As dificuldades e os desafios de ser uma jogadora de futebol no Brasil

No país do preconceito e da falta de oportunidades, mulheres lutam diariamente para fazerem o que amam: jogar futebol
por
Filipe Morais e Silva Saochuk
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08/04/2021

               O Brasil é um país atrasado nos mais diversos fatores e questões, seja na política, na educação, na saúde, dentre outros incontáveis problemas que a população brasileira é obrigada a conviver diariamente, sem muita perspectiva de melhora. Porém, este atraso não se dá apenas nessas facetas da sociedade. Ele se encontra muito presente na cabeça de boa parte dos brasileiros.

            O futebol é e sempre foi, uma paixão nacional, tanto de homens, quanto de mulheres. Esta que talvez seja a principal característica do país perante o mundo afora, ao lado de samba e carnaval, é claro. Porém, com um histórico e enraizado preconceito e machismo, alguns não possuem o mesmo ‘direito’ em amar e viver o futebol, quanto outros.

            Em 1979, a seleção canarinho masculina já havia levantado a taça Jules Rimet por três vezes, consagrando a nação verde e amarela como a capital mundial do futebol. E a seleção feminina? Simplesmente não existia, pois até aquele ano, havia uma lei que proibia mulheres a praticarem futebol no país. Isso já esclarece um pouco a gravidade da situação em que as brasileiras apaixonadas pelo esporte, encontravam nas terras tupiniquins... ou será que ainda encontram?

            Desde aquela época, muita coisa mudou. A lei foi derrubada, e as mulheres começaram a estabelecer o seu devido espaço no futebol nacional. No ano de 1983, a modalidade foi finalmente regulamentada, permitindo a realização de campeonatos, utilização de estádios e a criação de escolinhas para meninas. Clubes como o Radar e o Saad, foram alguns dos pioneiros na profissionalização do futebol feminino.

Cinco anos depois, foi realizada uma ‘Copa do Mundo Experimental’ pela FIFA na China. A base do Brasil eram jogadoras do Radar e do Juventus da Mooca, e para se ter uma ideia da dificuldade e precariedade das atletas da seleção, os uniformes sequer foram confeccionados para elas, tendo que utilizarem sobras dos uniformes da seleção masculina. Mesmo assim, as brasileiras conquistaram uma medalha de bronze no torneio, como apontado pelo Globo Esporte (ge).

Figura 2: Partida entre Brasil e Holanda pela Copa do Mundo Experimental de 1983 (Foto: ge)

Partida entre Brasil e Holanda pela Copa do Mundo Experimental de 1983 (Foto: ge)

 

               Desde então, O Brasil mostrou que é o país da bola não apenas no masculino. Com o passar dos anos, a história foi sendo escrita, aumentando a cada conquista, a relevância e o respeito pela modalidade. Ao todo, em seus pouco mais de 40 anos de atividades, a seleção brasileira feminina é hepta campeã da Copa América, conquistou três medalhas de ouro nos Jogos Pan Americanos, três na Universíada de Verão e mais três nos Jogos Mundiais Militares. Ainda tem em sua história um vice-campeonato na Copa do Mundo de 2007 e duas medalhas de prata nas Olímpiadas de Atenas em 2004, e Pequim em 2008, além de ter formado a maior e melhor jogadora de todos os tempos, Marta.

            Com uma história recente, e mesmo assim tão rica e repleta de conquistas, é natural imaginar que o Brasil seja uma das grandes potências da modalidade, e que assim como no masculino, seja possível que as garotas que gostem de futebol, recebam o devido incentivo e respeito, para que possam realizar o seu sonho de um dia se tornar uma atleta profissional... certo? Infelizmente a realidade é outra.

            Em entrevista ao Contraponto, a ex-jogadora Bruna Turcatto, contou um pouco dos desafios de sua carreira, e todas as dificuldades que enfrentou, como a falta de incentivo emocional e financeiro para buscar seu sonho, e ainda o preconceito que sofreu por simplesmente ser uma mulher, que buscava ser jogadora de futebol no Brasil.

            “Graças a dificuldade que é jogar futebol no Brasil, a minha história no esporte é relativamente curta... Desde pequena fui ligada ao futebol, acompanhava meu pai na várzea, e minha mãe também gostava de jogar futebol, era uma boa jogadora. Comecei jogando na Escolinha do Bebeto, e como não tinha um time feminino, jogava com os meninos. Desde essa época, já sofria com o preconceito por ser a única menina do time, era muitas vezes deixada por último... no fim, acabei ficando pouco tempo por lá”. Comentou Bruna.

