Em meio a pandemia de Covid-19, uma das profissões que mais se destacou e consolidou a relevância de seus profissionais para o funcionamento da sociedade foi a Enfermagem. Atuando na linha de frente do combate à pandemia, estes profissionais ainda enfrentam diversas questões organizacionais e sociais perante o exercício da profissão, sendo o gênero uma das mais relevantes.
No Brasil, mais de 80% dos profissionais de enfermagem são mulheres, segundo pesquisa do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Ainda que componham a considerável maioria da categoria, as mulheres enfermeiras ainda enfrentam a sobrecarga de uma dupla jornada de trabalho, além de carregarem consigo estereótipos e paradigmas da profissão.
Historicamente vinculada ao gênero, desde sua implantação no Brasil, a enfermagem continua a reproduzir ações e valores igualmente ligados ao universo feminino e, por consequência, também reproduz as opressões sofridas pela classe.
Mulheres enfermeiras enfrentam a discriminação sofrida pela profissão e o machismo - pelas duas vertentes, profissional e social. Subestimando e desvalorizando a categoria, a sociedade vê a enfermagem como a profissão das mulheres e a medicina como a dos homens. Sendo a profissão das mulheres, imediatamente a enfermagem é vista como inferior e menos relevante - com a máxima “o médico cuida da doença, o enfermeiro do paciente” -, visto que a mulher historicamente não está vinculada (ou incentivada) ao exercício de uma profissão - salvo engano, as duas profissões possuem sua relevância e importância e caminham lado a lado.
Com “A mulher na sociedade de classes” a socióloga brasileira Heleith Saffioti pontua que “as mulheres, muito mais do que os homens, não são preparadas para o exercício de uma profissão”, e por muito tempo, quando foram preparadas, tais incentivos acabaram por guiarem-se apenas as profissões tidas como delicadas, sutis, ou até mesmo maternais - características ligadas às mulheres, é a divisão sexual do trabalho posta em prática.
A estudante de enfermagem Ana Lucia Marques, da UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo), também pontua que a profissão é vista como inferior e feminina na sociedade como um todo: “acredito que é extremamente cultural, todos cresceram vendo médicos, na sua grande maioria homens, em novelas, séries e etc., nada virado a enfermagem” e continua sobre a questão do machismo intrínseco na profissão: “quando se direcionam a enfermagem é tudo como inferior em diversas ocasiões, além da grande erotização que às vezes é retratada”. Em dezembro de 2020, o Coren-MG sentiu-se na necessidade de lançar uma campanha contra o assédio sexual à categoria, confirmando a fala de Ana Lucia. A erotização dessas mulheres também pode ser confirmada com uma simples pesquisa no Google sobre fantasias de enfermeira: você receberá resultados de uma imagem extremamente sexualizada e constrangedora das profissionais de enfermagem.
A jornada de trabalho também é uma discussão importante da categoria. As mulheres enfermeiras acabam sofrendo com a dupla jornada de trabalho - contando que a carga horária do trabalho profissional já é muito pesada, elas estendem a jornada com o trabalho doméstico. A enfermeira Claudia Maria Andrade, do setor de Nefrologia dentro da Cardiologia do Incor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da FMUSP), destaca: “Infelizmente temos um grande número de profissionais com Burnout, muitos profissionais têm dois empregos, a faixa salarial é baixa. Além de dois empregos muitas têm tarefas domésticas pois são casadas e têm filhos. Com esta realidade temos um número de profissionais estressados.” e continua sobre as lutas da profissão: “Estamos lutando pelas 30 horas. A enfermagem muitas vezes têm sua profissão confundida com o sacerdócio, as pessoas acham estranhos quando lutamos pelos nossos direitos, através de greves ou outras reivindicações. A maioria de nós tem hora para iniciar o trabalho mas não temos hora para terminar”. A proposta de lei que estabelece 30 horas semanais de trabalho aos profissionais da enfermagem ainda não foi aprovada. Essas mulheres trabalham cerca de oito horas por dia, em uma jornada cansativa, e ao fim do expediente precisam lidar com o trabalho doméstico, historicamente ligado às mulheres.
É evidente que mulheres profissionais da enfermagem possuem muitas questões para serem resolvidas e objetivos para lutar, assim como toda a categoria. Mas, em todas essas questões, o gênero se sobrepõe, sendo ele inseparável da luta por melhores condições no exercício da profissão. É preciso olhar para estas profissionais, que também cuidam de outras mulheres, e são imprescindíveis para o funcionamento de um hospital e, consequentemente, da população.
Em meio a pandemia, o cenário torna-se ainda mais preocupante, colocando a saúde física e mental dessas profissionais em risco. O trabalho feminino nos hospitais deve ser visto por outra ótica, contando sempre com as questões de gênero que as afetam duplamente: no pessoal e no profissional.