Disque delivery:consumidor alimentado, entregador explorado

Informalidade fomenta a desigualdade e coloca a saúde do trabalhador em risco
por
Leticia Alcântara Andrade de Freitas
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10/10/2022

PRECARIZAÇÃO

Charge de:Vitor Teixeira
Charge de:Vitor Teixeira

 

Um dos pilares do sistema econômico capitalista, é a exploração da força de trabalho; desde seu surgimento tal política sempre visou um ritmo frenético de produção, exigindo desta forma além de eficiência, esforços dos trabalhadores muito além daqueles considerados saudáveis. Tais trabalhadores por sua vez, geralmente normalizam abdicar de saúde física e mental para exercer funções exaustivas e cargas horárias exorbitantes.

Contudo, este cenário já nada favorável, refere-se a funcionários de empresas sólidas que, respeitam ao menos em teoria as leis trabalhistas,  as quais asseguram o vigor de  direitos mínimos de seus empregados, como por exemplo, férias remuneradas, licença maternidade e paternidade, seguro desemprego, dentre outros. Porém,  no Brasil, nunca houveram oportunidades homogêneas, os cidadãos periféricos sempre sofreram as mazelas dos trabalhos subalternos que não garantiam nada, nem mesmo o alimento do hoje, quem dirá do amanhã, especialmente para trabalhadores autônomos,  os quais estas mesmas leis trabalhistas, costumam assegurar pouco, para não dizer quase nada.

 Estes brasileiros, sentem na pele a tão  comentada, precarização do trabalho que  como explica a advogada trabalhista, Dilma Mafra em termos jurídicos, a expressão refere-se ao surgimento de novas formas de trabalho, a partir de um processo de mudanças estruturais no capitalismo, que procura garantir competitividade às empresas por meio da flexibilização das relações de trabalho. Nesse processo, novas bases institucionais para o desenvolvimento do capitalismo apareceram.

 Com a eclosão da pandemia de Covid-19 em meados de março de 2020 o mercado de trabalho brasileiro passou a sentir os impactos causados pela doença, comércios fechados, empresas falidas, funcionários demitidos. Segundo dados levantados pelo IBGE divulgados no ano de 2021,o número de desempregados no país ultrapassou os 15,2 milhões no primeiro trimestre deste ano, taxa de 14,9% .  Diante disto, o que já era ruim, fica ainda pior, para sobreviver, muitos cidadãos buscam alternativas, os trabalhos informais a principal delas, sendo destaque entre as atividades, os motoboys, entregadores de comida para aplicativos de delivery. Durante a pandemia, a categoria teve um aumento exponencial de trabalhadores, a remuneração porém, não aumentou, ainda que as empresas tenham lucrado mais devido ao maior número de pedidos. Os maiores responsáveis por isso, ifood, rappi, uber; a maioria de nós, não só conhece bem como, consome diariamente.

Os entregadores, além de enfrentar os perigos diários que a combinação, moto e trânsito oferecem,  precisaram vencer o medo da doença, para garantir o sustento de suas famílias, além de submeter-se a condições precárias não tendo tempos de pausa para utilizar o banheiro, beber água ou se quer alimentar-se. Pense quão cruel é transportar a comida de alguém, enquanto você mesmo sente fome? Esta é a realidade de Rafael Souza, de 25 anos, que assim como milhares de brasileiros, perdeu seu emprego de  gerente de um supermercado durante a pandemia, sendo obrigado a buscar outras formas de trabalho, ingressando assim, no mundo das entregas. Rafael conta que na maioria dos lugares os quais retira as comidas, é tratado com descaso, e que o medo dos acidentes, é seu maior fantasma. Por sinal acidentes envolvendo motos, são realidade constante nas rodovias de São Paulo, e ao juntar os fatores pressa para fazer um número maior de entregas, logo receber mais, e o fator cansaço, os riscos são maiores ainda. 

Stefany Moreno, de 28 anos, também iniciou as entregas durante a pandemia, ela conta que seu horário de trabalho geralmente é das 11:00 da manhã às 23:00 da noite, totalizando 12 horas de trabalho, faça chuva ou faça sol, a mesma afirma ser necessário, pois mora sozinha e paga aluguel, contando ainda que já trabalhou efetuando entregas para um único estabelecimento, mas sobretudo quando a moto, sua ferramenta de trabalho quebrou, ela não só não recebeu nenhum auxílio para arrumá-la, como também foi dispensada.  

A Doutora Dilma, pontua que esse é exatamente o cerne das questões discutidas, os trabalhadores citados não têm vínculo algum. Em casos de roubo, assalto, sequestro e até casos de desaparecimento e morte, a empresa diz que não há vínculo com o motorista/entregador, de modo que não se responsabiliza com os prejuízos deste, ele ou a família arcam com o ônus. O que muito se discute é, se estas empresas, em especial os gigantes do delivery, infringem ou não as leis do trabalho uma vez que não existem vínculos formais; a advogada afirma que sim, e  bastante, pois nas relações de trabalho , há seis requisitos destinados a comprovar o vínculo sendo eles: serviço prestado por pessoa física, pessoalidade, não eventualidade, subordinação e onerosidade. Trabalhadores de aplicativos comprovam esses requisitos, não em sua totalidade,  mas a maioria, sim. E é essa comprovação que eles buscam quando judicializam, e que as empresas tentam burlar. Há outras questões também como responsabilização em casos de danos ao veículo, abastecimento com combustível, que seriam da responsabilidade da empresa de aplicativo ,se houvesse vínculo formal. Judicializar, seria a forma de fazer com que a empresa, a mando da justiça reconheça o vínculo,  inclusive já existem inúmeros casos, onde a justiça do trabalho determinou o reconhecimento.

O enfraquecimento dos elos trabalhistas, não limita-se apenas a afetar o exercício em si do trabalho, mas também afeta no sentido de provocar uma desestabilização e criar margens para desigualdades sociais. Por exemplo, um trabalhador que não tem um FGTS ou Seguro Desemprego, durante o período de desemprego, sem essas condições que assegurem sua subsistência, acaba deixado à margem da miserabilidade, não apenas em nível do consumo e da qualidade de vida, como também das perspectivas de vida futuras, da proteção social e do acesso a atividades coletivas,  igualmente em termos de ação e intervenção individual e coletiva, nomeadamente no que respeita à capacidade de defesa de interesses, pois tais práticas precarizantes tendem a golpear ou eliminar (direta ou indiretamente) os direitos de personalidade e as liberdades e garantias do cidadão, quais sejam: liberdade de expressão, direito de defesa coletiva, direito à igualdade de tratamento, direito de constituir família, direito ao descanso e lazer, premissas que integram o conceito de cidadania e que estão disposto na Constituição, como frisa Mafra.

A advogada finaliza dizendo que para reverter a atual situação, se faz necessária uma reestruturação nos diplomas legais em conjunto com Ministério do Trabalho, com pessoas atuantes e fiscalização existente e acirrada, além disso, o reconhecimento de vínculos desses trabalhos sem a necessidade de busca da tutela jurisdicional, seriam medidas importantes e destinadas a acabar ou menos a diminuir a problemática. A grande questão é que ainda há lacunas na legislação e essas lacunas precisam ser preenchidas, para ser possível  o vislumbre de uma mudança. 

A forte tendência neoliberal do governo atual, também é um dos fatores que contribuem para a perpetuação desse sistema , a doutrina que defende fortemente o intervenção mínima do Estado, ao priorizar e abrir várias brechas ao setor privado, negligencia o trabalhador, que acaba por ser sempre o elo mais fraco nas relações, especialmente as informais, com as grandes empresas.

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