Desinformação na Guerra da Ucrânia

Durante a Guerra entre Rússia e Ucrânia, mensagens e vídeos fazem parte de campanhas de desinformação de ambos os lados
por
Carlos E. Gonçalves, Guilherme Campos, Mateus França e Tomás Furtado
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08/04/2022

     Com o aumento da tensão entre Rússia e Ucrânia, situação que já perdurava desde 2014, com anexação russa da Crimeia, fez com que a região ao leste do país, conhecida por Donbass, se tornasse ao decorrer dos anos, uma zona militarizada. Após diversas ameaças de invasão, com o exército russo fazendo manobras e ameaçando o país vizinho, em fevereiro de 2022 o conflito se instalou, a Rússia invadia a Ucrânia. Por mais que a população ucraniana encarasse a chance de invasão como remota, o governo também acreditava na possibilidade de negociação por meios diplomáticos. Mesmo com o progressivo aumento de contingente na fronteira, imaginava-se que era somente um exercício militar de demonstração de poder.

DESINFORMAÇÃO DE GUERRA
     No início do mês de fevereiro, o jornal americano Washington Post, já estava especulando que os preparativos russos para a invasão estariam praticamente prontos, dizendo que Kiev seria tomada em 48 horas, com 50 mil civis mortos e cinco milhões de refugiados. Com a escalada de desinformação da mídia norte-americana sobre uma possível invasão russa iminente, o governo ucraniano interviu dizendo que ainda haveria possibilidades de uma solução com a Rússia, sendo mais promissoras que uma escalada militar.  
Por sua vez, o vice-representante russo na ONU, Dmitry Polyansky classificou de loucura as acusações da mídia ocidental sobre o tempo que levaria para as tropas russas tomarem Kiev em uma suposta invasão à Ucrânia: “A loucura e o alarmismo continuam. O que aconteceria se disséssemos que os EUA poderiam tomar Londres em uma semana e causar 300.000 mortes de civis?”, disse Polyansky ao comentar sobre a matéria do jornal Washington Post.
     O jornal Bloomberg, que durante 30 minutos manteve nas redes a desinformação de que a Rússia já havia invadido. Após o grave erro, a Bloomberg teve que se explicar, dizendo que era uma matéria pronta, e que iria investigar como a matéria foi ao ar. O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, disse que a peça enganosa de Bloomberg mostra as “tensões extremamente elevadas, estimuladas pela postura agressiva do Ocidente sobre a Rússia” e que tais relatórios provocativos podem levar a “consequências irreparáveis”, advertindo que “qualquer faísca é extraordinariamente perigosa”.
     Nos dias anteriores ao ataque, o jornal Washington Post reafirmou que a Rússia supostamente estaria prestes a terminar os preparativos para uma invasão e que já concentrava nas fronteiras cerca de 70% das forças e das capacidades necessárias para uma invasão em grande escala.  A Ucrânia pela primeira vez teve que discordar em público de Washington quanto à “iminência de uma invasão russa”, e com o presidente Volodymyr Zelensky alertando que esse alarmismo estava desestabilizando a economia ucraniana e causando uma fuga maciça de dólares.
     A Rússia afirmou que não havia planos de invadir a Ucrânia, que Kiev precisava negociar diretamente com os revoltosos do Donbass e colocar na constituição os direitos e garantias que lhe foram dados pelos acordos de Minsk, endossados pelo Conselho de Segurança da ONU, e que no que dependesse da Rússia não haveria guerra.

A FALHA DO DEPARTAMENTO DE ESTADO AMERICANO
     O porta-voz do Departamento de Estado, Ned Price, propagou de forma despretensiosa notícias falsas dentro do governo, com a mentira sobre um vídeo russo que seria usado para justificar a invasão da Ucrânia. A atitude foi contestada por um jornalista da Associated Press, que exigiu que ele apresentasse provas do que dizia. Em contrapartida, Price tentou intimidar o jornalista por duvidar das informações da inteligência americana e da britânica, e insinuando-o que ele era um amigo de Putin.
Outra questão levantada foi sobre o adjetivo “iminente”, que foi usado em demasia pela mídia sensacionalista e pelo governo americano quando se falava do possível ataque russo; expressão que vem de um pensamento militar-industrial norte americano que já foi utilizado em outras guerras. Precisando repensar quando se deve ser utilizado, já que representa um alto grau de emergência quando utilizado em uma notícia ou discurso. A porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, a qual utilizava o adjetivo, disse que não vai mais usar o termo. 
     Após completado mais de um mês da invasão russa à Ucrânia, a perda para ambos os lados se torna evidente quando se é contabilizado o prejuízo. Calculado por estimativas divergentes, cerca de 1.500 civis já se tornaram vítimas da guerra. Segundo os dados da Organização das Nações Unidas (ONU), a soma já alcança 4 milhões de refugiados e 7 milhões de pessoas em deslocamento interno. Com o avanço do cerco militar russo em volta da capital Lviv, a condição de sobrevivência se torna cada vez mais precária, graças à escassez de remédio, a falta de alimentos e um sistema de saúde praticamente paralisado. Porém, mesmo com toda insalubridade que há, uma parcela da população que se nega a sair da capital. 

