Discutindo o aborto no Brasil

Uma reflexão sobre a saúde pública e o domínio do estado sobre corpos gestantes
por
Gabriel Britto, Marina Daquanno, Rafaela Serra, Thayná Alves
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01/07/2022

No Brasil, o aborto é estabelecido como crime há mais de 80 anos. O Código Penal Brasileiro determina punição para quem provocar ou consentir com a interrupção da gravidez. A pauta é alvo de discussões em todos os espectros políticos.

Projetos de lei tramitam pela câmara, tanto para descriminalizar quanto enrijecer ainda mais a prática; mas nos últimos anos, o cenário se manteve o mesmo. Enquanto isso, o país faz parte das 25% nações do mundo com as leis mais restritas em relação ao procedimento, o que agrava questões de saúde pública como o aborto inseguro e a mortalidade materna.

Os últimos dados sobre a questão do aborto inseguro são os do Ministério da Saúde levantados em 2015, onde é colocado que, naquele mesmo ano, 503 mil mulheres interromperam sua gestação voluntariamente. A nível mundial, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), são realizados mais de 25 milhões de abortos inseguros por ano. Dentre estes, cerca de 8% das mulheres vêm a falecer.

Usando outros países como forma de avaliar, observa-se a França, que após a legalização em 1975 viu a porcentagem de mulheres que realizavam o procedimento ao longo dos anos despencar. Entretanto, para muitos no Brasil, principalmente dentre a parte mais conservadora da população, o aborto deve ser criminalizado de todas as formas possíveis, vide declaração recente do secretário de Atenção Primária do Ministério da Saúde, Raphael Câmara, em que para ele “todo aborto é crime”.


A situação brasileira

Maíra Recchia é advogada formada em direito na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP) e atuou como diretora jurídica da Câmara Municipal de Jaguariúna, no cargo de conselheira do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Itapira/SP. Além disso, é também palestrante e autora de diversos artigos sobre violência política de gênero, e relembra que, diante dos artigos 124 a 126 do Código Penal de 1940, no Estado brasileiro é previsto que “estará cometendo crime a mulher que realizar o ato do aborto por conta própria, ou então, consentir que outra pessoa o faça - como um médico por exemplo - estando passível de um a três anos de prisão”.

Existe, entretanto, algumas circunstâncias isentam a mulher e o médico de julgamento, previsto no artigo 128 como aborto legal. São elas as vezes em que: gestação oferece risco para a vida da mulher, a gravidez é fruto de um estupro, se a mulher for menor de idade, deficiente mental ou incapaz, por autorização de seu representante legal, e, entrando em vigor apenas em 2012, em casos de anencefalia - má formação do feto.

É importante constatar que, em nenhum dos casos em que o procedimento é legal, o código penal obriga a mulher a ter que denunciar ou realizar boletim de ocorrência, para que possa ser atendida nos hospitais. Porém, a realidade é outra. “[...] muitas vezes os hospitais exigem ainda entram naquela resolução de 2012 do Ministério da Saúde, que não tem força de lei, e que fala que o aborto só pode ser feito até a 20ª semana. A lei não traz prazo pra isso. Isso é uma portaria, uma recomendação que não tem força de lei e que, portanto, não pode restringir um direito que uma lei federal concedeu.” ressalta a advogada.

Cássio Hayashi, médico cirurgião ginecologista, obstetra e coordenador da ginecologia da Clínica Fares, comenta sobre os casos em que a justiça libera o procedimento: “o processo burocrático consiste em atender a paciente em consulta e fazer o diagnóstico correto; emitir laudo para a justiça. A paciente procura advogado tanto público quanto privado e recebe liminar do juiz autorizando a interrupção da gestação.”

O médico afirma que quase todos os hospitais e postos podem realizar o primeiro atendimento, fazer a coleta de material biológico, tratar eventuais lesões, prevenir infecções e gestações indesejadas. “Boletins de ocorrência são feitos em delegacias de polícia. Alguns hospitais possuem este serviço também.”

