Ele e o papagaio

Uma breve história: Magrão, Negão (o papagaio que só fala japonês) e eu nos fins de tardes na avenida.
por
Lídia Rodrigues de Castro Alves
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14/06/2024

Por Lídia de Castro Alves

Na movimentada Piatã, avenida da periferia da zona norte, onde o barulho dos carros compete com o som das pessoas indo e vindo, há uma pequena bicicletaria que há mais de 50 anos é a mais famosa da região. A bicicletaria do Magrão, que desde que se entende por gente, vive nesse mundo. Seu pai, seu Afonso quem começou no ramo, ali viviam ele, seu filho Francisco (Magrão) e um papagaio recém resgatado.

Bicicletaria vista de frente- Foto: Lídia Rodrigues de Castro Alves
Bicicletaria vista de frente- Lídia de Castro Alves 
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Depois que seu pai morreu, Chico se sentiu muito sozinho e sem rumo na vida. Sua mãe saiu de casa assim que ele nasceu. Tinha 17 anos, não sabia de muita coisa mas sabia que tinha ali na bicicletaria, seu maior companheiro, Negão. O papagaio que só fala japonês. Isso já era um bom começo. Estava decidido, a bicicletaria não seria esquecida. Continuaram ali, Negão, Magrão e as bicicletas. 

eles e elas
eles e elas- Lídia de Castro Alves

Com suas penas escuras e olhar unilateral, Negão é uma figura tão conhecida quanto o fillho de Afonso, no bairro. Aos domingos, Magrão disponibiliza as bicicletas para as crianças darem umas voltinhas na longa avenida. Na frente da bicicletaria, monta um carrinho verde de fazer caldo de cana e expõe numa mesa pequena, saquinhos de pipoca que ele mesmo faz dentro da oficina, num fogãozinho azul. Já Negão, apenas se diverte soltando palavras em japonês que ninguém consegue entender.

Avenida Piatã
Avenida Piatã- Lídia de Castro Alves

Aliás, esse é um grande mistério para os moradores do bairro, por que o papagaio só fala japonês? Ninguém sabe. Magrão o encontrou quando era criança, no meio da rua, com um olho machucado. Não foi um machucado qualquer, ele havia fugido da casa de uma família que prendia aves e as vendia depois. Talvez fossem japoneses. 

Quem fez a “cirurgia” para arrumar o olho foi Francisco, assim que o encontrou. Num ato de desespero decidiu transformar o bicho num papagaio pirata. A partir daquele momento, seu fiel companheiro só enxergava de um lado. 

papagaio pirata
papagaio pirata- Lídia de Castro Alves

A rotina dos dois é simples, acordam, abrem a bicicletaria, ligam o som do radinho e esperam as coisas na avenida começarem a acontecer. A visita de sua filha é uma coisa que ele espera sempre, na mesma intensidade. Quando conversamos, disse que já tinha até arrumado a bicicleta dela. A bicicleta já estava pronta e ele também, mas ela não.  

sozinho
talvez um pouco sozinho- Lídia de Castro Alves

Magrão me disse que sua filha parece comigo, acredito que por isso, gostou de mim e falou comigo por horas, enquanto andava pra lá e pra cá realocando as bicicletas, mudando a estação do radinho e tomando cerveja, inclusive, dando uns golinhos pro Negão. -Falei pra ele que papagaio não pode beber- não adiantou.

Levei minha bicicleta pequena para trocar por uma do meu tamanho, lá não tem bicicleta nova, todas são meio remendadas. Ele me ofereceu uma azul, com raios amarelos desenhados pela estrutura, “vai, sobe aí e dá uma volta na avenida pra ver se gosta” disse pra mim enquanto me olhava com as duas mãos na cintura, como um avô ou algo assim.

Subi, dei meia pedalada e o guidão desencaixou. Fiquei muito brava, quase caí no meio da rua. Ele olhou e disse pra eu voltar no fim da semana, a bicicleta estaria nova. Quando voltei, um guidão de moto tinha sido colocado, achei muito engraçado, não tinha muito sentido mas estava funcionando. Novamente pediu pra que eu andasse com ela pra ver se gostava. 

Não gostei muito, estava meio remendada demais. Fiquei com a bicicleta mesmo assim. Negão nesse dia me confundiu com a filha do seu dono. Começou a cantar uma música que, segundo Magrão, cantava sempre que a via e cantou na última visita. 

Ali, naquele tom melancólico, me despedi dos dois e saí andando com a bicicleta, que soltou a corrente cinco minutos depois, tive que voltar pra casa empurrando. Não me importei, foi muito legal conhecer um personagem tão curioso. Ainda que não tenha descoberto o mistério do papagaio que só fala japonês, pude conhecer essa história um pouco sem pé nem cabeça e entendi que na verdade, Magrão não é um homem sozinho na vida, por mais que pense o contrário.  Todos nós fazemos parte das histórias de alguém e agora, a história dele também faz parte da minha. 

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