerra no Iêmen, por exemplo, já dura oito anos e já matou mais de 200 mil pessoas, mas ainda é conhecida como a ‘a guerra esquecida’, já que não ganha quase nenhum destaque e cobertura nos veículos ocidentais, apesar de envolver potências como a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e até participações indiretas dos Estados Unidos e do Reino Unido. Mas, por não ser uma guerra no Ocidente, é deixada para o segundo plano.

Apesar da mídia ser um importante instrumento que “decide” quais guerras e eventos terão destaque, não é a única. A pesquisadora diz que os próprios governos vêm sendo criticados pela hipocrisia, que vem condenando a Rússia como 'vilã', enquanto mantém relações com outros países envolvidos em conflitos. É o caso dos Estados Unidos, que aplicou um grande número de sanções contra a Rússia, mas mantém relações comerciais com a Arábia Saudita, responsável por inúmeros bombardeios à população civil no Iêmen. Ela também menciona que, em relação à guerra entre Rússia e Ucrânia, o futuro dos imigrantes ucranianos ainda é incerto, mas que, de modo geral, observa-se nas últimas semanas uma política de acolhimento migratório muito diferente daquela observada na crise de 2015, com refugiados do Oriente Médio. 

UCRÂNIA

O professor da Universidade de Oslo, Alexandre Addor, diz que os europeus enxergam os ucranianos como “coirmãos”, já que as proximidades geográficas, culturais e raciais os aproximam. Isso pode ser definido como uma “hierarquia de refugiados”, onde o tratamento difere de acordo com a origem. Além disso, a Europa se sensibiliza mais com a Guerra na Ucrânia do que com as guerras no Oriente Médio ou na África no geral. Isso porque é uma guerra no próprio continente europeu e que vem criando impactos diretos na economia e na política local. Mas, isso tudo não significa que ucranianos terão um passe livre ou que esse sentimento de acolhimento será duradouro.

Para Nathália Ykemoto, a mídia não discute cultura, e espera que as pessoas saibam e entendam sobre ela. Tudo o que vem do oriente é visto como ‘estranho’, ‘exótico’ ou ‘diferente’ e as pessoas não procuram ir atrás para entender ou saber como são essas culturas.  A jovem comenta indignada que não à toa, as pessoas acham que todo asiático come peixe cru, ouve kpop, assiste anime, ou acham que toda pessoa marrom é muçulmana ou indiana. Existe um apagamento de culturas orientais e, em contrapartida, uma exaltação da cultura ocidental, mas apenas da Europa e EUA. Esse conjunto de fatores acaba alimentando preconceitos sobre a parte do mundo que não é tão conhecida, como o continente africando, que ninguém nem pensa ou comenta sobre.

Para Mauro, o preconceito contra sua cultura e religião está vinculada à falta de informação da sociedade. O imigrante saudita comenta, ao lado de sua filha, que são poucas as pessoas que buscam uma compreensão do povo árabe, da etnia e cultura religiosa. O preconceito e o ódio vem na frente, chegam antes do “querer aprender”. Não tem como comparar com a busca por estudos de culturas do Ocidente, que são de povos “civilizados e de paz”.

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