Luara (nome fictício), 28, realizou o aborto por conta própria, com 1 mês e meio, e relata como se sentiu: “Foi um procedimento difícil, doloroso. É algo que até hoje causa uma certa emoção, uma certa tristeza. Te influencia muito aquela carga hormonal da gravidez. Mesmo que muitos digam “é apenas um amontoado de células”, por estar nos estágios recentes da gestação, nem coração tinha, mas era uma potencial vida.” e critica a posição da sociedade,  “A cobrança do Estado ela vem em cima da mulher ferozmente e esquece que o homem também é responsável.” 

Também fala do momento ida ao hospital público após o arriscado procedimento: “Me coagiam a todo momento a revelar que foi um aborto induzido. Quando a enfermeira do posto olhou com o espéculo para ver se o útero estava aberto, fez de maneira bruta, causando dor e desconforto e proferiu as seguintes palavras: ‘você não quis abortar? Agora aguenta’.”

Entre 2009 e 2018, foram 721 mortes de mulheres por aborto, segundo o DataSUS, plataforma do Ministério da Saúde. Destas, a cada dez que morreram, seis eram pretas ou pardas. A pesquisa mostra que no período entre 2016 e 2021, o SUS (Sistema Único de Saúde) atendeu 100 mulheres que sofreram abortos espontâneos ou complicações em procedimentos não realizados em hospitais. Apenas 8665 foram feitos com a autorização da justiça. Além disso, passaram por atendimento 877.863 pacientes após processos mal sucedidos.

Segundo Maíra Recchia, a grande diferença é que as mulheres que têm menos recursos vão fazer abortos clandestinos com pessoas não tão preparadas, pois os preços variam de maneira bastante substancial. “Neste sentido, há um impacto maior na vida das mulheres que são menos favorecidas economicamente, então elas acabam tendo mais sequelas e morrendo mais. De toda maneira, em um campo geral, em 2020 tivemos 80 mil mulheres que se socorreram no SUS por conta de abortos mal-feitos.”

Os relatos de agressões e constrangimentos, de quem procura atendimento médico após o procedimento, são vários. Thaila (nome fictício), 24, que interrompeu sua gestação em seu segundo mês, relata que, após o procedimento, foi ao hospital e a médica a tratou com distanciamento e pressa. “Disse que precisava dividir algo extremamente delicado. A médica, sem paciência, pediu que eu retirasse a máscara para falar e eu disse que realizei o aborto medicamentoso. Tentei usar os termos mais técnicos possíveis. [...] Ela mudou a expressão, me olhando com reprovação, me perguntou direto ‘não tinha como ficar com o neném?’, como se fosse um pet ou um bichinho de pelúcia. [...] A postura de reprovação se manteve e ela começou a me fazer perguntas de cunho investigativo, as quais eu não respondi.”

Com a situação financeira extremamente limitada - é uma das responsáveis por ajudar financeiramente sua família -, muitas mulheres como Thaila e Luara, são submetidas a tratamentos que refletem os discursos que reverberam um viés moralista. Como Maíra observa, "a gente tem uma resistência hoje que me parece ampla, que está nos mais diversos setores da sociedade e que encontra eco por conta destes discursos que são retrógrados com relação a vida da própria mulher."

Infelizmente, esta negligência ou má conduta pode ser responsável por afastar uma menina, mulher ou pessoa trans masculina do sistema de saúde, diante de casos graves e situações de necessidade, podendo levar à morte dessas pessoas. Thaila descreve o desamparo que sentia durante seu procedimento: “Eu não sabia se eu ia sobreviver, porque eu poderia ter uma hemorragia e não dar tempo de chegar no hospital. E inclusive tinha o medo da reprimenda de chegar no hospital, explicar o que aconteceu, que foi um aborto medicamentoso, portanto criminoso – de acordo com o Estado”.

Luara compartilha a mesma ansiedade do medo de ser denunciada: “como que você vai chegar no hospital e dizer que tentou um aborto e acha que deu errado? O médico pode muito bem chamar a polícia e te denunciar.”

