O litoral Norte de São Paulo é um exemplo de como os interesses econômicos alteram a geografia física e social de uma cidade. Donos de imobiliárias buscam a flexibilização dos planos diretores municipais para que possam construir mais casas de alto padrão em faixas litorâneas e em áreas de proteção ambiental. Isso empurra pessoas pobres para áreas de risco. Em fevereiro deste ano, deslizamentos de terra em São Sebastião, exatamente nessas áreas, deixaram 64 mortes e centenas de desabrigados.
O problema ocorre em toda a região. Em Caraguatatuba, o plano diretor aprovado no dia 19 de janeiro de 2023, diminui as áreas de preservação da cidade, transformando-as em loteamentos de alto padrão e prédios comerciais. As terras que serão entregues nas mãos das imobiliárias são áreas úmidas, ou seja, que possuem alto risco de inundação e deslizamentos.
As regiões de Mococa e Tabatinga, que serão afetadas, são consideradas de extrema importância para conservação, de acordo com o plano de manejo do Parque Estadual da Serra do Mar. Isso se deve à biodiversidade e por abrigar diversas espécies em risco de extinção.
Um estudo realizado em Março de 2021 identificou que, nas duas áreas de reserva ambiental que se tornarão loteamentos, existem 1310 espécies de plantas, 84 de répteis, 76 de anfíbios, 112 de mamíferos, 10 de crustáceos e 450 espécies de aves. Destas, mais de 80 estão em risco de extinção.
Desde a aprovação do novo Plano Diretor de Caraguatatuba, um abaixo assinado registrou mais de 28 mil assinaturas contrárias à destruição das regiões de preservação.
Já em Ubatuba, os debates sobre a alteração do Plano Diretor da cidade foram suspensos por dois meses pelo Ministerio Público Federal por falta de representantes civis nos conselhos deliberativos.
Apesar do Ministério Público Federal recomendar que os debates prosseguissem com a presença de uma parcela da população, o Plano Diretor de Ubatuba foi alterado sem a participação de seus habitantes.
O MPF destacou que a falta de representatividade dos moradores da cidade “fragiliza a defesa de demandas sociais e impede uma verdadeira gestão compartilhada e democrática de questões coletivas como as que estão em debate na revisão do plano diretor”.
Além da preocupação da população com o desmatamento de áreas preservadas, os habitantes do litoral Norte receiam que o trânsito nas cidades piore.
O crescimento na quantidade de carros, além de piorar a mobilidade das pessoas, é o principal agente poluidor dos oceanos. Os automóveis produzem gases do efeito estufa e derramam óleo no asfalto, que vão parar no mar após passar pelo processo de vaporização.
Impacto no ecossistema local
O litoral Norte, por conta da Serra do Mar, já possui características chuvosas, porém o aquecimento global intensifica a quantidade e o volume destas chuvas. “Os deslizamentos, na região, são naturais. O problema é que com a ocupação humana, a tendência do deslizamento aumenta”, explica Guilherme Borçal, professor de Geografia Física da Unicamp.
Ele acrescenta que os deslizamentos acontecem devido à população de baixa renda ter sido obrigada a se mudar para regiões onde o risco de deslizamentos já era alto. “É o pobre que por conta da especulação imobiliária, pelo baixo salário, é empurrado para áreas onde o terreno custe o que lhe for acessível”, alega.
Além disso, o professor destaca a influência do alto preço do terreno no litoral Norte. “Possui o metro quadrado médio ao preço de 10 mil reais”, diz. “Por isso, ele acaba indo aos lugares mais baratos para construir, e estes lugares são mais baratos justamente pelo alto risco”, completa.
Quando uma família compra, ou ocupa, um terreno de encosta para construir, o processo de desmatamento é uma consequência. Isso agrava o problema dos deslizamentos, pois o solo da região se expõe, acelerando o processo de absorção da água pelo solo e tornando-o mais estável. Com isso, o peso das construções no solo escorregadio aumenta significativamente o risco dos deslizamentos, que já era elevado.
