As esquinas também são ambientes de trabalho e de arte

A realidade de quem está na rua no dia a dia quase sempre passa despercebida
por
Fernando Muro Schwabe
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28/10/2024

Por Fernando Muro Schwabe

 

Eles fazem parte do cotidiano da cidade. Estão sempre ali, a cada esquina. Na maioria das vezes, na loucura do dia a dia, passam despercebidos como qualquer outra pessoa. Mas estão ali, sob a faixa de segurança, entre bolas, clavas, facões e outros objetos, o intuito é o mesmo: levar alegria ao público e garantir um ganha-pão. São artistas de rua. Faça chuva, frio ou calor, é possível encontrá-los se apresentando em frente aos carros em semáforos.

No fim de uma tarde comum, naquele trânsito caótico no horário de pico de São Paulo um jovem, que aparenta ter entre 23 e 25 anos tenta ganhar algum trocado. Já não é a primeira vez que aquele rosto está parado no semáforo no cruzamento de uma avenida. Sempre ali, na frente dos carros, fazendo malabarismo. Normalmente, esse 'episódio diário' passa como um passatempo entre o vermelho e verde do sinal na jornada de 99% das pessoas. Mas para Davison, cada janela entre o andar e o parar dos carros é uma oportunidade de ganhar sua sobrevivência. 

Era uma manhã de terça-feira em setembro de 2022, quando Davison acordou para mais um dia de trabalho no supermercado na zona leste de São Paulo. Após meses trabalhando no local, onde tinha aprendido a lidar com clientes e prateleiras vazias precisando renovar o estoque, foi chamado ao escritório do gerente. Apreensivo, não sabia o que esperar ao segurar a maçaneta antiga da sala dos fundos. A notícia de sua demissão veio como um soco no estômago: a loja estava reduzindo funcionários devido a cortes no orçamento diante da crise econômica que assolava o Brasil no fim do governo Bolsonaro. 

Desorientado, ele saiu do supermercado, levando nas costas a mochila e o peso mais pesado do mundo na cabeça - o da consciência. Enquanto caminhava pela calçada, pensou em suas contas, no aluguel, na comida que precisava comprar. Tudo passava dentro de sua mente na solitária e reflexiva caminhada até o ponto de ônibus para retornar a sua casa. Pensava, em resumo, no que fazer.

Entre os desafios de encontrar um novo serviço em um momento de corte de gastos em diferentes áreas e a perda de espaço por não ter um diploma, já que apenas terminou o ensino médio, Davison passava o dia batendo de porta em porta entregando currículos em busca de uma oportunidade. Eram minutos, horas, dias, semanas, até mesmo meses esperando uma ligação para uma entrevista ou uma atualização sobre sua busca por um novo emprego na imensa cidade de São Paulo. Por seu tamanho, conseguir um novo serviço na capital paulista parece tarefa simples. Mas, diante das dificuldades e da falta de preparo por obstáculos da vida, se tornou um verdadeiro desafio.  

Davison abandonou os estudos por duas vezes. A primeira, em 2015, aos 14 anos. O jovem optou por deixar a Escola no fim do ensino fundamental para trabalhar com o pai como ajudante em uma obra em um prédio na zona leste de São Paulo. Após o fim do serviço, o jovem retornou aos estudos, forçado pela mãe. A segunda, em 2017, durante o ensino médio, Davision foi mais uma vez em busca de trabalho para ajudar a pagar as despesas de casa após a demissão da mãe do serviço de babá na Zona Sul da capital paulista. Com nova oportunidade de Dona Jandira, o jovem retomou os estudos e se formou em 2019, já que perdeu dois anos de estudo em busca de ajudar financeiramente sua família. 

Vendo as chances de um novo serviço nesse louco mundo e longe da possibilidade de voltar aos estudos em uma faculdade através do ENEM ou sistemas como Sisu ou Prouni, Davison não viu outra saída além de se reencontrar com uma paixão antiga - o malabarismo. O jovem aprendeu a manusear diferentes objetos e fazer movimentos contínuos e arriscados em uma aula de educação física na escola pública onde estudou. Foi paixão a primeira vista. Mas nunca passou por sua cabeça que seu hobby de quando crescia poderia virar, de fato, seu emprego. Na cabeça do jovem, malabarismo era uma arte exclusiva de circo, já que assim foi seu primeiro contato, numa aula de educação física na escola com artes de circo. 