            Apesar das dificuldades, nunca parou de jogar, e após algum tempo no futebol de salão, foi convidada para fazer testes em alguns times profissionais, como a Portuguesa. Porém, por ser um caminho repleto de incertezas e dificuldades, não recebeu muito incentivo de seus país para tentar ganhar a vida sendo jogadora. Se formou em educação física, e por um bom tempo, esse sonho de ser uma atleta profissional, foi deixado de lado. Mas como um daqueles casos proporcionados pelo destino, de uma hora para a outra, o futebol voltou a fazer parte dos planos de Bruna.

            “E então eu conheci a Aline (goleira da Seleção Brasileira). Fomos aos Estados Unidos e ela estava voltando a jogar futebol. Quando eu a conheci, ela era técnica em UCLA, mas quis voltar a jogar por ter o sonho de ir para as Olímpiadas... e assim aconteceu. Após ela disputar as Olimpíadas, nos mudamos para a Hungria, e lá eu finalmente realizei meu sonho de ser jogadora profissional, mesmo depois de mais de dez anos sem sequer poder sonhar com isso”.

            Foi contratada aos 27 anos pelo Eto Gyor, da segunda divisão húngara, mas conta que mesmo assim, a infraestrutura estava muito acima do nível da maioria dos clubes do Brasil, incluindo as grandes equipes. Ao fim da temporada na Hungria, retornou ao Brasil para jogar pela Portuguesa, na primeira divisão do Campeonato Brasileiro.

            “O futebol nacional sofre muito com a falta e incentivo e investimento. Quando joguei na Portuguesa, não tínhamos patrocínio e nem suporte financeiro. O nosso treinador era o dono do feminino, não tínhamos sequer acesso a um departamento de fisioterapia, e o que recebíamos era uma ajuda de custo, pois não dava nem para ser considerado um salário. Eu treinava de manhã e trabalhava como preparadora física a tarde para conseguir me manter... todas as meninas tinham que se esforçar muito para conseguirem jogar futebol, e olha que eu estou falando de um clube de primeira divisão”.

            Após a passagem pela Portuguesa, Bruna se transferiu para o Tenerife, da Espanha, pois Aline recebeu uma proposta da equipe espanhola e ambas rumaram para a terra do Rei Filipe VI. Lá, Bruna atuou pelo Tenerife da segunda divisão e relatou que em questão de nível técnico, se comparava ao futebol da divisão de elite no Brasil, porém em relação a recursos e infraestrutura, o novo clube estava anos luz à frente. Após meia temporada, Bruna Turcatto decidiu se aposentar e segue atuando no clube pelo departamento de preparação física, enquanto Aline segue como goleira da equipe principal.

            Agora contaremos um pouco do outro lado da história. O Contraponto conversou com Aline Reis, goleira campeã pela seleção brasileira, e que ao contrário de Bruna, recebeu apoio nos mais diversos sentidos e conseguiu pavimentar o seu caminho no futebol profissional.

            “Nasci na cidade de Aguaí, no interior de São Paulo. Meus pais se divorciaram quando ainda era muito jovem, e por volta dos meus cinco anos, minha mãe se mudou para Campinas-SP. Fui junto com ela para a nova cidade, onde cresci e tive a minha primeira oportunidade no futebol. Comecei pelo time feminino do Guarani, e algum tempo depois, após me formar no colegial, recebi a grande oportunidade de ir para os Estados Unidos para poder estudar e jogar em uma universidade”.

            Aline não jogou em qualquer universidade. A bolsa que recebeu foi da University of Central Florida, a popular UCF, uma das tradicionais universidades americanas. Ao contrário do Brasil, nos Estados Unidos o futebol feminino recebe um grande apoio, não apenas financeiro, mas da sociedade, sendo este alguns dos fatores que transformaram o país em uma das principais potências da categoria.

            Logo em seu primeiro ano, precisou passar por uma cirurgia, ao sofrer uma lesão no Ligamento Cruzado Anterior (LCA) de seu joelho direito. Mas depois de alguns meses de recuperação, Aline Reis retornou em grande forma, e suas grandes performances atraíram os olhares da Seleção Brasileira. Com quatro belos anos jogando por UCF, foi convocada para treinar por 15 dias com a equipe principal do Brasil no ano de 2009, apesar da pouca idade. Aquele grupo jogou apenas um jogo, porém, Aline foi a goleira titular e conseguiu sua primeira vitória com a ‘amarelinha’.

