Desinformação leva mulheres ao pânico de engravidar

Conhecido como tocofobia, o medo da gravidez coloca saúde em risco e denuncia gravidade da política contra educação sexual
por
Carol Raciunas e Juliana Mello
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07/07/2023

O medo exagerado de engravidar, conhecido como tocofobia, acomete 6 em cada 10 mulheres, conforme apontado por um estudo estadunidense. Os processos, que partem desde a vontade de não ter filhos até problemas socioeconômicos, são agravados pela desinformação nas redes sociais, e podem levar a sintomas de ansiedade e depressão.

O termo “toco” remete à obstetrícia e “fobia”, ao medo. Ou seja, é o medo patológico da gravidez, do parto e de tudo o que se relaciona a ter um filho. Conforme apontado pelo norte-americano publicado pela revista Evolution, Medicine and Public Health, e os médicos e psicólogos ouvidos pela reportagem explicam que essa fobia pode acometer desde quem não tem filhos, até quem já tem e não quer mais.

Para os especialistas, a principal razão do medo é a desinformação, já que o uso controlado de métodos contraceptivos seria eficaz para evitar uma gravidez. No entanto, o compartilhamento de informações falsas sobre o assunto leva mulheres a desconfiarem dos métodos, desenvolvendo pânico e usando mais de um contraceptivo, o que coloca a saúde em risco. 

Este problema pode surgir não apenas através de informações falsas em redes sociais, mas também pela falta de acesso à educação sexual. A implementação de disciplinas específicas de educação sexual nos currículos das escolas públicas foi defendida ainda em 2004 pelo ex-deputado estadual (SP) e médico ginecologista Pedro Tobias, e é atacada até hoje.

A iniciativa, alvo da extrema-direita brasileira, usou como arma a fake news e ficou conhecida como “mamadeira de piroca”. Compartilhada com maior ênfase durante a campanha eleitoral do ex-presidente Jair Bolsonaro em 2018, a notícia falsa veiculava que o governo usava um “kit gay” para trazer conteúdos que ensinariam crianças a fazer sexo e estimulariam a homossexualidade.

A proposta verdadeira, de 2011, seria que o material contasse com conteúdo de educação sexual e contribuísse para a luta anti-homofobia. Apesar da informação falsa ser usada até hoje, o uso do kit não chegou a ser colocado em prática.

Enquanto as desavenças ocorrem no mundo político, a saúde biológica e psicológica das mulheres também é impactada, como relata a estudante de animação Maiara Valadares: “Eu costumava ter pavor antes, durante e após a relação, sendo ela de penetração ou não. Cinco minutos depois eu já estava pesquisando no Google ou mandando mensagem para uma amiga estudante de medicina para saber se tal coisa engravida ou não. Eu ficava sempre em completo desespero”.

No caso dela, o medo se dá principalmente pelo desejo de nunca ter filhos. Além disso, o quadro se agrava pela falta de condições financeiras e psicológicas para gestar e cuidar de uma criança.

Na época do diagnóstico, Maiara tinha sintomas que se manifestavam em diversos contextos. “Já tive ataques de pânico no meio da aula na faculdade, no ônibus e em casa, mesmo racionalmente sabendo que na maioria das situações era impossível eu estar grávida”, explica.

Ela pontuou ainda que reconhece a raiz desse problema como sendo a desinformação. Como não teve educação sexual na escola e o assunto era um tabu dentro de casa, Maiara recorreu à internet para entender mais sobre o assunto quando iniciou sua vida sexual.

Na internet, há grande quantidade de comentários falsos sobre gravidez. “Sabia que se um cara gozar num vaso e você sentar, pode sim engravidar, por que o espermatozoide fica vivo por um tempo? Como nós temos o corpo quente, ele vai ao encontro. Mas como explicar isso para um bando de tontos?”, perguntou um internauta. Vale ressaltar que não há fecundação sem penetração.

Enquanto isso, as respostas são variadas, e denunciam a gravidade do compartilhamento de informações falsas: “Inclusive, nesse exato momento fiz três testes de gravidez, dois de farmácia e um sanguíneo. Porém, tenho certeza que estou grávida e na próxima sexta-feira vou fazer um exame transvaginal. Nunca mais vou querer ter relações sexuais com ninguém”, comentou uma outra usuária.

Como se dá a desinformação

Para compartilhar esse tipo de desinformação, existem diversas estratégias, como explica o ex-coordenador de jornalismo da Agência Lupa, Chico Marés. Conforme destaca, a principal tática é tentar convencer as pessoas sobre a narrativa criada. O ponto central é criar conteúdos que sejam compartilhados e causem um impacto nas pessoas.

E essa atração, no caso da saúde, apela para um ponto crucial de quem tem tocofobia: o medo. “São questões muito particulares, a desinformação sobre saúde é particularmente sensível por ser atrativa e apelativa em níveis basais da psicologia”, explica Marés. 