Ambas usaram o medicamento Cytotec, que obtiveram acesso através de uma rede de apoio duvidosa, uma vez que o remédio está sujeito à precificação do fornecedor e orientação de uso do mesmo. Thaila afirma que recebeu da rede de apoio que encontrou no WhatsApp uma tabela que correlaciona as semanas de gestação com o número de pílulas necessárias para o procedimento, que não lhe dava garantia de eficácia, uma vez que não levava em consideração várias peculiaridades como peso ou estado de saúde. Já Luara precisou recorrer a um mercado extremamente informal e uma pessoa de índole duvidosa, descrevendo a situação como semelhante a quem procura drogas ilícitas, o que a deixava ainda mais apreensiva e insegura diante da falta de regulamentação do medicamento.

Cássio Hayashi comenta que nos abortos provocados, geralmente há uma carga social e financeira muito grande envolvida. “Mas o que se deve levar em conta são as sequelas psicológicas que eles podem deixar que não são poucas e muito menos leves.” No caso de Luara, só houve acompanhamento psicológico porque ela procurou.

A União, no período entre 2016 e 2020, destinou R$ 189 milhões ao SUS para internações destinadas a mulheres que tiveram abortos malsucedidos e somente 2 milhões de reais foram utilizados para abortos autorizados pela Justiça.

A maioria da população do país tem o conhecimento de que o aborto clandestino é um dos maiores causadores de mortes de mulheres grávidas no país. Segundo a pesquisa divulgada pelo Instituto Patrícia Galvão e pelo Instituto Locomotiva, em março de 2022, oito a cada dez pessoas fizeram a afirmação.

Maioria da população brasileira reconhece que o procedimento, quando feito sob condições precárias, representa ameaça às mulheres - Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Maioria da população brasileira reconhece que o procedimento, quando feito sob condições precárias, representa ameaça às mulheres - Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

 


O aborto no mundo

Apesar de parecer que a discussão sobre a legalização do aborto é um fenômeno atual e decorrente da vida moderna, o procedimento já acompanha a humanidade há um bom tempo.

Registros históricos indicam que o primeiro país a descriminalizar o aborto foi a União Soviética, em 1920, quando as mulheres tinham um papel importante na construção do país e passaram a ocupar cada vez mais postos de trabalhos nas indústrias. Diante deste contexto, o estado permitiu pois enxergava a gravidez como algo que atrapalharia o desenvolvimento da nação, mas posteriormente, em 1936, o conservadorismo stalinista revogou essa decisão e criminalizou a prática, que foi novamente descriminalizada em 1955.

Em um panorama mundial, observa-se que em países desenvolvidos – concentrados em sua maioria no hemisfério norte -, as legislações são mais liberais e menos punitivas em relação à questão do aborto, enquanto em países subdesenvolvidos – concentrados no hemisfério sul -, as leis são mais restritivas e o acesso a este procedimento é dificultado.

Cria-se um paradoxo, uma vez as maiores taxas de aborto encontram-se nos países onde as leis dificultam o processo abortivo e, associando este fator à clandestinidade, as maiores taxas de mortalidade materna também, além de outras consequências físicas e psicológicas pós procedimento inseguro. Em países desenvolvidos, como França, Canadá e Uruguai, a interrupção da gestação é feita sob solicitação da mulher.

De maneira geral, a curto prazo, o número de procedimentos tende a crescer durante um período, já que as mulheres passam a confiar mais no sistema de saúde e utilizá-lo com mais frequência – uma consequência previsível pós implementação da lei. A longo prazo, a descriminalização pode diminuir o número de abortos realizados em um país, o que está associado ao maior acesso a políticas públicas de saúde sexual e reprodutiva que fazem parte do processo de legalização, como campanhas de conscientização e educação sexual da população.  

No Uruguai, durante primeiros anos após a legalização, em 2012, houve um aumento no número de abortos e depois foi observada uma estabilização. Entre 2013 e 2014, os dois primeiros anos da lei em vigor, o número de abortos cresceu 27%; já entre 2016 e 2017 o aumento foi de 2%, de acordo com dados do Ministério da Saúde Pública (MSP) uruguaio.

