Futebol: como destruíram a essência do esporte mais conhecido do mundo

A catarse mítica do passado já não existe e o futuro revela uma realidade cada vez mais obscura.
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Texto: Guilherme Silvério Tirelli | Audiovisual: Maria Eduarda de Souza Magalhães
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29/06/2023

Por Guilherme Tirelli (texto) e Maria Eduarda Magalhães (audiovisual)

 

Do lado de dentro do estádio, o cheiro da pipoca amanteigada percorre os corredores das arquibancadas e o som ambiente, característico de um dos palcos mais esplêndidos da cultura popular, dá voz aos torcedores. Nas tribunas lotadas, os olhares atentos que não se desvencilham dos embates intrínsecos nos gramados. Os melhores jogadores do mundo reunidos em campo, prontos para protagonizar jogadas que ficarão guardadas por muito tempo na memória de milhões de adeptos. Ainda assim, nada se compara com a emoção de um gol, expressa através do som uníssono de milhares de vozes. Nem mesmo nas composições clássicas e icônicas de Beethoven existiria uma sincronia tão perfeita. Uma atmosfera sem igual, um caldeirão dentro do qual inúmeros corações encontram-se em sintonia com outros tantos atrás de uma televisão. No passado, a maioria dos atletas dava o sangue pela vitória e lutava por cada bola. No entanto, a contemporaneidade trouxe à tona uma realidade bem distinta daquilo que a torcida se acostumou a ver. Do lado de fora das arenas, o futebol começa a dar mostras de esgotamento, escassez e derrota ética.

Cada dia mais a essência se perde. Os escândalos trouxeram uma camada cinza que recobre as disputas. Manipulação de resultados, apostas esportivas combinadas, recorrentes casos de violência e abuso sexual e, mais recentemente, o sportswashing. Todas essas conjunções escancaram uma vertente vexatória e triste do esporte, além de mostrar toda conotação mercadológica que ganha as manchetes das mesas redondas. Enquanto isso, os empresários da bola expõem que o futebol vistoso praticado nos primórdios do esporte, está prestes a ser engavetado, assim como os livros e filmes históricos.

A política ganhou o espaço da magia. O Brasil deixou de ser o "País do Futebol", se é que algum dia realmente foi. Na década de 50, Garrincha encantava os brasileiros com dribles inéditos e extraordinários. Durante anos, o gênio das pernas tortas dividiu o protagonismo com Pelé que, por sua vez, rompeu paradigmas e ganhou sua primeira Copa do Mundo com apenas 17 anos. Além disso, o Rei quebrou todos os recordes da época e instaurou uma verdadeira dinastia dentro de campo. Contudo, todo esse encanto parece mesmo ter ficado no passado, já que o presente se tornou mais uma faceta da Indústria Cultural e da Sociedade do Espetáculo, que opta pelo lado comercial, em detrimento da esfera esportiva.

O futebol vistoso de Pelé
O futebol arte está morrendo - Fonte: Getty Images

Em contraste com os preços exorbitantes cobrados pelos cambistas, ficar horas nas filas de espera era mais do que um passatempo, mas sim um ritual. Para os mais fanáticos, colocar a camisa da sorte do lado avesso no domingo de jogo e criar toda uma superstição poderia significar a diferença entre a vitória e a derrota. O trajeto até o estádio era capaz de proporcionar um sentimento de êxtase que duraria dias ou até semanas. Nunca um esporte mexeu tanto com o coração do torcedor como o futebol. Guerras foram interrompidas por sua causa. Tragédias que marcaram época se transformaram em histórias de superação e voltas por cima, igualmente notáveis. Para quem testemunhou de perto essa era e vivenciou uma catarse mítica todas as vezes que acompanhou os 90 minutos de uma partida, voltar às arenas hoje, remonta a um sentimento de desilusão.

A questão do Sportswashing:

Também do lado de fora do gramado, um dos aspectos mais ultrajantes e nojentos da história do esporte: o sportswashing. Devido a um contexto político tenso e conturbado, países do Oriente Médio compraram diversos clubes europeus nos últimos anos para, de certa forma, manipular o senso comum e desviar os olhares do público para leis abusivas que não pregam a igualdade de gênero e ferem os direitos humanos. Enquanto o autoritarismo reina, torcedores do Manchester City comemoram a conquista da Champions League pela primeira vez e o Paris Saint Germain (PSG) mantém sua soberania na França ao ganhar a Ligue 1 pela nona vez em pouco mais de uma década. 

