Gestão caótica de times populariza ideia de "clube-empresa"

A administração dos clubes de futebol fez torcedores ainda mais críticos e desesperados por uma salvação “personificada” em um formato de gestão diferente da norma brasileira
por
Gabriel Aragão Rodrigues Pereira
|
10/06/2022

Por Gabriel Aragão

 

No Brasil, tradicionalmente as equipes que hoje tem o futebol como principal esporte surgiram como clubes poliesportivos. Basta atentar para os nomes de algumas agremiações do Rio de Janeiro, como os rivais e detentores das maiores torcidas futebolísticas na cidade maravilhosa: o Clube de Regatas Vasco da Gama e o Clube de Regatas Flamengo. Ambos surgiram no fim do século XIX para a disputa de remo, mas foi ao aderir ao futebol que ambos se popularizaram em todas as camadas cariocas e hoje contam com uma imensa base de adeptos em todo país.

Naturalmente o esporte tornou-se o carro chefe desses clubes e de tantos outros. Ainda no Rio, há pelo menos um caso de grande clube que trilhou um caminho inverso. O Fluminense Football Club surgiu no cenário futebolístico para depois migrar para o formato poliesportivo. O Flu, inclusive, contou por longo período de sua história com uma figura clássica deste modelo de time como mascote: o Cartola. Não, o personagem não é o famoso sambista (que, curiosamente, era tricolor), mas sim a alegoria do dirigente elitizado, justamente a posição que tanto se manchou ao longo dos anos.

Neste ano, porém, se torna cada vez mais popular no imaginário do torcedor a possibilidade de sua paixão mais preciosa se tornar um clube-empresa. Muito disso passa por outra peça fundamental no tabuleiro carioca, o Botafogo de Futebol e Regatas. A junção do Club de Regatas Botafogo e do Botafogo Football Club sofria para se manter em operação já havia alguns anos, dando origem à idealização de uma Sociedade Anônima do Futebol (SAF), que se concretizou com a venda da modalidade do clube para o empresário estadunidense John Textor.

A compra de Textor não foi a primeira do Brasil, pouco antes o ex-atacante Ronaldo havia adquirido o Esporte Clube Cruzeiro, que, por sua vez, também não seria pioneiro do País no formato clube-empresa. Inclusive, este formato de uma empresa esportiva com um único dono não é novo nem tampouco o mais bem sucedido no país, sendo este o caso do Red Bull Bragantino, pertencente a empresa de energéticos, Red Bull.

Vale ressaltar que nem todo clube-empresa é uma SAF (já que nem todos estão enquadrados na nova lei), mas toda SAF é um clube-empresa.

Então, ficamos com algumas perguntas: como os cartolas caíram em desgraça? Qual é a diferença dessas estruturas de clube-empresa? Como a Red Bull encontrou sucesso? O que faz os torcedores enxergarem um benefício na venda de seu clube? Quais os benefícios e os malefícios de um clube-empresa?

No folclore do futebol nacional, alguns dirigentes de clubes ficaram mais famosos que os seus jogadores. Nesse sentido é impossível sair do Rio de Janeiro. Castor de Andrade dá o tom do assunto, sendo um conhecido bicheiro que usava de seus benefícios para ser patrono carnavalesco e, dentro do mundo desportivo, bancou o Bangu Atlético Clube. No seu período como cartola, o contraventor ganhou o rótulo de dono da instituição, além de uma homenagem por meio da mascote, um castor, levando a equipe até uma final de Campeonato Brasileiro.

Já sem a influência de Castor, o Bangu caiu no esquecimento de qualquer um fora do Rio, tornando-se um time ainda mais modesto do que já era originalmente.

Mais influente ainda foi o já falecido deputado federal Eurico Miranda. A imagem de fumaça de charuto no ar, acompanhada de uma silhueta no estádio de São Januário, tornou-se uma das mais clássicas do esporte no Brasil. Falastrão e influente, pode-se dizer que Eurico foi até mesmo temido por muitos em seu tempo à frente do Vasco. Já no início da jornada no cruzmaltino, o dirigente fez-se conhecido e ocupou o cargo de presidente por dois longos períodos, enquanto na Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (FERJ) sempre exerceu forte influência.

