A difícil tarefa de romper o silêncio do próprio corpo

Autoaceitação, cirurgias negadas, abandono familiar e invisibilidade: o que significa, de fato, ser um homem trans no Brasil
por
Sophia Dolores
|
10/06/2025

Por Sophia Guimarães

 

Nicolas tinha 16 anos quando pensou seriamente em desaparecer pela primeira vez. Não sumir do mundo, mas desaparecer do próprio corpo. Vivia numa cidade pequena do interior paulista, onde todo mundo sabia da vida de todo mundo - e um lugar em que os olhos eram mais afiados do que compreensivos. A cada ciclo menstrual, o incômodo físico era mínimo diante da dor emocional que carregava: sangrava um corpo que não reconhecia como seu. Sangrava a negação constante da própria identidade. Sangrava o silêncio da escola, da família, do sistema de saúde. Era como se, a cada mês, o mundo gritasse que ele não era quem dizia ser.

A menstruação é apenas uma das camadas da dor. Para muitos homens trans ela é o lembrete mensal de uma desconexão entre o corpo e a identidade - mas está longe de ser a única. Existem tantas outras dores: a disforia, o preconceito, a marginalização, a dificuldade de acesso a hormônios e cirurgias, a violência cotidiana. E o mais cruel: muitas dessas dores são compartilhadas, repetidas em vozes diferentes, em cidades diferentes, em histórias que se encontram na intersecção entre identidade e resistência.

É também o caso de Fernando. Tem 24 anos e hoje vive em São Paulo, mas carrega no peito as cicatrizes da juventude vivida no sul de Minas Gerais. Diz que passou anos tentando se convencer de que era só uma fase - só que a fase nunca passou. Ele não queria ser uma garota masculinizada, ele era um homem tentando sobreviver em um corpo lido como errado. O processo de aceitação foi tão solitário quanto doloroso. A disforia, que por vezes era paralisante, se misturava ao medo do julgamento da família, da igreja, dos vizinhos. O mundo parecia não querer que ele existisse, e começou a acreditar que talvez não devesse mesmo existir.

A falta de acesso a recursos de saúde específicos para pessoas trans é um obstáculo constante. O Sistema Único de Saúde prevê o atendimento a essa população, mas a realidade está distante do que está no papel. A fila para cirurgias de redesignação é longa e a espera pode durar mais de dez anos. Há poucos hospitais habilitados para realizar os procedimentos e a burocracia é gigantesca. Muitos desistem no meio do caminho. Outros, quando conseguem acesso enfrentam uma nova violência: a do julgamento dentro do próprio consultório.

Gustavo, de 29 anos, se lembra da primeira consulta com um ginecologista após começar a terapia hormonal. Ele o olhou de cima a baixo, perguntou por que estava ali, e quando explicou, ele disse:-  ‘Mas você sabe que isso aqui é uma clínica feminina, né?’.” Gustavo foi mais um que saiu da consulta sem atendimento - e com mais um trauma. Por sorte, encontrou mais tarde uma rede de acolhimento em um centro de saúde LGBTQIA+ que o orientou. Mas poucos não desistem depois do primeiro não.

Além da dor física e emocional, há a material: a exclusão social. De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), mais de 90% das pessoas trans no Brasil não têm acesso a empregos formais. Muitos são expulsos de casa ainda na adolescência, como aconteceu com Caio, 19 anos, morador de rua em Porto Alegre. “Me colocaram pra fora quando contei que era um homem trans. Dormi em banco de praça, sofri violência, passei fome. Mas nada doía mais do que ouvir da minha mãe que eu não era filho dela.”

A pobreza menstrual também atravessa essas histórias de forma crua e silenciosa. Para quem vive em situação de rua, como Caio, o ciclo menstrual era um tormento inevitável. Sem acesso a banheiros ou produtos de higiene, ele improvisava com pedaços de pano, papelão, qualquer coisa que pudesse conter o sangue e a vergonha. O desconforto físico era constante, mas era o constrangimento que mais doía. Quando percebia que estava menstruando, Caio se escondia. Sentia-se envergonhado, tomado pelo medo de que alguém percebesse. Na rua, tudo é mais difícil — mas para quem tem um corpo fora do padrão, a rua pode ser ainda mais cruel. As dores da masculinidade trans, no entanto, não são apenas as da exclusão. São também as da construção. Para muitos, ser homem trans é viver uma reinvenção constante. É aprender a performar uma masculinidade que não lhes foi ensinada. É lidar com o medo de ser confundido, com a expectativa social do que é “ser homem de verdade”, com o peso da virilidade tóxica que muitas vezes oprime ao invés de libertar.

