Domésticas enfrentam a vida dura da metrópole com resiliência

A difícil história de vida de quem fez o que tinha que fazer.
por
Beatriz Porto
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18/11/2024

Por Beatriz Porto

 

Nascida em Cabo de Santo Agostinha, Pernambuco, aos 11 anos Maria Lucia da Silva começou a trabalhar como empregada. Sob a promessa de estudo, a jovem ocupava os dias de segunda a sábado com as tarefas domésticas, apenas com o domingo para passar com a família. Ela conta que chegava nas casas e não recebia o que prometia. Não recebia o estudo prometido, as roupas ou o dinheiro prometidos.

A senhora lembra a difícil infância que teve. Apesar da baixa condição financeira, nos dias em que voltava para casa, Maria se divertia com os irmãos e frequentava as procissões da igreja. Com o dinheiro que ganhava ajudou a mãe a comprar os utensílios que faltavam, como fogão, além do aluguel do imóvel. Quando sua mãe morreu, o padrasto de Maria casou-se novamente e mandou ela e os irmão para fora do lar e cada um teve que se virar como pôde. Ela e os irmão foram abrigados por uma tia, neste momento ela continuou trabalhando em casas de família. Maria Lucia veio de Recife para São Paulo em 1978, de onde voltou para o nordeste para depois retornar definitivamente à capital paulista em 1981.

Aos 73 anos e aposentada, a mulher conta que já trabalhou em diversas residências até chegar à casa de sr. Fernando onde está empregada desde 1997. Ela conta que de todas as casas por onde passou, a do Sr. Fernando foi onde ela achou melhor e ficou até a aposentadoria.  Atualmente, seu empregador mora fora do Brasil e vem passar apenas uma semana no País, e nessa semana, Lucia deve deixar sua casa para estar no apartamento próximo ao estádio do Pacaembu. Foi desse emprego que Maria Lucia conseguiu juntar dinheiro e comprar um terreno em Ferraz de Vasconcelos onde mora com o filho, a nora e seus dois netos.

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Foto de Maria Lucia e sua família. À sua frente o neto, ao lado a neta seguida da nora e do filho.

Hoje, num emprego que considera bom, cumpre seus direitos e, como ela diz, não exige tanto por não ser um esforço diário, Maria relata que em muitas casas ela se sentia como uma escrava, onde, por vezes, nem comida era oferecida. Ela revela alguns dos casos vivenciados durante os anos na profissão. Um desses casos são as refeições que só poderiam ser feitas após os patrões, o que poderia chegar a 15h00min.

Maria Lucia ainda conta uma de suas experiências como babá. Ela relata uma tarde em que foi almoçar com os patrões e as crianças das quais ela cuidava. Na ocasião, cada uma pediu um sorvete e ao final da sobremesa, uma das meninas colocou o resto da sobremesa que não queria mais para Maria tomar. Ela se sentiu constrangida com a situação e conta que todos olhavam para ela. Devido ao caso, Maria passou muito tempo sem tomar sorvete de novo.

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Maria Lucia segurando um bebê do qual era babá.

Flávio Augusto da Silva, 51, é filho de Maria Lucia. O primogênito cresceu na casa de parentes em Recife enquanto a mãe trabalhava em São Paulo e lembra com pesar da infância afastado de sua figura materna. Hoje, o homem entende as razões de Maria. Segundo ele, era uma necessidade dela de ter alguma coisa na vida. O funcionário público relata o tempo que morou em São Paulo quando criança. Apesar de vir com a mãe, Augusto morava com parentes e diz nunca ter lhe faltado nada em relação aos cuidados, apenas os momentos em que sua progenitora não estava presente.

Relembrando as idas e vindas de Recife para São Paulo, Flávio reflete sobre o emprego da progenitora. Trabalhando desde a meninice até os dias de hoje, Flávio não sabe quando a avó de seus filhos será liberada do emprego, e não sabe dizer se ela entende que não se trata de um emprego qualquer. Segundo ele, Maria tem um patrão que é uma espécie de dono dela, numa idade na qual ela deveria ser liberada. Para Flávio, o Sr. Fernando deveria encontrar outra pessoa para cuidar de sua casa, uma vez que sua mãe fez o que tinha que fazer: cuidou dos filhos dele, mas ela não cuidou dos seus filhos.

A lei de número 5.859, de 1972, passou a garantir a toda a categoria de empregados domésticos o trabalho com carteira assinada, férias remuneradas de 30 dias, além de impedir que o funcionário tivesse descontado de seu salário os valores de alimentação, vestimenta, higiene e moradia, e a dispensa sem justa causa. Em 2015, a Lei Complementar 150 revogou a anterior, adicionando novos benefícios aos funcionários como estabelecimento de piso salarial, 13o salário e licença maternidade/paternidade, por exemplo. Entre outras mudanças ao longo dos anos, hoje, os principais direitos das domésticas são, além daqueles citados acima, a jornada de trabalho de no máximo 8h diárias, o pagamento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), seguro-desemprego, vale transporte, intervalo para o almoço e horas extras.

Flávio finalmente pode morar com a mãe, mas teme que o empregador dela volte a viver no Brasil. Teme pois isso poderia significar a volta de Maria Lucia para o apartamento do sr. Fernando, privando-o, mais uma vez da convivência com a genetriz. Teme também que Lucia termine seus dias fazendo o que fez a vida toda: cuidando da família dos outros.

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