Esportes lutam contra dopagem

Raras testagens e sensação de impunidade incentivam dopagem no ciclismo
por
Matheus Marcolino
|
23/09/2024

Por Matheus Marcolino

 

Antes de mais uma etapa do circuito brasileiro de ciclismo de estrada, os atletas aguardam pela liberação da pista. A ansiedade toma conta tanto dos atletas mais experientes, quanto dos iniciantes, que podem estar vivendo o primeiro dia de competição intensa. Mas alguns deles estão tomados por uma inquietação diferente. Ela pode ser definida por uma aceleração nos batimentos cardíacos, por uma sensação de superpoderes que parece até fazer com que eles possam voar. Esse frio na barriga não é natural, como se pode suspeitar, mas é comum. Comum no universo do ciclismo, não só no Brasil e há bastante tempo.

O ano era 2021. O ciclista Alison Ferreira aguardava o início da Volta Ciclística Internacional, que promoveria uma volta na cidade de Atibaia, no interior de SP, e que terminaria na igreja matriz. Ele despontava como uma das grandes promessas da elite do ciclismo paulista, já conseguia sustentar a família sem precisar dividir as atenções entre o esporte e um segundo emprego, mas os resultados ainda não tinham chegado. Era natural, pelos seus 23 anos, que ainda precisasse de mais preparação para atingir seu auge. Ele lembra, porém, que numa etapa anterior do campeonato brasileiro, chegou atrás de cinco atletas - e suspeita que muitos deles estavam dopados. O ciclismo já era seu ganha-pão, e Alison não conseguia parar de pensar em como competir com atletas cujo desempenho está sendo ampliado sinteticamente. 

Alguns meses antes, Alison teve de parar de treinar para ajudar seu pai, que havia quebrado o braço. Foram poucas semanas parado, mas ele sentiu que voltou fora de forma, e isso destruiu sua confiança. A partir de setembro de 2021, ele passou a usar um estimulante - também utilizado por outros ciclistas da elite - chamado mefentermina. Essa substância está contida num composto de vitaminas do complexo B aplicadas em animais, como cavalos. A aplicação é feita por uma seringa, que é encaixada na coxa do atleta. Alison me contou que esse estimulante (proibido pela Agência Mundial Antidopagem - WADA, a sigla mais famosa em inglês) não aumentou de forma considerável seu desempenho físico, mas turbinou sua confiança. Ele passou a fazer coisas que dificilmente teria coragem pra fazer na pista, sentia como se pudesse fazer tudo.

A Volta Ciclística Internacional aconteceu em dezembro. Alison não conquistou os resultados que esperava, e, como era a última competição do ano, decidiu não aplicar o estimulante antes da competição. Nos dois primeiros de um total de três dias de competição, seu desempenho foi comum. Não liderou nenhuma prova, esteve atrás do pelotão. Na última corrida, disputada no primeiro domingo do mês, Alison fez sua melhor prova da temporada. Quando cruzou a linha de chegada, em frente à Igreja Matriz de Atibaia, ele quase não acreditou ao perceber que tinha vencido a prova. Foi uma alegria colossal, que imediatamente tomou outros contornos quando ele virou seu pescoço e viu uma pessoa. O desconhecido usava um colete com uma sigla de quatro letras na frente: ABCD. Alison prendeu a respiração por um momento. Ele sabia que, naquele momento, a vida como ele conhecia tinha acabado.

 

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Alison Ferreira cruzando a linha de chegada na Volta Ciclística Internacional de 2021. Foto: Arquivo pessoal

ANTIDOPAGEM

A Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD) foi colocada para funcionar com o objetivo de centralizar as decisões envolvendo antidopagem no País. 2016 seria o ano dos Jogos Olímpicos do Rio, e essa foi uma das medidas exigidas pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) para que o evento acontecesse. 

Como o órgão ainda era quase que embrionário, o então presidente da ABCD, Marco Aurélio Klein, fez uma ligação que mudou a história da antidopagem no Brasil. Do outro lado da linha, atendeu o médico maratonista Luis Horta, quarto colocado da São Silvestre de São Paulo - que chegou a liderar até a subida da Consolação - em 1986 e principal autoridade antidopagem de Portugal. Ele topou o desafio de comandar essa estruturação porque conhecia o contexto brasileiro. 

Em 2007, durante os Jogos Pan Americanos no Rio, Luis Horta era um dos observadores da WADA na competição. Ele era responsável por checar se os procedimentos antidopagem estavam sendo seguidos corretamente, e, em uma de suas análises, notou algo estranho. O controle antidopagem acontecia até às 22h00min, mas os cartões de uma nadadora eram sempre assinados após às 23h00min. A responsável pelas assinaturas era sempre uma médica da equipe brasileira. Horta percebeu que a nadadora, chamada Rebeca Gusmão, parecia não ter um tipo físico que se relacionasse aos seus exames. Forte, rápida e com músculos extremamente desenvolvidos, ela acabara de ganhar quatro medalhas no Pan - duas delas de ouro.

Após a investigação, foi constatado que Rebeca Gusmão falsificava seus exames, e que a urina, fortemente diluída com água, não era da nadadora. Ela foi banida do esporte e teve suas medalhas anuladas. Além disso, Rebeca testou positivo para o uso de testosterona, um esteroide anabolizante utilizado principalmente no desenvolvimento e aumento de potência muscular. Essa substância aumenta de forma substancial o desempenho em esportes que exigem força (e são muitos). Luis Horta alerta que o uso de esteroides anabolizantes pode causar problemas a longo prazo, como desenvolvimento de doenças cardiovasculares e alguns tipos de câncer.