Com a profissionalização e evolução dos negócios do futebol (a globalização refletida no esporte) figuras folclóricas foram perdendo espaço, ainda que sempre surgisse personagens como Andrés Sanchez (ex-presidente do Sport Club Corinthians Paulista). Embora introduzindo mudanças na forma de conduzir o clube, por exemplo montando um Centro de Treinamento (CT Joaquim Grava) “top de linha”, e limitando a reeleição de presidentes, o que demonstrava uma mentalidade completamente oposta ao passado, no fundo o comportamento geral se pautava pelos mesmos vícios dos velhos generais do futebol.

Fato é, também, que parte da imprensa esportiva melhorou sua cobertura, tanto no que tange ao campo quanto aos aspectos que não influenciam uma partida diretamente. Por tabela, o torcedor passou a consumir mais conteúdo de qualidade e a se preocupar com fatores além do resultado, tão imediatista.

Ou seja, o jogo ficou mais sofisticado. Isso não significa que a forma de ver anterior era anacrônica, mas na verdade o esporte era mais “puro”, mais simples. O jogo evoluiu em aspectos táticos e técnicos e as estruturas acompanharam. Quem nega a evolução, fica para trás e, num ambiente de competição, isso é tudo que se deve evitar.

No entanto, essa evolução não se viu refletida na administração dos clubes de futebol, com grande parte deles se afogando em dívidas, seja por um trabalho inconsequente dos dirigentes, seja simplesmente por roubo e corrupção.

O Cruzeiro foi o exemplo mais claro do segundo caso. Um time multicampeão na primeira metade do século XXI, com ótimas campanhas em Copa do Brasil que, com um elenco experiente e visto como um dos melhores clubes brasileiros, terminou o ano de 2019 rebaixado e iniciou 2020 sufocado por dívidas. Como? Wagner Pires de Sá (presidente), Itair Machado (vice-presidente) e Sérgio Nonato (diretor geral) usaram o dinheiro da equipe para proveito pessoal, levando o clube à beira da falência. Claro, os jogadores não performaram da forma esperada/desejada, porém a sequência da instituição foi afetada profundamente de forma negativa.

Assim surgiu uma luz no fim do túnel, ainda nos primeiros meses de 2022. De forma surpreendente, o ex-jogador Ronaldo Nazário, o Ronaldo "Fenômeno", comprou a SAF Cruzeiro. A compra foi muito comemorada pelos torcedores que viam como um retorno da Raposa ao protagonismo nacional, mesmo que ainda na Série B. Pouco depois, as primeiras rusgas surgiram. Após um aporte financeiro inicial, o empresário e seus parceiros tomaram a decisão de não renovar com o goleiro e ídolo do clube, Fábio, que tinha acerto contratual encaminhado e viu com bons olhos a venda do time. Mais tarde a compra confirmada do goleiro Jaílson foi cancelada na passagem de mãos do quadro diretivo.

Essas movimentações no elenco causaram protestos de torcidas do Cruzeiro e o elenco é longe de ser um dos melhores do Brasil. O que Ronaldo fez até agora foi a solução do dia-a-dia do clube mineiro, com a injeção de dinheiro que livra a equipe de um estrangulamento. A renovação cautelosa, porém, causou problemas externos com um setor da torcida e só no dia 8 de abril a intenção de compra foi oficializada com a assinatura do contrato. Para fazer justiça, no momento a campanha cruzeirense vem sendo histórica dentro da situação do campeonato.

Existem, dentro desse cenário, algumas questões a serem ponderadas. O torcedor que se acostumou a reclamar de uma série de problemas, deve entender que quem comanda no clube já não é mais ele (ainda que nunca tivesse sido, considerando que a tomada de decisões de um clube associativo se reserva à sua cúpula diretiva). Na verdade, essa sensação de que a torcida comanda o clube se deve ao uso que as facções internas da agremiação fazem dos humores do aficionado para pressionar dirigentes adversários.

A partir do momento em que a agremiação passa a ter um dono, o que este comandante quiser que aconteça, acontece. Não existe uma “politicagem” do tradicional associativo que atrapalha os planos de alguns dos poderosos. Isso pode ser bom ou pode ser extremamente perigoso, como apontam diversos casos em países europeus. Na Inglaterra, o Blackpool, Portsmouth e Leyton Orient sofreram bastante nas mãos de donos que só estavam interessados em fazer dinheiro rápido, mas nenhum time é tão lembrado quanto o Sunderland, um time mediano e figura carimbada na Premier League (principal campeonato nacional na Europa) por uma década, já participa de sua quarta temporada seguida na terceira divisão.