Além disso, o ex-coordenador da Lupa destaca que a desinformação atinge principalmente quem, além do medo, sente indignação. No caso de quem tem tocofobia, este sentimento pode existir pela revolta de não ter condições financeiras de sustentar um filho ou por discordar das políticas que criminalizam o aborto, por exemplo. 

Marés aponta ainda que a desinformação sobre saúde pode ser mais grave do que outros tipos de desinformação porque pode levar pessoas a cometerem atos que as auto prejudiquem, como tomar substâncias que podem ser danosas para o corpo, como os conhecidos chás abortivos e outros medicamentos.

Conforme apontado pelos especialistas ouvidos pela reportagem e por Maiara Valadares, este pânico da gravidez poderia ser amenizado caso as mulheres tivessem a ampliação do direito ao aborto. O procedimento e a sua legalização, no entanto, também enfrentam o problema da desinformação.

A cientista social Priscila Kikuchi, que também é consultora teológica da Católicas pelo Direito de Decidir, ONG religiosa que luta pelo direito ao aborto e à expressão sexual, explica que as informações falsas são agravadas pelas doutrinas de fé. “A religião tem uma relação muito forte com a desinformação sobre gravidez e o aborto, e a cristã católica é uma das mais influentes nesse sentido”, aponta.

Ela aponta ainda que evangélicos fundamentalistas e conservadores também compõem essa prática. Eles reforçam ainda mais a ideia de que o aborto é um crime, transformando as mulheres em “assassinas em potencial”, caso elas realizem esse procedimento.

A ONG se dirige às mulheres que têm medo de engravidar por questões sociais, isto é, principalmente por não ter condições financeiras ou por já ter um número significativo de filhos e não contar com uma rede de apoio.

Ativa como consultora da organização, Priscila reforça que a demanda é por um direito: “É importante a ampliação da informação sobre essa questão a partir da perspectiva da justiça reprodutiva. Ela deve ter como um de seus princípios levantar temáticas relacionadas à sexualidade e à reprodução articuladas com as demandas das mulheres pretas e pobres”. 

“O direito ao aborto possibilitaria o avanço e um maior acesso a informações referentes a questões que demandam a sexualidade e a reprodução, e conhecendo mais sobre o assunto, assim acredito que o pânico vai diminuindo, pois vão se quebrando os tabus”, conclui. 

Impacto na saúde psicológica 

A psicóloga conselheira do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Alessandra Almeida, explica que o problema da desinformação é também estrutural. Ela afirma que o estudo sobre o corpo das mulheres sempre envolveu muito tabu e, consequentemente, desinformação.

Essa desinformação se une a problemas sociais que aumentam o estresse e o medo. Para a psicóloga, existe no Brasil um histórico de violência obstétrica, algo que piora os quadros de tocofobia. Ao mesmo tempo, no recorte econômico, o medo está mais presente em mulheres de baixa renda, com menor escolaridade, e que moram em zonas periféricas.

Dentro dos hospitais, essa realidade é ainda mais evidente. O médico obstetra e ex-presidente do Departamento de Sexualidade Humana da Associação Paulista de Medicina, Alberto Guimarães, conta casos de mulheres que chegam desesperadas em seu consultório. 

“Teve a diretora executiva de uma empresa gigante, que chegou no consultório atordoada pela possibilidade de estar grávida. Ela disse que lutou a vida toda para ocupar o cargo de CEO dessa empresa. Infelizmente, teve um insucesso no método, e, só ao notar a possibilidade de estar grávida, entrou em um descompasso psicológico”, conta.

Impacto na saúde biológica

Ele pontua, no entanto, que o medo destoa das reais chances de uma mulher engravidar. Conforme explicado por Alberto, na população geral, sem problemas de saúde, existe uma chance mensal de engravidar que chega a 20%.

Ele destaca, porém, que o peso dessa porcentagem varia de acordo com cada contexto. Para quem quer engravidar, pode parecer um percentual baixo. Já para quem tem tocofobia, é um valor extremamente elevado. 

No segundo caso, as preocupações poderiam ser sanadas pelo uso de um método contraceptivo, que diminui em quase 100% a chance de engravidar.

Há diferentes métodos, como o Implanon, o DIU e a conhecida pílula anticoncepcional. Segundo Alberto, os métodos são extremamente eficazes quando utilizados da maneira correta.

O maior problema no uso dos contraceptivos entre quem tem tocofobia é o uso de mais de um método hormonal, como se fosse uma forma de reforçar a proteção contra gravidez.

O problema é que a combinação destes métodos não é apenas desnecessária, mas também pode causar malefícios à saúde, como explica o médico: “Se a pessoa está usando um tipo de pílula, teve relação sem preservativo e toma a pílula do dia seguinte por medo do método usado falhar, há um péssimo risco de sobrecarga de hormônios num lugar que já está com hormônios”. 

Essa sobrecarga pode ainda mudar aspectos hormonais e afetar negativamente o seu sistema reprodutivo. Por isso, Alberto destaca que não é indicado usar mais de um método hormonal simultaneamente e não é necessário fazer maiores intervenções cirúrgicas, como a laqueadura. 

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