Davison tinha medo de arriscar pois via a arte de rua como uma "vagabundagem", imaginando que as pessoas veriam sua imagem como apenas mais um que pede dinheiro nos faróis por umas moedas que, na teoria, vão para alimentação ou compra de outras necessidades daqueles que vivem a dura realidade das ruas. Entretanto as ruas são o local ideal para a arte. Desde o grafite, passando pelos cantores nas praças, as "estátuas humanas" e os malabaristas, as movimentadas praças e avenidas são o espaço necessário para quem busca uma oportunidade de mostrar seus talentos.

Foi ali, numa manhã gelada, que Davison tomou a atitude de sair de casa, pegar três ônibus e ir até o centro de São Paulo, uma das regiões mais movimentada do país. Mas o rapaz não era o único ali. Disputando um espaço com tantos outros que já se apresentavam ali há muitos anos, Davison encontrou, em um dos cruzamentos mais famosos do local, uma oportunidade de se apresentar. Nervoso, começou a fazer seus movimentos e deixava um ou outro pino escapar, tirando uma risada ou outra de pedestres, mas ignorado por aqueles que estavam em seus automóveis rumando para diferentes destinos. 

Com o tempo, Davison foi voltando a aprimorar sua técnica e, aos poucos, chamando a atenção dos motoristas que ali passavam. Nas primeiras horas do dia, naquele trânsito onde todos tentam chegar no trabalho ou na faculdade, o rapaz era só mais um corpo no meio da multidão. Ao passar do dia, ia chamando a atenção com seus movimentos únicos e arriscados. Debaixo de muito sol, calor, frio, chuva, ventania, não importava o clima, Davison estava ali buscando ganhar seu trocado e levar, principalmente, alimento para casa. 

Dentre "turnos" de 9 a 12 horas, Davison passa despercebido muito tempo. Dentre os milhares de carros que por ali passam diariamente, o jovem é "só mais um" no meio da imensa multidão em uma das avenidas mais movimentadas do país. Logo pela manhã, a pressa dos milhares de trabalhadores em seus carros, motos, transporte público ou até mesmo andando nas calçadas não prestam atenção em suas manobras. Com o passar do dia, seus ganhos vão aumentando. Mesmo com as dificuldades, Davison mantém o carisma e sorriso no rosto. 

Em um dia bom, Davison volta para casa com pouco mais de 100 reais no bolso. Mas nem todos os dias são assim, principalmente em dias de chuva. Os melhores dias para Davison são aos domingos, quando as ruas são fechadas pela Prefeitura para que as pessoas possam andar livremente pela Avenida Paulista. Mas a "competição" pela atenção (e do dinheiro) do público não é pequena. Mesmo assim, Davision se destaca no meio da multidão com um carisma único. 

Ao fim do dia, assim como na movimentada e povoada ida, Davison volta para casa fazendo o mesmo trajeto de sempre, pegando os três mesmos ônibus até próximo de sua casa, onde anda pela vizinhança cumprimentando seus vizinhos. Não importa se foi um dia de sol, chuva, frio ou muito calor, o sorriso no rosto e o sonho de uma nova oportunidade no dia seguinte prevalecem na cabeça do jovem, mesmo sendo um elemento invisível para grande parte daqueles que passam por ele diariamente. 

Davison não é o único talento invisível em São Paulo, no Brasil, América do Sul ou do mundo. A arte de rua é cultural e faz parte da identidade de um bairro, cidade, estado ou país. Assim como os "malabaristas do sinal vermelho" em diversas cidades, os vendedores de mate nas praias do Rio de Janeiro são elementos culturais e diários da vida do cidadão e compõe a imagem de um local. A cultura não está, necessariamente, apenas na comida típica, museus, casas e prédios icônicos, roupas, chaveiros ou canecas. A cultura está em todo lugar, basta o olho para identificar. 

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