ÁRVORES PELA FLORESTA
     Nas últimas semanas, a guerra na Ucrânia foi caracterizada pela sua grande midiatização, da qual foi em grande parte proporcionada por fontes de gravação amadora nas redes sociais, onde usuários do Twitter, Facebook, Reddit, entre outras mídias de comunicação, onde as imagens do front eram gravadas e postadas na internet sem nenhum mediador. Esses recortes seriam captados por páginas de notícias online que adaptaram esses vídeos, editando o texto para atender as demandas do seu grupo desejado. Traduzido do russo para o inglês, mudando as datas, os nomes, os lugares, as pessoas e os eventos ocorridos como um jogo de telefone sem fio com milhares de participantes.
     A guerra da Ucrânia pode até mesmo ser a guerra mais midiatizada nos dias de hoje, mas a veracidade da grande maioria dessa produção deve ser levada em consideração. Em sua peça de opinião, Nicholas Moran exemplifica como as imagens capturadas na guerra podem ser manipuladas facilmente, induzindo uma conclusão a partir do momento em que o vídeo acaba. Esse conceito é exemplificado por meio de um vídeo onde ele cria três vídeos, com três nomes e conclusões por meio do trecho em que a gravação é encerrada. 
     No trecho, uma coluna de tanques está cruzando uma estrada quando um tanque é atingido por um míssil saindo de uma floresta na região formando uma bola de fogo, na segunda versão, o vídeo continua e o tanque saí da bola de fogo, aparentemente  ignorando o míssil seguindo a estrada enquanto o resto das coluna começa a engajar a emboscada, e na terceira o tanque atingido pelo explode devido a uma reação em cadeia.
     No vídeo, Moran usa o termo de "Confundir as árvores pela floresta" afirmando que esses recortes dos eventos ocorrendo não necessariamente representam a natureza completa do conflito, destacando que batalhas perdidas não são enviadas para a internet e que imagens de guerra são mais difíceis de interpretar do que bolas de fogo e imagens de veículos queimando.
     A disseminação de informação falsa não é uma capacidade exclusiva do Kremlin, a Ucrânia é considerada vencedora da guerra de informação no Oeste. São as suas forças armadas que tem mais de seus feitos filmados e publicados na Internet, a situação de Davi versus Golias as suas histórias são recontadas mais vezes, fazendo da propaganda uma ferramenta para a motivação das tropas e para manter o suporte internacional.

O SOLDADO COMO MÁRTIR
     No começo da guerra quando os avanços da Federação Russa começaram a estagnar e o combate armado foi se tornando mais estático, foi visto o processo de martirização de muitos soldados Ucrânianos que morreram nos primeiros dias da guerra, casos como Vitaly Skalkun que se explodiu com uma ponte para atrasar o avanço inimigo, a guarnição de menos de vinte homens na ilha das cobras xingando um navio de guerra Russo com o intuito de tomar a ilha, o último do qual acabaram sobrevivendo o engajamento e foram capturados como prisioneiros quando era considerado que todos haviam morrido em combate. Todos exemplificando a ideia de martírio, da transformação desses homens em figuras sobre-humanas, desafiando estimativas descomunais e sendo imortalizados como lendas.
     Um dos exemplos mais fortes da campanha de transformar as forças armadas ucranianas em figuras quase que sobrenaturais foi no caso da lenda urbana do fantasma  de Kiev. A história de um veterano da força aérea voltando ao serviço para servir ao seu país, criando uma ferro velho de caças, tanques e todo tipo de equipamento Russo no seu caminho.
     A popularização dessa lenda urbana começou em posts do exército Ucrâniano com as notícias de mobilização total e do chamado dos reservistas para as forças armadas. O apelido acabou pegando, com engajamentos cada vez mais detalhados sendo adicionados para a contribuição ao conflito na sua página da Wikipédia. De um abate de 6 caças na primeira semana da guerra para uma lista exata coletada de todos os modelos precisos de mais de 40 impactos, incluindo os mortos pela explosão. 
     Por um período, a identidade secreta do fantasma foi assumido por Vladimir Abdonov, que usando ferramentas de photoshop e de captura de tela, editou seu rosto em uma série de imagens em rostos de pilotos de caça e até mesmo no de Vitaly Skalkun como evidência de sua participação, junto com imagens de combate geradas num simulador de voo.