Os franceses, inclusive, roeram unhas no fim do ano passado durante a final da Copa do Mundo, no Qatar. O país da Península Arábica, sem tradição nenhuma no esporte, sediou o evento mais importante do futebol internacional antes dos norte-americanos. A princípio, a ideia dos grandes cartolas da FIFA era promover uma relação de "paz" entre duas das principais nações globais: Estados Unidos e Rússia, de modo que um sediaria o torneio logo após o outro. Contudo, a entidade priorizou o Qatar, após incontáveis promessas. Os árabes, levantaram uma dúzia de estádios luxuosos em tão pouco tempo, sem qualquer problema financeiro ou de logística. Inegavelmente, o dinheiro é capaz de comprar um universo de bens materiais, entretanto, não tem o poder de florescer sentimentos.

Sobre o fenômeno do sportswashing, o professor Dr. José Paulo Florenzano pondera que o buraco é mais fundo do que se imagina.

 

Quando um gigante europeu como o Chelsea gasta mais de 600 milhões de euros em um único ano, o espírito do jogo se esvai. É possível comprar os jogadores mais badalados do mundo, mas não os torcedores. Os figurões de terno e gravata que tomam as decisões fora do campo não simbolizam o fervor marcante do futebol, apenas instauram uma nova política do pão e circo. Na Roma Antiga, os governantes distribuíam gratuitamente migalhas de trigo à população durante espetáculos públicos. Nas arenas, o entretenimento era garantido através de duelos entre gladiadores. Consequentemente, por um momento, o povo esquecia os problemas sociais como a insegurança e o desemprego. Logo, o que se pode extrair do sportswashing é que, há tempos, é o dinheiro quem comanda o esporte.

Escândalo da manipulação de resultados:

Colocar o meião e a chuteira na mochila e partir rumo à capital. O sonho da maioria dos meninos Brasil afora é se tornar jogador profissional. Dentre os tantos que tentam a sorte, pouquíssimos terão o privilégio de passar pela peneira e conquistar o sucesso que almejaram durante toda a infância. Por outro lado, outros milhões de devaneios e histórias ficam pelo caminho. Esses "fracassados" dariam a vida pela chance de jogar nos palcos mais emblemáticos do nosso País. O Maracanã, por exemplo, simboliza um dos berços do futebol brasileiro. Na Neo Química Arena e no Mineirão, a torcida pulsa intensamente. Por fim, no antigo Pacaembu, muitos confrontos se transformaram em lenda, tal qual aconteceu no Morumbi, São Januário, Vila Belmiro e outros templos históricos.

Apesar disso, esse fenômeno esotérico de jogar futebol se foi – ou está indo – ralo abaixo. Nos últimos meses, a operação Penalidade Máxima, constatou que 16 jogadores brasileiros fizeram parte de um esquema de apostas esportivas. Ao todo, a Justiça investigou várias partidas do Campeonato Brasileiro da Série A e outras competições, decretando, em primeira instância, a suspensão de alguns dos atletas. Naturalmente, clubes tradicionais como o Athletico Paranaense e o Guarani rescindiram o contrato daqueles que estavam envolvidos no esquema.

Por mais surpreendente que possa soar, escândalos de manipulação esportiva não são inéditos no futebol. No Brasil, em 2005, a “Máfia do Apito” cooptou o árbitro Edílson Pereira de Carvalho que teve onze de seus jogos anulados. Durante as investigações, o empresário Nagib Fayad também foi preso. Por outro lado, na Itália, o campeão do mundo de 1982, Paolo Rossi, foi um dos 27 atletas que participaram do Totonero. O centroavante ficou dois anos suspenso no início da década, o que quase colocou em risco sua participação na Copa do Mundo.

Justiça e a manipulação esportiva
Justiça determina o início das investigações - Fonte: Getty Images

Finalmente, em 2006, outro episódio abalou a Europa. Novamente no Campeonato Italiano, houve suborno a alguns árbitros para que beneficiassem equipes específicas. Dirigentes e membros da Federação Italiana também estiveram envolvidos, o que aumentou os holofotes para o caso. O futebol mais uma vez ficou de lado, ao passo que a Juventus, campeã nacional daquele ano, foi rebaixada para a segunda divisão.

