Eles não ligam pra gente, Michael

Cenário da música independente, na era do streaming, não vive da arte por si só.
por
Laura Boechat
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23/11/2023

Por Laura Boechat (texto) e João Curi (audiovisual)

Fazer arte no Brasil não é fácil. Principalmente se a expressão artística for a música, um cenário fechado e dominado por grandes forças. Artistas independentes tentam, todos os dias, alçar voos por conta própria – enquanto muitos outros chegam bem mais alto de avião. É o caso de Theus Terreiro e a Yellow Lab, coletivo de artistas independentes, e de Bento Pestana e sua banda Besouro Mulher. Na luta pela atenção de um público sem incentivo à cultura e à criticidade, destituídos dos milhões que a indústria musical movimenta diariamente, milhares de artistas dobram, se desdobram e redobram os artifícios ao alcance para espalhar a sua arte – e, se possível, emancipar-se para que consigam sobreviver do seu trabalho.

Theus Terreiro começou seu envolvimento com a música já cedo. A paixão pelas rimas vem da juventude, quando se pode sonhar com tudo. Ele só não sabia que o sonho poderia virar vocação. A descoberta da possibilidade de ingresso no mercado fonográfico veio junto à criação da Yellow Lab, um coletivo artístico que marca seus primeiros passos para se tornar uma gravadora musical. Com sua irmã, Gabi, com quem sempre compartilhou não apenas o caminho artístico, mas de toda a vida, Theus lançou o primeiro EP, batizado "Elementar".

Dupla de irmãos Terreiro
Os irmãos Theus e Gabi Terreiro, durante show em São Paulo. (Reprodução/Yellow Lab)

Depois disso, seus pais perceberam que o envolvimento com a música era sério, e presentearam os irmãos com duas caixas de som pretas com detalhes amarelos – e foi daí que surgiu o nome Yellow Lab. Theus e Gabi transformaram um dos cômodos da casa em estúdio e começaram a produzir as próprias músicas, depois as de amigos próximos. Em meio às rimas, improvisações, sentimentos diversos que rodeiam as canções e o suporte dos pais, o sonho virou presente.

Já o ventre da Besouro Mulher, banda da qual Bento Pestana é guitarrista, foi semeado por elementos políticos. Além do apoio familiar e de amigos, o grupo ainda voou pelos ares rebeldes da época das ocupações, dos atos contra-golpe e pré-Bolsonaro. Afinal, tudo que uma juventude energética e inquieta precisa é de uma boa trilha sonora. 

Dois dos parceiros de banda de Bento participaram ativamente das ocupações, o que escancarou as portas para a reverberação no ambiente. Com isso, foi em meio às barracas nas escolas e à Avenida Paulista marejada pela juventude efervescente enfrentando a polícia e suas balas de borracha que a Besouro Mulher, formada por jovens da Zona Oeste de São Paulo com o ar descontraído e a poesia no lápis, lançou seu EP, em 2018. Posteriormente, com o apoio do selo Rockambole, a banda pôde gravar seu primeiro álbum de estúdio.

 

DE QUE VALEM AS VIEWS?

Não há muita pressa para superar os números. Esta é a declaração de Bento, entre uma tragada e outra de seu cigarro de palha, no Pátio da Cruz da PUC-SP, camuflado entre os estudantes do período matutino. Como graduando da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), sentia-se em casa, modesto e despercebido. O guitarrista relembra o sucesso de uma das primeiras gravações da banda, "Madalena", que já soma 31 mil visualizações no clipe oficial. Para Bento, o mais importante parece ser um outro tipo de reverberação, talvez a forma como a música atinge o coração do público, como as pessoas se juntam ao som e, inevitavelmente, o coro das vozes disseminadas da plateia alinhado à vocalista nos shows que nunca foram vazios.

Bento diz que o público da Besouro Mulher é um pessoal diverso, que abraçou a banda ainda nos momentos da ocupação. Em meio a concertos com rostos conhecidos ou shows maiores, emplacar grandes hits para gerar views não parece uma preocupação para eles. É diferente da cobrança da grande indústria que, segundo o IFPI Global Musical Report, movimentou US$25,9 bilhões no ano passado. 

Fala-se em números, mas a verdade é crua porque os dígitos enganam. A nível de comparação, o Spotify, a maior plataforma de streaming do segmento, oferece uma remuneração média de US$0,00397 por reprodução, isto é, a cada mil streams, paga-se aproximadamente US$3,97 (equivalente a R$19,80, na cotação atual) à artista ou gravadora proprietária dos royalties. Quando se trata de figuras independentes, por sua vez, o valor é ainda menor, considerando os contratos com distribuidoras, como a OneRPM, que cobra 15% dessas receitas em troca de seus serviços de publicação. 