Trazendo para a realidade sul-americana, o contexto chileno é da obrigatoriedade do formato clube-empresa. O resultado desportivo é trágico e o único time vencedor de uma Copa Libertadores no país, o Colo-Colo, vive crise financeira. Voltando para Europa, este é um cenário parecido com o que se vive na Espanha (com exceção apenas de Real Madrid e Barcelona) e em Portugal.

Dentro das possibilidades de clube-empresa, a de maior sucesso no Brasil é o Red Bull Bragantino, mas isso levou um bom tempo e a Red Bull inicialmente falhou. A empresa de energéticos que tradicionalmente investe em esportes, falhou ao tentar entrar no país fundando um novo time. Este time, originalmente de Campinas, teve seu ápice na disputa das quartas de final do Campeonato Paulista, mas o projeto (como se vê no exterior) é mais ambicioso. Assim, a Red Bull acabou optando por uma mudança de rumo, ao buscar o Bragantino, clube tradicional do interior de São Paulo, mas que não figurava bem no cenário nacional desde os anos 1990. Após um crescimento relativamente importante, chegando à segunda divisão, mas sem grandes expectativas, foi anunciada a compra do clube pela Red Bull. Desde então o "Massa Bruta" conquistou a Série B e chegou até a final da Copa Sul-Americana em 2021.

Dentro do projeto da empresa existe uma lógica de empresa multinacional, com um diretor esportivo supervisionando todas as equipes e seus líderes espalhados pelo mundo, num modelo que se assemelha às operações de franquia. Na ideia hierárquica, o Leipzig está no topo por ser do maior mercado, enquanto o Salzburg (Áustria) é um espaço de teste no futebol europeu. O caso do Leipzig é bem curioso, na verdade. A legislação alemã não permite que as agremiações tenham um único dono, já que a participação do investidor particular fica limitada a 49%, enquanto os demais associados detém 51% dos votos envolvidos nas grandes decisões do clube (Lei Cinquenta Mais 1).

Para driblar essa regra a Red Bull procurou um clube pequeno naquele. Assim, além de adquirir seus 49% como investidor, também colocou seus funcionários como associados, ficando na prática com o poder total. Não podendo usar sua marca no nome da agremiação, inventou uma nova identidade baseada nas iniciais “RB” para seu time, o RasenBallsport Leipzig (o Esporte de Bola de Gramado Leipzig).

Voltando ao Brasil, a competitividade quase imediata do Bragantino a partir da chegada da Red Bull deturpou a realidade. A expectativa do torcedor médio de um clube que pode ser comprado tornou-se essa, quando na verdade esse crescimento geralmente é lento e complicado. É bem verdade que o amadorismo (ou malandragem) da cartolagem dos clubes tradicionais facilita a vida dos clubes empresa, que gerenciam melhor os investimentos e consequentemente formam equipes mais qualificadas. Em contrapartida, entregar a administração de um time de futebol nas mãos de uma pessoa/grupo que pode ter outros interesses consideravelmente mais lucrativos, tem sérios riscos.

Fato é que não será possível julgar os trabalhos desenvolvidos por Botafogo e Cruzeiro tão cedo, por exemplo. As realidades dos times já são diferentes e a ajuda de seus donos também. Ronaldo é um empresário que se aproveitou da fama de jogador (não que não seja bom no que faz, mas é inegável que portas foram abertas por isso). Textor, por sua vez, fez sua fortuna sem ser tão famoso. Nessa briga o estadunidense tem mais dinheiro e menos resistência dentro do Botafogo, logo tem maior facilidade para trabalhar e mais capacidade de investimento.

No fim das contas, a Lei de SAF pode ser tanto favorável como prejudicial. Para Botafogo, Cruzeiro e Vasco (que conta com intenção de compra da 777 Partners e aguarda aprovação), por exemplo, não existe malefício na venda, considerando a realidade condenada deles. Para um clube como o Santos ainda existe salvação em uma melhora na articulação do clube associativo, não sendo necessária uma venda neste momento.

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