 

Aline Reis pela seleção brasileira (Foto: UCF Knights)

Aline Reis pela seleção brasileira (Foto: UCF Knights)

 

             Naquele ano assinou um contrato com uma equipe da primeira divisão finlandesa, sendo este, o seu primeiro contrato profissional. Ela teve uma temporada de grande destaque, recebendo diversos prêmios de Melhor Jogadora em Campo, o que lhe rendeu duas propostas dos principais times da Finlândia. Porém, foi aí que Aline Reis surpreendeu a todos, e decidiu se aposentar do futebol, para fazer um mestrado nos Estados Unidos, e continuar estudando.

            “Apareceu no meu caminho a oportunidade do mestrado em UCLA (outra histórica universidade americana), em que eu poderia continuar estudando e seguir participando no futebol, em um cargo técnico e administrativo. Porém, em 2015, assistindo a Copa do Mundo, eu tive muita vontade de voltar a jogar, afinal, havia me aposentado muito cedo. Após aquele dia, voltei a treinar e a jogar para buscar o meu sonho de disputar as Olimpíadas”.

            Precisando se recolocar sob os olhares da comissão técnica brasileira, Aline voltou para o Brasil em busca de seus objetivos, e uma proposta da Ferroviária, atual campeã da Libertadores Feminina daquele ano, deu uma grande oportunidade para que pudesse atingi-los. O seu bom desempenho com a equipe de Araraquara, lhe rendeu convocações e uma vaga na lista final para os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. O sonho foi finalmente alcançado, quando Aline foi titular contra África do Sul e realizou grandes defesas, em frente à 38 mil pessoas na Arena Amazônia em Manaus. Entretanto, Aline Reis não parou por aí, e seguiu trilhando seu legado na Seleção Brasileira.

            “Continuei participando dos jogos da Seleção nos anos seguintes, quando fomos campeãs da Copa América, e fui convocada para participar de minha primeira Copa do Mundo, em 2019, na França. Não pretendo parar por aí, e sigo trabalhando duro para conquistar o meu espaço nas Olimpíadas de Tóquio deste ano, que já era para ter acontecido, mas que acabou sendo adiada para este ano por conta da pandemia.” concluiu a goleira do Brasil, Aline Reis.

            Como já sabemos através da história de sua companheira, Bruna Turcatto, Aline foi contratada pelo Tenerife, equipe da elite do futebol espanhol, onde é titular e como ela mesma disse, segue trabalhando para estar entre as principais jogadoras do país para os Jogos de Tóquio que se aproximam.

            Ambas as histórias são completamente opostas (apesar de terem se cruzado ao longo do caminho), mas possuem um fator em comum: a paixão das mulheres pelo futebol. Os relatos de Bruna sobre sua passagem pelo futebol esclarecem tudo aquilo que, infelizmente, já é de conhecimento de todos. Ser uma jogadora de futebol, principalmente no Brasil, é lutar diariamente com a falta de incentivo, total falta de infraestrutura para treinos e jogos, contra o preconceito e o machismo. É fato que essa situação já melhorou muito ao longo do tempo, mas ainda sim, é um caminho extremamente difícil e injusto com aquelas garotas que sonham em viver do esporte.

            Já a história de Aline Reis no futebol, é exatamente tudo aquilo que as jovens meninas amantes da bola, precisariam e mereceriam ter. Um apoio familiar para buscar o seu sonho, um suporte financeiro e uma grande oportunidade para mostrar o seu talento dentro de campo, sem serem julgadas ou descriminadas. A possibilidade de Aline jogar fora do país, evidenciou ainda mais, uma diferença estrutural e cultural que o Brasil possui perante outras nações espalhadas pelo mundo, quando o assunto é futebol feminino.

            Como diria Samuel Rosa, na música ‘Uma partida de futebol’... Quem não sonhou em ser um jogador de futebol? Seja menino ou menina, muitos jovens brasileiros já sonharam um dia em se tornar um/uma atleta profissional e vestir a camisa da seleção brasileira, independentemente se a pessoa gostaria de ser um novo Pelé, ou uma nova Marta. Espera-se apenas justiça e respeito, e que as meninas não precisem se preocupar se irão ter como comprar seus alimentos ou ter um uniforme para vestir, e muito menos terem que lutar contra o machismo e o preconceito da sociedade brasileira... afinal, elas só querem poder jogar futebol.

           

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