JOGOS COMO IMAGEM DE CAMPO
     O streamer de jogos Thomas Rim, mais conhecido pelos seus vídeos de jogos de estratégia no Youtube e ser anfitrião para eventos elaborados de combate para até 64 jogadores em Arma 3, surpreendeu seu público ao trabalhar com a cobertura da ocupação do Afeganistão e a sua atuação com o serviço de Inteligência Americana para apagar da internet o nome de Indivíduos que auxiliaram as forças Estadunidenses para evitar a perseguição desses Indivíduos pelo regime Talibã. Ele viria a realizar um projeto jornalístico similar em Fevereiro, com uma Livestream de 9 horas no Twitch com o intuito de desbancar o máximo de Fake News que foram se acumulando durante os primeiros dias da guerra.
     Durante as primeiras 24 horas da invasão da Ucrânia, começou a circular no aparelho de mídia social TikTok um vídeo de um avião sendo abatido por mísseis antiaéreos durante a manhã. Essa vídeo foi enviado a Thomas lá pela quinta hora da sua produção, que após assistir, pediu uma pausa de cinco minutos, retornando com uma recriação da imagem, produzindo o mesmo som de disparo e impacto do míssil do vídeo, assim como a JPEG da explosão emitida após o foguete acertar seu alvo, com o streamer olhando para a tela. Sua audiência mais recorrente já sabendo que jogo utilizado para a produção dessas imagens que circulavam nas mídias sociais era Arma 3, ao qual Thomas Rim já era profundamente familiarizado.
     Desenvolvido pela companhia de jogos  Bohemia Interactive, Arma 3,o jogo tático mundo aberto de simulador militar de primeira e terceira pessoa lançado em 2013 ainda tem uma uma comunidade fiel construída a partir da produção de cenários militares táticos produzidos pelos desenvolvedores ou os próprios jogadores, dispondo do vasto arsenal de modelos detalhados de veículos e equipamento militar que são constantemente atualizados.
     Com os pacotes de textura certos, você consegue recriar cenas da queda de Saigon no Vietnã ou da Invasão de Hoth em Guerra nas Estrelas, no entanto o caso relevante para essa matéria é o uso desses simuladores para criar engajamentos que se assemelham aos de conflitos atuais. Estes, acabam sendo repassados como imagens de combate no campo.
     Até mesmo no Brasil, a rede de jornal Jovem Pan foi culpada desse comportamento, colocando o mesmo vídeo que acabou passando ao vivo em rede nacional como imagens recentes tiradas do front. Sendo reconhecidas de imediato pelos fãs do jogo e sendo ridicularizada nas redes sociais, deletando o vídeo de seus arquivos midiáticos pouco depois.
     O mesmo vídeo também foi apresentado como sinais de desenvolvimentos recentes em combates entre a Índia e a China no vale de Panjshir, forças armadas dos Estados Unidos contra Insurgentes Talibãs, soldados Israelenses em mais uma investida contra a Palestina, entre outros avistamentos do mesmo clipe, que já foram confirmados pela própria companhia de ser produtos de uma edição de imagens capturadas dentro do jogo. “Nós somos regularmente notificados sobre esse tipo de coisa por agências de checagem de fatos, de imagens dos nossos jogos sendo usados durante a cobertura de notícias no mundo real” 
     A companhia já está acostumada a esse tipo de situação, existem grande parte da comunidade que é dedicada a produção de pacotes de texturas e a realismo, já admitindo que não tem muito o que fazer sobre o assunto, apenas apontar essas gravações como falsas após serem publicadas nas redes sociais e desencorajar outros de que façam o mesmo. 
 

Uma entrevista com a professora Pollyana Ferrari, escritora e pesquisadora em comunicação Digital, e Sabrina Medeiros, ex-professora associada da escola de guerra naval e atual professora de relações internacionais na Universidade Lusófona em Lisboa oferecem um olhar aprofundado sobre os tópicos discutidos no texto acima. 

Questões como as possíveis consequências da guerra para a geopolítica e o papel da informação foram abordados no podcast, e você pode conferir tudo isso e muito mais clicando aqui.

 

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