Feiras de rua resistem no Jardim Vitória Régia

Comércio popular sobrevive em meio a era das compras por aplicativos.
por
Matheus Santariano
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07/10/2024

Por Matheus Santariano

 

Em meio ao caos e ao concreto da cidade de São Paulo, onde os prédios modernos e o trânsito incessante dominam a paisagem, um pedaço da cultura brasileira continua a pulsar, escondido em cada esquina de bairro. Na região do Jaraguá, mais precisamente no bairro Jardim Vitória Régia, Zona Oeste da cidade, uma tradição se mantém viva. Enquanto a maioria das pessoas ainda dorme, a feira de rua começa a ganhar forma. Logo cedo, os feirantes montam suas barracas, e, antes mesmo do sol nascer, o cheiro inconfundível de pastel e caldo de cana já toma conta do ambiente. Para muitos, o cenário parece uma viagem ao passado em meio à modernidade de São Paulo. Essas feiras de rua não são apenas um ponto de comércio. Elas são símbolos de resistência cultural e social, ecoando a convivência comunitária de gerações inteiras. Em uma cidade onde os grandes supermercados e os aplicativos de delivery conquistam cada vez mais espaço, as feiras de rua mantêm uma essência única, quase imutável. A sensação de caminhar entre barracas, observar a variedade de produtos expostos e se deliciar com o pastel frito na hora cria uma experiência que resiste ao tempo. Para alguns, a feira representa uma conexão com as raízes; para outros, um momento de escape em meio à correria urbana.

No bairro Jardim Vitória Régia, uma dessas figuras de resistência é Seu João, que há mais de duas décadas mantém sua barraca de pastel. Ele não vê a feira apenas como seu local de trabalho, mas como um espaço onde ele interage com a comunidade e reforça laços com as famílias do bairro. Muitas das crianças que anos atrás vinham acompanhadas de seus pais, hoje aparecem com seus próprios filhos, mantendo viva essa tradição. Seu João já viu o bairro se transformar, e cada dia na feira traz um pouco de nostalgia, onde ele pode observar essa continuidade que passa de geração para geração. Esse envolvimento emocional com a feira não é exclusivo. Marlene, que há 8 anos ocupa sua barraca de frutas e verduras, também encontrou nesse espaço um sentido de pertencimento. Para ela, mais do que vender, a feira é um lugar onde ela interage com seus vizinhos, conhece histórias e compartilha parte da sua. Embora ela tenha começado por necessidade, o ambiente a cativou, e hoje, sua barraca é ponto de encontro para aqueles que buscam a qualidade e a confiança dos produtos que oferece. Ela viu muitas famílias crescerem, jovens se tornarem adultos, e percebe como a feira é mais do que uma simples transação comercial, ela é um traço vivo do bairro. Em meio à agitação da manhã de sábado, a feira do Jardim Vitória Régia fervilha com vida. Desde as primeiras horas do dia, barracas de frutas, legumes, peixes e, claro, pastéis, são preparadas para atender uma clientela fiel. O som das conversas, o chiado do óleo quente e o vai e vem de moradores criam uma sinfonia familiar, que muitos associam ao aconchego e à simplicidade das tradições. E no centro de tudo isso, os feirantes, como João e Marlene, sustentam essa dinâmica de comunidade que parece resistir às transformações tecnológicas e ao crescimento desenfreado da cidade.

Mesmo com a forte concorrência dos supermercados e dos aplicativos de entrega, a feira resiste, pois oferece algo que esses novos formatos de comércio não conseguem reproduzir: o contato humano. A experiência de escolher com calma as frutas frescas, discutir o preço dos legumes e conversar com o feirante sobre a melhor forma de preparar determinado alimento é algo que só a feira proporciona. O pastel frito na hora, crocante e quente, não é só uma refeição rápida, mas um ponto de conexão entre quem faz e quem consome. Seu João entende que o pastel é o carro-chefe de sua barraca, mas o que realmente o diferencia é o carinho e a atenção com que ele trata cada pessoa que se aproxima.

E não são apenas os moradores antigos que frequentam a feira. O estudante universitário Pedro, que se mudou recentemente para o bairro, a descobriu quase por acaso, ouvindo comentários de vizinhos quando estava no onibûs voltando da faculdade. Ele rapidamente se encantou com o ambiente acolhedor e a sensação de pertencimento que o lugar proporciona. Pedro percebeu que a feira não era só um local para comprar frutas ou pastel, mas uma porta de entrada para conhecer a comunidade. Diferente do ritmo impessoal de compras em supermercados ou pelo celular, ali ele encontrou algo genuíno, algo que o fez voltar todos os sábados. Carla, por outro lado, representa uma tradição familiar que atravessa gerações. Desde pequena, seus pais a traziam para a feira, e hoje, mesmo com a vida adulta ocupada e a rotina corrida, ela faz questão de reservar um tempo para saborear o pastel do Seu João. Para ela, não é só o gosto que a faz voltar, mas as memórias que se misturam ao sabor e ao cheiro do óleo quente. É a sensação de pertencer a algo maior, de manter viva uma parte de sua infância e, quem sabe, um dia passar essa tradição para seus próprios filhos.

