Por Nina Januzzi
Entre o burburinho do metrô e as fachadas antigas do centro, Santa Cecília guarda recantos que remetem ao Mediterrâneo. Pelas ruas estreitas, o aroma intenso do café recém-passado mistura-se ao perfume terroso do tahine, ao toque de limão fresco e ao cheiro de cardamomo. O tilintar de xícaras, o sussurro de panelas e o estalo do pão saindo do forno compõem uma sinfonia discreta que se espalha pelas calçadas. Nas vitrines, pratos fumegantes exibem homus cremoso, falafel dourado e crocante, shawarma suculento e saladas de cores vibrantes — vermelhos dos tomates, verdes das hortaliças, brancos dos queijos frescos — convidando à experiência de mergulhar em histórias que atravessam continentes, tempos e conflitos.
Karim, de 42 anos, chegou ao Brasil há quinze, fugindo da Faixa de Gaza. O rosto ainda guarda marcas de tensão, mas os olhos transmitem serenidade e determinação. Sua pequena cozinha, com mesas de madeira simples, utensílios de cobre que refletem a luz natural e potes de condimentos alinhados com cuidado, é uma extensão da memória de casa. Cada receita — do homus ao falafel — carrega lembranças da infância, dos aromas da cozinha da avó, do cheiro do alho dourando no azeite e do toque ácido do limão sobre os grãos-de-bico. Quando abre o pão recém-saído do forno, o estalo seco preenche o ar, liberando um perfume levemente adocicado que se mistura à fumaça do óleo quente onde o falafel frita até dourar. Para Karim, servir esses pratos é mais que alimentar: é transmitir histórias, memória e resistência cultural.
Do outro lado da rua, Miriam comanda sua cozinha com ritmo preciso. Filha de imigrantes judeus, ela mantém viva a tradição familiar. O aroma do alho refogado, do azeite perfumado e das especiarias delicadas envolve o salão iluminado por janelas amplas. Saladas estalam sob a faca, kibes douram na frigideira e o arroz aromático libera cardamomo, canela e noz-moscada, evocando festas e reuniões de família em Tel Aviv. Miriam observa cada detalhe: a cor intensa dos tomates, o brilho do azeite sobre o homus, o frescor das ervas recém-cortadas. Para ela, servir esses pratos é tecer uma ponte entre memórias distantes e clientes que buscam sabores autênticos, mesmo sem conhecer a história que acompanha cada ingrediente.
Apesar das diferenças culturais, Karim e Miriam percebem conexões nas cozinhas. Grãos, gergelim, ervas frescas e legumes grelhados formam uma matriz comum. O pão assado de Karim e o servido com azeite e zaatar por Miriam têm texturas semelhantes, mas evocam memórias distintas: para ele, é acolhimento; para ela, tradição. Pequenos detalhes — uma fotografia antiga, a disposição das especiarias ou a intensidade do tempero — transformam cada prato em narrativa, identidade e vínculo, sem criar barreiras.
Quando a guerra entre Israel e Palestina se intensifica, o bairro reage de maneira delicada e humana. Karim nota o aumento na procura por conversas e lembranças: clientes entram, pedem café e falafel, e compartilham histórias de aldeias, parentes e festas interrompidas pelo conflito. Miriam percebe o mesmo: alguns se emocionam, comentando episódios de família em Israel ou relatos de notícias recentes. Ambos mantêm a cozinha como espaço de afeto, evitando transformá-la em palco de discussões políticas, ainda que a tensão externa altere os humores de clientes e funcionários.
Para muitos fregueses, os pratos tornam-se narrativas pessoais. Um estudante que circula entre as cozinhas conta que o falafel de Karim o transporta para uma aldeia palestina visitada em viagem, onde a hospitalidade e os aromas marcaram sua memória, enquanto a salada de Miriam evoca as festas judaicas de sua avó, com cores, texturas e aromas que despertam nostalgia. Cada detalhe — o estalo do pão, o crocante do falafel, o brilho do azeite sobre o homus — atua como gatilho sensorial, aproximando culturas, afetos e histórias.
O cotidiano do bairro constrói ainda mais essa convivência. Fornecedores atendem ambos os cozinheiros, clientes circulam entre espaços diferentes, profissionais se cumprimentam nas ruas. Essa naturalidade é sinal de uma convivência que contrasta com os conflitos que dominam as manchetes. É possível tomar café em uma cozinha palestina e, no dia seguinte, almoçar em uma israelense sem estranhamento. Santa Cecília prova que a gastronomia é mais que alimento: é memória, encontro e resistência.
Os sons das cozinhas e das ruas compõem uma narrativa própria. O estalo do pão, o chiado da frigideira, o roçar da faca nas tábuas de corte e o tilintar de talheres entrelaçam-se aos passos apressados de clientes e ao murmúrio das conversas. O calor das frigideiras, a fumaça que sobe das panelas e o brilho do azeite sobre o homus criam sensações que evocam memórias, transportando quem prova cada prato a terras distantes. Karim e Miriam sabem que, no fundo, cada gesto é também um ato de cuidado: alimentar, acolher e preservar histórias.
Santa Cecília, assim, torna-se um microcosmo de convivência cultural. As memórias palestinas e israelenses circulam lado a lado, às vezes discretamente, às vezes de forma intensa, mas sempre de maneira harmoniosa. Para muitos clientes, é justamente essa naturalidade que impressiona: sentir-se em casa em ambas as cozinhas, sem fronteiras, sem julgamento. A cidade revela que sabores e memórias podem unir o que a geografia e a política tentam separar, transformando cada refeição em um ato de humanidade.
Ao deixar o bairro, a impressão que fica é de que cada prato carrega mapas invisíveis de migração, afetos e memórias. A crocância do pão, o aroma das especiarias e o tilintar de talheres compõem uma narrativa silenciosa de convivência. Santa Cecília demonstra que a vida cotidiana — o ato de servir, compartilhar e provar — é, muitas vezes, o gesto mais próximo de uma paz possível. Entre cores, aromas, texturas e sons, a gastronomia transforma-se em ponte, preservando culturas, lembranças e afetos mesmo em meio a conflitos distantes.