Dentre os países da América do Sul, o aborto é legalizado em quatro países -  Argentina, Uruguai, Guiana e Guiana Francesa - e descriminalizado dois - Chile e Colombia. Nos demais, com excessão do Suriname, onde a prática é proibida, existem algumas circunstancias nas quais a interrupção é permitida, como em gestações de risco, casos de estupro e de anencefalia.  

Ao contrario dos Estados Unidos, onde, em junho de 2022, a Suprema Corte decidiu voltar atrás quanto à legalização do aborto, os países da América Latina têm avançado nas discussões, como menciona a advogada Maíra Recchia: “A boa notícia é que a América Latina vem sendo precursora neste sentido. Enquanto os EUA estão retrocedendo, a América Latina está nos dando esperanças com a paridade nas esferas de poder e com o avanço nas pautas que dizem respeito às mulheres.”

Michelle Bachelet decreta aborto legal no Chile, em setembro deste ano
Michelle Bachelet decreta aborto legal no Chile, em setembro de 2017

Direito básico de saúde x controle dos corpos

De acordo com a filósofa Hannah Arendt, em Origens do Totalitarismo, o sujeito de direito é aquele que tem sua cidadania preservada e, por consequência, sua dignidade humana. A abstração de corpos gestantes do sujeito de direito provoca a abertura para o descarte de vidas como supérfluas, uma vez que estes indivíduos estão destituídos de um tratamento totalmente igualitário dentro da sociedade. As noções de direitos não contemplam a todos e são insuficientes para coibir abusos de um governo calcado em valores patriarcais, homofóbicos e misóginos.

Como reflete a avogadada Maíra Recchia sobre o debate do aborto: “O controle de nossa ascensão política e econômica passa pelo contorno dos corpos, não só quando falamos de aborto como também quando falamos em um ideal de perfeição que não vemos com os homens, por exemplo. Temos pouquíssima representação feminina no congresso nacional. A corrida já é desigual na própria eleição.”

As esferas de poder da sociedade brasileira não só carecem de representação e pluralidade, como estão mal ocupadas, o que ficou evidente com o atual governo do país. Na frente do que deveria ser uma das maiores instituições de defesa e representatividade da mulher e dos direitos humanos, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), está a ministra Damares Alves, cujos discursos moralistas são regidos pelos valores de suas crenças pessoais e religiosas, que acabam ecoando pela camada da sociedade que se identifica com o pensamento defasado, ignóbil e ignorante de controle sobre os corpos e de um arquétipo feminino submisso.

A realidade mostra que não temos políticas públicas que contemplem acesso aos direitos de maneira igualitária, sequer compreende-se plenamente nas leis o quão plurais são os indivíduos que podem gestar. Mal encontramos dados sobre as porcentagens de homens trans, mulheres lésbicas ou indivíduos de outras orientações sexuais e identidades de gênero que abortam, que sofrem violência ou constrangimento dentro dos aparatos do sistema público de saúde e de justiça, que tem suas vidas e dignidade ignoradas quando o assunto é “Direito Reprodutivo”.

Quando questionada se é um desejo do Estado o controle dos corpos femininos, Maíra alega: “É um método: poucas mulheres nesses espaços, menores são as discussões sobre nossos direitos, sobre nossos corpos. Poucas mulheres decidem em segundo grau, menos decisões favoráveis às nossas pautas. É um olhar diferenciado para a questão de gênero, homens (cisgênero) jamais saberão o que as mulheres passam em alguns recortes, mas isso não quer dizer que eles não possam fazer parte da discussão. Eles têm que fazer parte da discussão como aliados das mulheres, e não querendo pautar algo que eles não vivem. Então, esse controle passa por uma questão de política de estado.”

Ainda que a discussão esteja longe de resultar em uma vitória para indivíduos capazes de gestar, aqui no Brasil, Maíra mantém a postura otimista ao pontuar os casos na América Latina de avanço das pautas em prol da legalização do aborto. A “maré verde” foi sinônimo de resistência e pressionou os governos a pensarem em medidas que visassem o indivíduo que gesta, e não a consequência dessa capacidade. 6 países, dos 13 que integram o continente Sul-Americano, ja legalizaram ou descriminalizaram o aborto, e isso ja é tem repercussão no debate brasileiro.

 

 

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