É preciso uma atuação mais forte por parte das autoridades para garantir que os interesses das grandes construtoras não sejam priorizados em detrimento da população local. Medidas como o zoneamento urbano, a criação de leis que regulamentem o uso do solo e a fiscalização rigorosa das obras podem ajudar a controlar os impactos negativos da especulação imobiliária na região.
Especulação imobiliária na Barra do Sahy teve influência no desastre de fevereiro
Na Vila Sahy, a enchente no dia 19 de fevereiro resultou em deslizamentos de terra na Serra do Mar e, somado à falta de planejamento urbano e à redução constante dos recursos para emergências climáticas, ocasionou a destruição de diversas residências e resultou em 65 óbitos.
Paulo Silva foi atingido pela tragédia e afirma se sentir impotente diante do acontecido. “Perdemos tudo o que tínhamos. É uma sensação de impotência muito grande, não saber o que fazer ou para onde ir.”
Ele diz esperar ser contemplado com uma moradia em algum dos conjuntos habitacionais que estão sendo construídos nos bairros Maresias e Baleia Verde. “Enquanto isso, estamos tentando nos reerguer e reconstruir nossas vidas aos poucos. É um processo difícil e doloroso, mas estamos mantendo a esperança.”
Enquanto não consegue uma moradia permanente, Paulo está abrigado na casa de amigos.
“Nos acolheram com muito carinho e solidariedade. Mas a gente sabe que essa não é uma solução permanente e estamos ansiosos para poder reconstruir nossa vida em um lugar seguro”, alega.
Segundo Marina Fontanelli, mestre em História Política e Social pela FGV, parte da culpa pela tragédia no Litoral Norte se deve à especulação imobiliária promovida pela construção da Rio-Santos.
Construída no período da ditadura militar, a rodovia foi responsável pelo deslocamento de centenas de famílias, que foram retiradas à força da costa litorânea. Os caiçaras que trabalhavam com a pesca, plantio de banana, e agricultura de subsistência, foram forçados a ocupar a região das encostas da Serra do Mar.
Fontanelli afirma que esse “crescimento econômico impulsionado pela construção de pousadas, shoppings e centros de lojas” favoreceu os fundos imobiliários que lucram com as especulações dos imóveis nas regiões litorâneas parte deles.
Sandra Mariseia concorda que essa situação tenha intensificado a tragédia em seu bairro. “Com isso, a natureza vai revidando. O que aconteceu aqui na Vila Sahy é consequência dessa irresponsabilidade”.
Tanto Marisa quanto Paulo Silva defendem que é preciso regulamentar a especulação na região com a implementação de leis mais rigorosas de ocupação do solo e que os órgãos de fiscalização e controle sejam fortalecidos.
Histórico de omissão
De acordo com o Tribunal de Justiça de São Paulo, ainda em 2013 a prefeitura do município fez uma reunião para a regularização e implementação de conjuntos habitacionais na Vila do Sahy. Porém, documento da 1ª Vara Cível de São Sebastião, destaca omissão por parte do poder público no local e classifica a cidade como “despreparada”.
“Sem infraestrutura nem oferta habitacional adequada, sem oferta de empregos suficiente para a demanda populacional, caracterizada por invasões politicamente orientadas, ocupações irregulares e um crescimento desordenado, especialmente das periferias, uma notável insegurança da posse envolvendo os moradores, além de diversas irregularidades urbanísticas”, registra.
Segundo reportagem do G1, em 2020, uma inspeção do Ministério Público Estadual identificou obras e áreas com risco de deslizamento na Vila Sahy. Na vistoria, foi examinado o plano da prefeitura de regularizar a situação das habitações. Na época, o MP entrou com uma ação civil pública na justiça para cobrar ações da prefeitura, que implica na disponibilização de serviços básicos como água e luz, urbanização, liberação das áreas de risco e a devida fiscalização.
Na inspeção, os técnicos constataram problemas como “uma ocupação invadindo a encosta da Serra do Mar e degradando a mata, e desestabilizando o terreno, criando condições de risco de deslizamento", comercialização de terrenos em área restrita e movimentação do solo como consequência do desmatamento.
Apesar da ação, não houve mudanças.