Theus fala bastante dos números. Mas tem seus motivos, já que para o artista e produtor, além de ser o termômetro quanto à fonte de renda proveniente da distribuição e captação de royalties, as visualizações demonstram o reconhecimento do público. Mais que isso, Theus encontra inspiração quando ouve os outros cantando suas músicas, sejam eles conhecidos ou até amigos de amigos, e por aí vai, de boca em boca, de ouvido em ouvido, somam-se os números. 

 

Em um dos episódios relatados, o sorriso de quem lembra a infância contava sobre uma garota da Bahia que lhe enviou uma mensagem inesperada e inesquecível. Ela escreveu, com todas as letras, que precisava ouvir suas músicas todos os dias durante a pandemia. O verbo, aqui, foi decisivo: ela precisava. Se havia qualquer dúvida na cabeça onírica de Theus, evaporou-se ali mesmo. É isso, irmão. 

No conforto do estúdio, rodeado de música e histórias em exposição, Theus puxa e solta lembranças com a ajuda do amigo, parceiro, quase sócio, estudante de Psicologia e rapper – ufa – Latrel. Entre um sopro e outro de memória reacendida, os dois contam que o primeiro lançamento dos irmãos Terreiro, o single despretensioso e com uma letra de preencher pergaminho, “20 Roseiras", bateu 60 mil visualizações em apenas dois meses. O número é impressionante para artistas totalmente independentes, considerando a divulgação própria e o baixo alcance, comparado aos planejamentos profissionais de marketing que constam nos pacotes de contrato com gravadoras. Pelo contrário, Theus relata que foi tudo muito orgânico, no boca a boca de amigo que mostrou pra conhecido, que contou pra outro, que espalhou pra mais quatro, oito, dezesseis, e foi-se florescendo exponencialmente as roseiras que, de fato, já eram muito mais do que vinte.

Os artistas independentes Theus Terreiro e Latrel no palco, durante evento colaborativo da Yellow Lab, em São Paulo.
Os artistas independentes Theus Terreiro e Latrel no palco, durante evento colaborativo da Yellow Lab, em São Paulo.

 

TOMA LÁ, DÁ CÁ: CONEXÕES

Quem tem um amigo tem tudo, já dizia o grande músico Zeca Pagodinho. E é verdade. Para muitos artistas independentes, os amigos são os grandes responsáveis pelo engajamento no início da carreira, seja divulgando a música, fazendo críticas ou até mesmo participando ativamente dos projetos.

O sucesso de "20 Roseiras", por exemplo, deve-se aos amigos de Theus e Gabi, que apoiaram o projeto para além de ouvintes. Alguns até mesmo viajaram para São Carlos, cidade natal do rapper, para comporem o formato audiovisual do single, a chamada “música de trabalho”. Outros ajudaram na produção. E o apoio não parou por aí: para a Yellow Lab se desprender do status de um coletivo de artistas e se emancipar como gravadora independente, foram também os amigos que prestaram apoio. No confronto às burocracias que guardam a realização do sonho, Theus se organiza com um parceiro conhecedor do Direito para arranjar a documentação e estampar oficialmente a Yellow Lab no mapa de labels do País.

Bento, no entanto, enxerga as conexões no meio de uma forma diferente. O guitarrista aprecia os rostos conhecidos por entre a multidão nas casas de show de São Paulo, e revela, rindo, que sua mãe é uma grande fã da Besouro Mulher, mais pela vocalista do que por ele, brinca o músico. Mas não é só com família e amigos que se constrói um show, na verdade, as conexões profissionais são o grande trunfo desse jogo. 

Por culpa de sua graduação, Bento mergulha na obra Ilusões Perdidas, do escritor francês Honoré de Balzac, ao sinalizar que a relação entre os jornalistas e escritores é, acima de tudo, contratual. Com base nessa literatura, retrata-se a categoria dos jornalistas, ainda prematura no século XIX, a qual o autor chama de "negociantes de frases" e "espadachins das ideias". A outra classe, dos escritores e livreiros, é retratada a partir do relacionamento com os jornalistas e todo o tráfico de influência, os prestígios e corrupções existentes na troca.

Para Bento, que fazia questão de fisgar as palavras certas para falar de sua arte, o ambiente atual é bem similar. As conexões burocráticas, que nada têm a ver com os sentimentos acentuados nas músicas e performados entre momentos de amizade e intimidade, são necessárias. É a partir da troca com outros atores do meio, artistas e jornalistas, os demais peões do jogo musical, que é possível alcançar reconhecimento e ampliar a visibilidade. Em outras palavras, a conectividade é essencial.

