Por Sophia Pietá
"Bailarina". Uma resposta frequente entre as meninas quando perguntadas o que querem ser quando crescerem. O sonho de ter a primeira sapatilha de ballet, usar os famosos collants e tutus, dançar em cima dos palcos e brilhar percorrem os pensamentos da maioria das garotas que fantasiam com a vida de bailarina. Mas a realidade de uma fantasia como esta não é simples, por trás de uma arte tradicional e graciosa existe um bastidor de preconceito e elitismo.
Janelas grandes, barras de metal fixadas nas paredes e na frente um grande espelho do teto ao chão, assim são as salas de uma companhia de dança no interior de Minas Gerais. O som alto de notas de piano ecoam pelas caixas de som enquanto cerca de quinze meninas ensaiam uma coreografia de ballet clássico para o festival de fim de ano. Brenda está sentada ao fundo da sala, observando os passos e relembrando a coreografia que decorou durante meses mas não vai poder dançar junto às outras bailarinas. Brenda não é uma “bailarina da casa” e sim de um projeto social do governo que acolhia meninas de escolas públicas para fazerem aulas de ballet gratuitas.
Todas as garotas que faziam parte do projeto tinham a mesma oportunidade, fazer aulas de ballet duas vezes na semana, aprender as coreografias e realizar um pouco do sonho de ser bailarina. Mas não era a mesma oportunidade das bailarinas que pagavam mensalidade à companhia. Brenda era só mais uma “bailarina do projeto”. Ela diz que se quisesse fazer parte dos espectáculos e das apresentações tinha que pagar. Pagar mensalidade, fantasia, maquiagem, taxa de apresentação ao teatro, custear transporte para os ensaios em fins de semana, além de todo o empenho e dedicação extra que era cobrado das bailarinas que realmente faziam parte daquela companhia.
Assim, as aulas diárias de ballet eram divididas em dois grupos: as meninas que ficavam na frente, puxavam as coreografias e pagavam mensalidade, jás as outras as meninas do projeto que ficavam ao fundo da sala acompanhando os passos das outras e só estavam ali por uma caridade, era assim que essas eram conhecidas. Brenda também destaca sobre sua aparência, ela não era branca igual as bailarinas da casa, nem loira e magra. Seu coque não era arrumado e cheio de firulas, seu collant, meia calça e sapatilha eram de doações. Em uma turma com cerca de trinta meninas, apenas cinco eram negras como ela, no país onde 55% da população se declara preta ou parda, segundo dados de 2016 do IBGE.
No seu primeiro mês como bailarina se questionou sobre a sua realidade e percebeu que aquele mundo não era seu sonho e sim sua resiliência. Essa história não é apenas a da Brenda, mas sim de milhares de meninas que sonham em dançar e se tornar bailarinas, mas quando entram nas coxias descobrem uma arte ainda muito elitista e tradicional. Ao analisar os principais balés de repertório, entre as histórias estão: O lagos dos cisnes, o Quebra nozes, Dom Quixote, Coppélia, em nenhum desses uma menina negra se apresenta como protagonista.
Mas tem uma bailarina que Brenda se vê muito inspirada, é a história da Ingrid Silva, bailarina negra do Rio de Janeiro que atualmente é solista do Dance Theatre of Harlem, em Nova York. Ela conquistou os palcos com seu talento mundo afora e também o público com sua história de superação e luta contra o racismo no ballet. Ela é a primeira companhia negra de balé clássico do mundo, o grupo surgiu em 1969 por iniciativa de Arthur Mitchell, o primeiro bailarino negro do New York City Ballet. Todo ano ocorrem seleções de talentos negros aqui no Brasil entre os 1.500 bailarinos inscritos para a disputa de bolsas em países como França, Alemanha e China.
Ingrid também é uma bailarina de um projeto social chamado "Dançar para não dançar", filha de empregada doméstica, ela e a família batalharam desde pequena para que seu sonho se tornasse realidade e profissão. Ao ir morar em Nova York para dançar, ela descobriu que bailarinos pintavam as sapatilhas com base para maquiagem, a fim de imitar o tom da pele de cada um, e passou a fazer o mesmo. Ela documentava sua rotina como uma bailarina negra, em uma das companhias mais famosas do mundo e compartilhava suas histórias nas redes sociais, conseguindo uma legião de seguidores que se emocionaram com a história e garra de Ingrid.
Hoje ela é uma das maiores bailarinas do País e escreveu o livro autobiográfico "A sapatilha que mudou o meu mundo" que tem servido de inspiração e ajudado milhares de outras vidas, especialmente de crianças pretas, que se vêem pouco representadas no universo da dança clássica, dominado por pessoas brancas. Dados da Coordenação Nacional do Mapeamento da Dança de 2016 mostram que 61,23% dos bailarinos se declaram brancos, 6,72% pretos, 1,3% amarelos, 30,53% pardos e 0,22% indígenas.
Mesmo com uma realidade ainda cruel e preconceituosa, surgem no País diversos projetos que procuram integrar crianças carentes no mundo do ballet, assim como foi com Brenda e Ingrid. O ballet Paraisópolis é um dos mais conhecidos de São Paulo, sendo totalmente gratuito, de forte ação social na comunidade de Paraisópolis e atende meninos e meninas a partir dos oito anos de idade. Esse é um projeto aprovado pelo Programa de Ação Cultural (ProAc) da Secretaria Estadual da Cultura, parcialmente patrocinado pela TIM, sendo um dos únicos projetos que possui grandes patrocinadores e apoio governamental em prol da dança.
Brenda faz parte do projeto social há dez anos. Hoje com 18 anos sonha em fazer faculdade de educação física. Ela quer ser professora de ballet, jazz ou sapateado, ela diz que não importa o tipo de dança mas sim quer continuar ensinando meninas o que ela aprendeu quando era menor. Ela já dançou em três apresentações desde que entrou no ballet, foram anos que sua mãe conseguiu pagar a fantasia ou recebeu a ajuda de outras mães de bailarinas que se solidarizaram com a história dela. A força dessas bailarinas negras não é apenas uma resposta às adversidades e preconceito, mas sim uma celebração de suas identidades e uma poderosa reivindicação de seus talentos e igualdade no mundo da dança.