Entretanto, o caminho não tem sido fácil para os feirantes. A pandemia de COVID-19 impôs desafios significativos. Com as ruas vazias e o medo do contágio, muitos feirantes enfrentaram uma queda brusca nas vendas. Seu João e Marlene, por exemplo, precisaram se adaptar rapidamente, incorporando medidas de segurança, como uso de máscaras e álcool em gel, enquanto tentavam encontrar formas de atrair a clientela que hesitava em sair de casa. Durante os meses mais duros, muitos feirantes chegaram a considerar abandonar suas barracas, mas a força da comunidade e o apoio dos clientes fiéis os ajudaram a continuar. Aos poucos, as feiras voltaram a ganhar força, mas o impacto da pandemia ainda é sentido. A competitividade com o comércio digital, que se intensificou nesse período, trouxe uma nova camada de desafios. Porém, feirantes como Seu João acreditam que o que fazem vai além do simples ato de vender um produto. A feira é uma experiência, uma forma de vida que mantém vivas as tradições e cria laços entre as pessoas. E enquanto houver quem valorize essa experiência, a feira de rua continuará a ser um símbolo de resistência em meio ao frenético avanço da modernidade.

Aos domingos, bem próximo à Estação Jaraguá, uma feira toma conta das ruas desde as primeiras horas da manhã. O cenário por ali é marcado pelo som dos trens ao fundo e por um ritmo que não cessa. A feira próxima à estação tem uma energia singular, em grande parte devido ao movimento constante de pessoas que chegam e partem, aproveitando as primeiras horas do dia para fazer suas compras. O ambiente se mistura ao fluxo de passageiros que descem do trem e se deparam com as barracas coloridas, oferecendo de tudo, de frutas frescas a peixes e carnes, em uma profusão de cheiros e sons que preenchem o ar. Entre as barracas, destaca-se a de Dona Lourdes, que há anos vende legumes e verduras no local. Ela se orgulha da qualidade e do cuidado de seus produtos. Para ela, a feira é muito mais do que um meio de sustento. É um espaço de troca, onde conhece a maioria dos seus clientes pelo nome. Apesar do movimento intenso e da rotina puxada de acordar antes do amanhecer, ela mantém o sorriso no rosto, sabendo que ali construiu laços que vão além do comércio. Muitos clientes, segundo conta, retornam semana após semana, mantendo uma fidelidade que as grandes redes de supermercados não conseguem competir. A feira do Jaraguá, como tantas outras espalhadas pela cidade, é um retrato da convivência comunitária, que, mesmo em meio à pressa moderna, resiste firmemente.

Já na Zona Norte, a feira da Avenida Maestro Villa Lobos, próxima ao Metrô Tucuruvi, acontece todas as terças-feiras e tem uma dinâmica um pouco diferente. Em meio à semana, o público é majoritariamente de moradores que vivem nas proximidades, buscando abastecer suas casas com produtos frescos e acessíveis. A atmosfera por ali é menos apressada, com os moradores do bairro caminhando com calma, conversando com os feirantes e escolhendo com cuidado o que irão levar para casa. Aqui, é comum ver os mesmos rostos semana após semana, em um ciclo que parece imune às mudanças frenéticas da cidade grande. Entre os vendedores, Dona Rosa se destaca com sua barraca de tapioca. Há quem diga que ela tem mãos de ouro, pois suas tapiocas estão sempre gostosas. Dona Rosa, é feirante há 11 anos e considera sua banca uma maneira de trazer um pouco de vida e sabor para o cotidiano de quem passa por ali. Apaixonada por culinária, ela gosta de conversar sobre as melhores maneiras de cozinhar e, entre uma venda e outra, troca dicas e histórias com os clientes. A feira do Tucuruvi, apesar de mais tranquila, mantém essa essência de contato humano e calor comunitário, algo cada vez mais raro nas grandes metrópoles.

Essas feiras, como a do Jaraguá e a do Tucuruvi, são mais do que apenas pontos de venda. Elas simbolizam uma rede de afeto e convivência, onde a economia local se mescla com histórias pessoais. Seja na correria de um domingo ou na tranquilidade de uma manhã de terça-feira, as feiras são um reflexo de uma São Paulo que insiste em manter suas raízes, mesmo diante das constantes transformações da cidade.

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