Cristian, aos 35 anos, já passou por toda a transição, mas ainda vive em conflito com o espelho. A cirurgia trouxe alívio, mas não foi capaz de apagar as dores acumuladas ao longo dos anos. As marcas da violência, as humilhações sofridas, a vergonha carregada no silêncio de uma existência vigiada continuam ali, mesmo que o corpo agora seja outro. Cristian ainda sente que precisa se justificar o tempo todo, como se sua identidade exigisse uma explicação constante. Porque, ao contrário do que muitos pensam, ser trans não é apenas mudar o nome ou o corpo. É uma reconstrução diária do mundo ao redor, para que seja possível, simplesmente, existir.

Fernando, por exemplo, não se lembra de quando começou a se sentir estranho no próprio corpo - só se lembra de nunca ter se sentido certo. Cresceu tentando se encaixar, obedecendo à imagem que esperavam dele, até que, um dia, o peso desse esforço se tornou insuportável. Ninguém o perguntou como ele se sentia. Fernando aprendeu, ali, que sua dor não cabia no vocabulário da família. E então guardou para si, como quem esconde um crime. Foram anos vivendo em silêncio até conseguir, já adulto, se mudar para São Paulo - não em busca de liberdade, mas de ar. Só queria respirar.

Hoje ele trabalha como tatuador em um estúdio que acolhe pessoas LGBTQIA+, mas ainda vive com a sensação de que o corpo inteiro é um campo minado. Algumas palavras ainda doem, certos toques o incomodam, há lugares em que não entra - não quer enfrentar olhares inquisidores. Parece que a transição foi um alívio pela metade. Ao mesmo tempo em que conquistou espaço e voz, perdeu vínculos, enfrentou rupturas. A família nunca o aceitou, o pai morreu sem nunca chamá-lo pelo nome social. Essas feridas, segundo ele, não cicatrizam, só ficam fundas demais para sangrar na superfície.

Gustavo, por sua vez, nunca quis ser ativista, mas entendeu cedo que ser um homem trans no Brasil é, por si só, um ato político. A partir do momento em que começou a hormonização, os olhares mudaram - e a cobrança também. Antes invisível, passou a ser observado com desconfiança, como se estivesse cometendo um engano. No ambiente de trabalho, precisou se provar duas vezes mais competente para ser levado a sério. No convívio social, enfrentou piadas, insinuações, tentativas de "entender melhor" o que ele era. Como se fosse possível traduzir sua identidade em uma explicação rápida, palatável, sem camadas. Por muito tempo, Gustavo tentou se calar para evitar confronto. Hoje, não mais. Aprendeu que o silêncio também o adoecia.

Ele encontrou força na escuta dos pares. Foi num grupo de apoio que conheceu outras histórias como a sua, que percebeu que a solidão era construída, não natural. Descobriu, também, a potência do afeto entre iguais. “O acolhimento salva” - e foi esse acolhimento que o motivou a se envolver com uma ONG local que oferece atendimento psicológico gratuito para pessoas trans. Lá, ele ajuda a organizar rodas de conversa, articula parcerias com universidades e, mais recentemente, começou a desenvolver um projeto de capacitação para profissionais da saúde. Quer que ninguém mais precise sair chorando de uma consulta, como ele saiu.

A mídia e a publicidade começam, timidamente, a dar espaço para essas vozes. Mas ainda é pouco. Produtos como cuecas absorventes e campanhas com linguagem neutra são avanços importantes, mas é preciso ir além da vitrine. Representatividade não é só aparecer: é ser ouvido, respeitado, incluído. E isso começa na escuta ativa, na educação que rompe com o binarismo, no atendimento de saúde humanizado, nas leis que protejam e reconheçam estes. 

Há, no entanto, esperança. Ela aparece nas pequenas vitórias diárias: o nome social respeitado em um crachá de trabalho, a consulta médica sem constrangimento, a compra de um absorvente sem olhares inquisidores. Aparece na resistência coletiva, nas redes de apoio entre homens trans que se acolhem e se fortalecem. A vontade de transformar a própria dor em cuidado surge em Nicolas, que hoje, aos 22 anos, estuda para se tornar enfermeiro. Ele carrega no peito a decisão de atuar na saúde da população trans, porque sabe exatamente como é estar do outro lado da mesa. Viveu o descaso, o despreparo, o olhar torto. A dor de ser um homem trans no Brasil é profunda e multifacetada. É uma dor que sangra, que pesa, que silencia. Mas também é uma dor que se transforma. Em luta, em rede, em existência. Porque cada um desses corpos que o mundo insiste em negar continua aqui, insistindo em existir. E existir, para muitos deles, é o ato mais revolucionário de todos.

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