Preconceito no futebol:

Lamentavelmente, casos de racismo são recorrentes e têm assolado o mundo do esporte há muito tempo. Um exemplo recente que repercutiu bastante foi o episódio envolvendo Vinicius Junior. Em diversas ocasiões, o jogador brasileiro foi alvo de insultos racistas por parte de torcedores adversários, tanto durante as partidas quanto nas redes sociais. Esses atos repugnantes revelam a persistência de preconceitos arraigados na sociedade, mesmo em um ambiente que deveria promover igualdade, respeito e somente a competição.

O talentoso atacante do Real Madrid, foi vítima de discriminação racial em jogos na Espanha. O último deles ocorreu no confronto contra o Valencia. No fim do jogo, o ponta-esquerda, emocionalmente abalado, foi expulso após se envolver em discussão com alguns oponentes. O evento causou grande consternação e indignação no mundo do futebol e ressalta a urgência de combater o racismo, não só dentro do esporte, como também na sociedade em geral.

Entretanto, Vinicius Junior é apenas um dos atletas que enfrentam preconceito no meio. Outros astros internacionais, como Marcus Rashford, Raheem Sterling e Kalidou Koulibaly, também têm sido alvos frequentes de insultos racistas em diferentes competições ao redor do mundo. Apesar dos avanços na luta contra o racismo, esses casos recentes demonstram que ainda há muito a ser feito para erradicar de vez essa questão.

Vinícius Junior é vítima de racismo
Vini Jr novamente é vítima de racismo na Espanha - Fonte: Jornal O Povo

Protagonismo sombrio fora das quatro linhas:

A violência sexual é mais um problema alarmante que afeta o mundo da bola. Infelizmente, casos chocantes envolvendo abusos e agressões sexuais também vêm manchando a reputação do esporte. A repercussão dos últimos casos evidencia a impunidade quanto a esse tema no passado. Um exemplo notável que reforça essa problemática é o de Robinho, ex-atacante da seleção brasileira e de gigantes europeus, condenado em 2017 pela justiça italiana. De acordo com os autos do processo, o atleta participou de um estupro coletivo em 2013, porém continuou a atuar no futebol brasileiro após condenação em primeira instância. Esse fato deu início a uma série de discussões acerca da falta de punição para  jogadores envolvidos em crimes tão graves.

Nesse sentido, talvez um dos primeiros casos mais expressivos foi o de Cuca, condenado na Suíça em 15 de agosto de 1989. Na época, o treinador jogava pelo Grêmio e foi acusado de cometer abuso sexual em 1987. Da mesma forma que Robinho, o atleta continuou atuando profissionalmente. Além do mais, por décadas treinou clubes brasileiros de prestígio, como Palmeiras, Atlético Mineiro e São Paulo. O técnico, praticamente não sofreu represália por parte de dirigentes, torcedores e cúpula dos clubes.

Todavia, nos últimos anos, o jogo parece estar virando. No caso de Cuca, ainda que tardiamente, a justiça foi “feita”. Por pressão externa da torcida, pediu demissão do comando do Corinthians após apenas duas partidas em 2023. Já na Inglaterra, Mason Greenwood, prodígio do Manchester United, teve seu contrato suspenso após ter sido acusado por crime sexual. Além dele, o islandês Gylfi Sigurðsson, ex-Everton, foi mais um jogador que teve seu nome ligado a esse tema e saiu de cena após o episódio. Para terminar, o caso de Daniel Alves é o mais representativo nos últimos meses. Um dos ídolos do Barcelona, o lateral também foi acusado por violência sexual, em processo que tramita na Espanha. O tempo entre o ocorrido e a prisão preventiva foi de menos de um mês.

Embora o panorama esteja evoluindo,  é crucial que as autoridades competentes continuem tratando o assunto com seriedade e cuidado. A fim de combater esse cenário alarmante, é fundamental encorajar as vítimas a denunciar os episódios e garantir uma investigação imparcial. Também é imprescindível promover uma mudança cultural dentro do futebol. Só assim, será possível construir uma imagem íntegra e ética sobre o esporte mais popular do mundo. Acima de tudo, é preciso responsabilizar os culpados pelos seus atos, independente de quem sejam.

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