 

EU NÃO ME ENTREGO AO COVER, MAS QUERO A CAPA

Não dá pra reproduzir um sentimento com a perfeição de quem o sente. O mesmo cabe a um trabalho autoral. É por isso que Theus e Bento concordam, seja na rima ou na guitarra, que nenhum cover se compara a uma obra original. E eles não só pensam isso, como põem em prática.

Em um cover, ou se faz toda uma nova interpretação sobre a obra, ou a ideia é, pura e simplesmente, tocar da mesma forma que ouve-se em outra faixa. Ou seja, cria-se algo novo ou reproduz-se mais do mesmo. E Bento vai exatamente pela via contrária à pura e simples reprodução. Ele considera tocar músicas autorais como sua principal atividade, ressaltando que as músicas da Besouro Mulher são co-escritas pelos próprios integrantes. O único cover que produzem hoje são as capas de singles e projetos maiores.

Theus também acredita que o sentimento impresso nas músicas é único. Com o talento nato para proclamar rimas na improvisação desde cedo, o rapper prefere optar por trabalhos autorais – tanto para si próprio, quanto para a Yellow Lab. 

Para exemplificar a profundidade de um trabalho autoral, o produtor volta a citar "20 Roseiras". O som veio ao mundo ainda no início da pandemia. Nesse contexto, o rapper confessa que imprimiu sentimentos muito pessoais, mas que o público, em uma situação fragilizada devido ao período caótico, se identificou e abraçou o trabalho. Houve uma entrega e recepção que seriam incompatíveis, naquele momento, com letras de terceiros. Era a voz do Theus que precisava ecoar, em suas próprias palavras, nos ouvidos que quisessem ouvi-lo.

 

ELES NÃO LIGAM PRA GENTE, MICHAEL

Vancouver, Canadá. O inverno úmido e as baixas temperaturas contrastam com o clima tropical típico do Brasil. A antítese agrava quando se compara o investimento, que está aquecido onde faz frio, e jaz resfriado onde o sol torra. Theus Terreiro, quando ainda era apenas Matheus, morou lá por oito meses, época em que era adolescente e estudava no ensino público do país norte americano. Já interessado no cenário musical, o artista descreve que viver a realidade de um país que investe na cultura é impactante. Diferente dos estúdios brasileiros, que normalmente pertencem aos grandes selos e às gravadoras, ou cobram aluguéis pouco acessíveis, Matheus conta que estúdios públicos estão espalhados por toda Vancouver. E, por incrível que pareça, oferece equipamentos de qualidade, desde computadores de linha até microfones e mesas de som.

A aula de produção musical, em um colégio público, contrastava covardemente com os computadores antigos de CPU que remontam aos anos 2000, tão decadente que não se pode chamar de vintage. Matheus explica que as salas onde estudou essa disciplina, em Vancouver, contavam com mais de quarenta Macbooks espalhados, todos com fone de ouvido de monitoramento, apetrecho importante para a produção musical. Bastava isso para produzir a própria arte: entrar em uma sala como essa e criar, sem qualquer preocupação de horário ou orçamento – tudo garantido pelo governo.

Nas terras brasileiras, abafado pelo calor, Bento demarca um importante fator facilitador para a visibilidade: a geografia. Como um artista da Zona Oeste de São Paulo, considerada nobre na capital paulista, ele acredita que é mais fácil despontar na área, uma vez que a região marca privilégios econômicos de uma classe média mais abastada em comparação aos outros cantos da cidade. 

Da mesma forma, Theus acredita que o fator geográfico impacta na possibilidade de ascensão. Ainda em Vancouver, ele percebeu que a vasta gama de estúdios públicos talvez se restringisse aos limites da cidade. Para ele, a terceira maior metrópole canadense é um grande cenário musical não só para os artistas nativos, como também serve de palco e ambientação para grandes indústrias, como Hollywood, que promove diversas filmagens na capital canadense.

Se o voo é mais árduo para quem zarpa com as próprias asas, as consequências para quem pega carona também pode ser. Consoante a essa constatação, o empreendedorismo musical pode minar fatores criativos levantados por Theus e Bento – fator primordial ao viver artístico. Se Ícaro voou muito perto do sol e se queimou, é o mesmo que acontece com artistas que chegam alto demais em uma indústria da subordinação. A indústria musical, antes de tudo, é uma indústria, e "eles não ligam pra gente, Michael".

 

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