Adriana Taboza, presidente da ABCD explicou que existem três critérios para uma substância ser proibida pela Agência Mundial Antidopagem (WADA): trazer riscos à saúde do atleta, causar aumento indevido na performance do competidor, e, por último, ferir os princípios do esporte. Caso dois destes três critérios sejam cumpridos pela substância em questão, ela fica proibida. 

Mas existem substâncias proibidas o tempo todo e existem as que são proibidas apenas em competição. A eritropoetina, conhecida como EPO, é utilizada principalmente entre maratonistas e ciclistas, pois aumenta a resistência e a força com o passar do tempo. Luis Horta compara o uso de EPO numa maratona como andar de bicicleta enquanto seus adversários caminham. A EPO, porém, aumenta a quantidade de glóbulos vermelhos e deixa o sangue mais espesso, fazendo com que o sangue tenha mais dificuldade em circular nas nossas artérias. Quem faz uso dela tem mais predisposição ao infarto agudo do miocárdio, edemas pulmonares e ao acidente vascular cerebral (AVC). Ela é proibida o tempo todo, seja em períodos de treino ou de competição, pois não há qualquer justificativa para um atleta utilizá-la.

Já os glicocorticoides (hormônios utilizados para acelerar a recuperação muscular de algumas lesões, por exemplo) são proibidos em competição. É o mesmo caso de canabinoides, como a maconha, que podem ajudar no controle de ansiedade e, por isso, são proibidos durante as competições - mas no dia a dia dos atletas, a testagem antidopagem sequer busca esse tipo de substância.

Segundo Adriana Taboza, futebol, levantamento de peso, atletismo e ciclismo podem ser citados como algumas das que mais “caem” nos testes. Essa testagem acontece em exames de urina e de sangue, a depender do esporte e do tipo de substância que cada exame detecta. 

A tarefa de fraudar o controle antidopagem é extremamente dura, então poucos têm a audácia necessária para fazê-lo. A Rússia, por exemplo, elaborou um esquema de fraude que envolvia a alta cúpula estatal e que fazia até buracos em paredes para manipulação de amostras de urina. Os Estados Unidos, apesar de condenarem a Rússia e se colocarem como os mais “limpos” do esporte, travam uma guerra contra a WADA - que revelou um esquema da agência antidopagem americana, a USADA, que permitiu que atletas dopados competissem pelo país. A Reuters revelou que ao menos três atletas competiram dopados, e que um deles disputou eliminatórias mundiais sem qualquer impeditivo da agência americana, que encobriu os casos.

A SUSPENSÃO

O escândalo russo, que durou até 2016, mudou o mundo da antidopagem e deixou os critérios ainda mais rígidos - pelo menos no esporte de primeira prateleira. Nas competições amadoras ou do último nível do profissionalismo, a rotina de exames e testes quase não existe. Alison Ferreira diz que, num ano, "quase 99%" das competições disputadas por um ciclista da elite paulista não têm exame antidoping, com exceção do campeonato brasileiro. Por isso, há um ambiente de desconfiança muito grande no circuito. Se não há testes, quase todos se dopam. Quem compete limpo acaba ficando para trás.

Depois de recuperar a respiração ao avistar o fiscal da ABCD e participar da cerimônia do pódio, Alison Ferreira foi chamado para fazer os exames de sangue e urina. A testagem foi feita na Igreja Matriz de Atibaia, onde ficava a linha de chegada. Enquanto esperava sentado no andar de cima da igreja, Alison não conseguia raciocinar direito. Só pensava em como poderia sair daquele momento, avançar ou retroceder o tempo para mudar o cenário. 

Ele fez os exames, saiu da igreja e só conseguia pensar que tudo tinha acabado. Se reuniu com a equipe para qual competia e comunicou que provavelmente cairia no antidoping, mesmo não fazendo uso da mefentermina naquela etapa. Como a substância foi utilizada em seis ou sete etapas anteriores, o processo de “limpeza” ainda não tinha acontecido e algum dos exames acabaria por detectar a presença do estimulante. A mefentermina é proibida pois causa a perda de discernimento, turbinando a confiança (como Alison descreveu no início). A sensação de fadiga diminui drasticamente, e o atleta é incapaz de notar os limites de seu corpo. 

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O ciclista Alison Ferreira ocupou o lugar mais alto do pódio, mas o sentimento naquele momento era de desespero. Foto: Arquivo pessoal

Foram quinze dias sem dormir até que um email chegou. Era da ABCD, notificando que ele estava suspenso preventivamente das competições. Após julgamento, Alison pegou três anos de suspensão do ciclismo profissional. Foi um baque enorme para ele, que pensou em largar o esporte. Começou a fazer bicos para sustentar esposa e dois filhos. Enquanto conversava Alison não parava de repetir o quanto se arrependera da dopagem e como não recomendava isso a ninguém. Ele conviveu com a depressão e com julgamento e ódio vindos das redes sociais, mas passou a se tratar durante os últimos dois anos e meio.

Três anos parecia uma eternidade, mas o tempo sempre passa. No final de 2024, Alison Ferreira estará livre para retornar ao ciclismo profissional. Antes da suspensão, a preparação estava sendo feita com os Jogos Olímpicos Paris 2024 em mente, começando a competir no circuito europeu. Hoje, chegando perto dos 28 anos de idade, os objetivos são outros.  Ele já não sonha mais em viver de ciclismo. O amor pelo esporte que disputa desde os cinco anos de idade permanece, mas agora mais como hobby que como profissão. 

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